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Todas as nações aproveitam os grandes personagens históricos que viveram em seu território para uma finalidade pedagógica: ensinar qual é o tipo de Ser Humano que seu povo deve ter como modelo. E, geralmente, o fazem contando seus feitos para a maior quantidade de pessoas possíveis. Na Grécia Antiga, por exemplo, todos os grandes heróis do passado se tornaram temas de grandes poemas épicos e até mesmo de encenações teatrais. Foi assim com Aquiles, na Íliada; Ulisses, na Odisseia; Jasão e seus argonautas. Rama, no épico hindu Ramayana, é outro exemplo de como o mundo antigo tratava seus heróis. Até na Idade Média, dos vikings aos europeus e árabes, todos têm seus grandes nomes cantados em verso e prosa.

E se todas essas histórias tivessem algo em comum? Um mitólogo inglês, Joseph Campbell, chegou a essa conclusão estudando dezenas de mitos de diversas culturas diferentes. No seu livro “O herói de mil faces”, afirma que todos os mitos seguem, basicamente, a mesma sequência, que pode ser organizada em três partes: partida, ou separação; descida, iniciação, ou penetração; e retorno. Christopher Vogler, na década de 80, inspirou-se no livro de Campbell e escreveu o manual Jornada do herói, que é usado em todos os filmes de heróis que você tenha visto na Vida. Voltando ao mitólogo inglês, essa sequência, chamada por ele de monomito, não é mera coincidência, viria das fontes primárias da Vida e do pensamento Humano. A função primária dos mitos e ritos seria a de fornecer os símbolos que levam o Espírito Humano a avançar. E de fato, Aquiles e Rama puxam o nível para cima e, aqueles que buscarem se aproximar deles, crescerão em Humanidade. 

Sendo assim, se um Homem deixar que um pouco dessa luz interna irradie através de sua personalidade, se torna um verdadeiro herói? Já que afirmamos, desde o título, que Luiz Gama é um herói, que talvez você não conheça, é exatamente isso que faremos. Vamos olhar para a Vida desse brasileiro e ver o quanto ela coincide com o monomito descrito por Campbell.

Luiz Gama foi um brasileiro nascido na Bahia, mas precisamente em Salvador, no dia 21 de junho de 1830, numa bela noite de solstício de inverno. Aqui no hemisfério sul, todos os anos, nessa data, ocorre um fenômeno astronômico, a noite é mais longa do que o dia. E foi no dia da noite mais escura que ocorreu o nascimento que venceria a morte, uma luz que iluminaria diretamente a Vida de mais de 500 pessoas.

Sua mãe, Luiza Mahin, foi uma mulher negra escravizada, mas, nessa época, já havia alcançado a alforria (liberdade). Seu filho, por conseguinte, era também livre do flagelo da escravidão no Brasil. E foi no afã dessa busca por liberdade que os homens e mulheres malês se insurgiram contra a opressão, num movimento conhecido como Sabinada. Luiza foi uma de suas líderes e, após a derrota, teve que fugir da localidade, deixando seu filho aos cuidados do pai.

Não há muitas informações sobre o seu pai, Gama apenas o descreve como um homem branco de origem fidalga, com uma gorda herança, perdida entre bebidas e jogatinas. E, ao arruinar seus bens, ele decide vender um lote de pessoas escravizadas. Nesse momento, deve ter passado por sua cabeça um pensamento: por que não envolver o menino no negócio? Dessa forma, se livraria dele e ainda lucraria algo. E foi assim, falsificando a certidão de nascimento do nosso protagonista, que um menino livre de dez anos foi vendido como um escravo. Dessa forma torpe e infeliz, começa a jornada de nosso mártir, separado do mundo cotidiano em que vivia, a Vida lhe chama para uma aventura.

Mas, segundo Campbell, o herói não reconhece de pronto seu destino heróico, ele não quer viver essa experiência que parece difícil e sem recompensa aparente. É o que ele chama de recusa ao chamado. De barco, ao chegar no Rio de Janeiro, Luiz Gama é enviado à casa do português que o comprou. Lá encontra quatro mulheres piedosas (esposa e filhas do português) que oferecem um momento de descanso no meio daquela tenebrosa vivência. Tratado com algum afeto e compaixão, ele não quer continuar. Por aquele menino, a Vida poderia continuar na casa dessas mulheres, ele mesmo deixa claro que não queria continuar a viagem até seu destino final, São Paulo.

Segundo o monomito, mesmo recusando o chamado à aventura, o paladino é arrastado para ela. Até chegar no limiar do primeiro portal, protegido por um guardião. Ao atravessar essa etapa, o aventureiro inicia sua peleja sem possibilidade de volta. No caso de Gama, esse guardião chamava-se Antônio Pereira Cardoso, alferes e contrabandista de pessoas. Exposto no porto de Santos, Luiz é rejeitado por ser baiano. A fama que sua mãe ajudou a criar, se espalhou, e os nascidos na terra do dendê eram vistos como potenciais revoltosos e evitados.

