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Você já ouviu alguém dizer: “Eu odeio matemática”? Ou então, “Matemática não é o meu forte”; ou ainda que “Matemática é o meu calo”? Pois é, em geral há um certo repúdio à ciência dos números hoje em dia. Mas nem sempre foi assim. Houve uma época, na Grécia Antiga, em que a matemática se confundia com a filosofia, no sentido de que não havia uma fronteira entre essas duas áreas, de modo que todo filósofo, em alguma medida, falava de matemática. O livro A República, de Platão, por exemplo, é uma obra filosófica que, ao passo que fala de moral, espiritualidade e política, fala também de geometria e aritmética como se estivesse tratando do mesmo assunto. 

Nessa época, a abordagem acerca da matemática considerava o seu papel em todo o Cosmos, ou seja, em toda a Natureza e na Vida Humana. O que é bem diferente da abordagem que temos hoje, fruto das revoluções científica, industrial, econômica e política da modernidade. Atualmente, o paradigma que usamos para acessar o mundo dos números é técnico, focado no resultado prático, de modo que não nos permite ter um acesso profundo à essência da matemática, que é também mística e não apenas lógica. 

Os gregos, há 2.500 anos, não tinham, obviamente, o alcance tecnológico que temos hoje. Não tinham internet, nem smartphones, muito menos telescópios potentes para observarem o espaço. No entanto, eles conseguiram um acesso à realidade que nos serviu de base para que, sobre ela, fosse erigida toda a nossa civilização. Podemos dizer que, praticamente, tudo o que o homem ocidental conhece, estuda e realiza tem um lastro no pensamento greco-romano. Uma evidência disso é que os termos que usamos para construir nosso edifício intelectual, hoje, no ocidente, têm uma raiz grega: a maioria dos nomes das ciências como antropologia, biologia, geologia etc; as especialidades médicas como cardiologia, alergologia etc., palavras como política, democracia, república, entre outras, todas gregas, evidenciam a relevância que a Grécia Antiga tem enquanto berço do mundo em que vivemos. 

A civilização grega, tão proeminente, com alcances tão elevados no mundo das ideias, enxergava na matemática algo que a nossa civilização não consegue ver. Para os antigos gregos, os números não eram apenas expressões frias de quantidades e de medidas, mas expressões do Mistério do mundo. Eles descobriram, por exemplo, que a música é feita de números, uma vez que observaram proporções numéricas no ressoar das notas musicais. Descobriram a presença dos números no movimento dos astros, nos ciclos vitais, no fluxo sanguíneo, na abóbada celeste. E foi assim, no encalço do Mistério, que postularam a geometria e lançaram os grandes problemas matemáticos. Podemos citar, como exemplo, o paradoxo de Zenão, também conhecido como “Aquiles e a tartaruga”, em que se levantam questões tão profundas sobre o movimento que somente muitos séculos depois começaram a ser esclarecidas. 

Duas coisas moviam os gregos para permiti-los retirar o véu que encobre o profundo Mistério da matemática: primeiramente, eles eram movidos por uma busca filosófica de Unificação de tudo o que existe. E, em segundo lugar, cultivavam um olhar tão contemplativo para a Natureza que, em decorrência dessa perspectiva, desenvolveram uma relação Sagrada com o Universo. Quando olhavam para a vastidão dos mares, não enxergavam apenas água e sal, mas sim Poseidon, o Deus dos mares; quando olhavam para a terra, viam Deméter, Deusa da terra; quando olhavam para a lua, viam Ártemis, Deusa da lua