Na sequência da história dos heróis, chega a etapa do mergulho no ventre da baleia. Para o autor de O herói de mil faces, é uma experiência de aniquilação necessária para o renascimento. Nosso exemplo é atirado no pior monstro que essas terras já viu: a escravidão. Rejeitado, ele é levado pelo criminoso para Campinas, uma viagem de aproximadamente 200 quilômetros, que o menino faz a pé. Lá ele trabalha na casa dele, que funciona como uma pensão para estudantes de direito.

Um desses hóspedes vai fazer o papel da ajuda sobrenatural do monomito. Nessa etapa, segundo o livro do autor inglês, surge uma companhia inesperada que treina o guerreiro para a batalha, e essa tarefa coube a outro Antônio, o Rodrigues do Prado Junior. O jovem, hospedado na casa onde Gama trabalhava, secretamente ensinou as primeiras palavras e contas, deu a ele as armas com que enfrentaria o monstro que citamos anteriormente.

Provando que era um homem livre, aos 18 anos sai da casa do seu algoz e alista-se na força pública de São Paulo. Lá, ele começa o trecho que no monomito é chamado de estrada de provas. Durante os seis anos que serviu na polícia, Gama ganhou o afeto do conselheiro Furtado de Mendonça e Benedito Antonio Coelho Neto. O primeiro o fez ajudante de ordenança, lhe abriu sua biblioteca e intercedeu para que ele fosse bibliotecário interino da faculdade de direito; o segundo o fez copista da delegacia. Esse foi o seu Encontro com a Deusa, no caso a Deusa Justiça. Nesse período, sua personalidade irascível o faz ser preso por 39 dias. Ele relatou, durante a estadia na prisão, um sonho com sua mãe, que o chamava insistentemente.

Luiz Gama estudava muito na biblioteca da Faculdade de Direito, lia as sentenças que copiava e aprendia tudo o que podia sobre o funcionamento da Justiça Brasileira. Autodidata, ele se tornou poeta, jornalista e rábula (um advogado sem formação). Tentou frequentar o curso superior, mas foi impedido pelos estudantes por conta da cor de sua pele.

Ele então abraça seu destino e atua gratuitamente para libertar pessoas escravizadas, seu trabalho mostra um homem altivo, nobre, corajoso e generoso. Atuando como advogado, sem uso de violência, esse homem, sozinho, devolveu a liberdade a mais de 500 pessoas! Imagine quantos filhos, netos, bisnetos devem suas Vidas a um único herói. A aventura desse homem encontra sua apoteose às 14h de 24 de agosto de 1882, quando, acometido pela diabetes, ele morre. Seu enterro é seguido por 20% da população de São Paulo, o comércio fecha, as repartições hasteiam a bandeira a meio mastro, desde o meio-dia as pessoas se juntam nas ruas por onde o cortejo iria passar às quatro horas, o caixão sai rumo ao Cemitério da Consolação. Não se aceita o transporte em carro oficial, as pessoas querem o orgulho de carregar tão ilustre cidadão nas mãos, os negros choram nas ruas, os amigos sentem a perda, as damas decoram as varandas em respeito. Em frente à lápide construída pelos irmãos da Loja América, um orador levantou a voz e pediu que todos os presentes jurassem manter viva a luta pela liberdade: a multidão jurou.

O tamanho deste texto não permite que analisemos todas as etapas do monomito na Vida de Gama. Mas, como demonstramos, a Vida desse homem o credencia para se tornar o Herói Mítico que todos precisamos para nos inspirar a evoluir e crescer. Por que não temos a imagem desse senhor em moedas, feriados nacionais, nomes de avenidas?

Campbell fala que a última etapa do trajeto básico dos mitos humanos é o retorno, a volta do herói com o elixir que ajuda a todo o seu povo. Nosso mito morreu durante a apoteose e cabe a nós auxiliá-lo a cumprir o último capítulo de sua trama. Vamos devolvê-lo ao seu lugar de direito, no alto da nossa sociedade, mostrando para onde devemos caminhar.

Na verdade, ele continua entre nós. Seu exemplo influenciou Rui Barbosa, Joaquim Nabuco, José do Patrocínio, Antonio Bento, Raul Pompéia, Castro Alves… Mais de 100 anos após sua morte, a OAB lhe conferiu a condição de advogado. Hoje um portal que busca inspirar as pessoas revive sua história… Que você a receba e use para comprometer-se um pouco mais com a Justiça, assim como fez esse grande herói do Brasil!

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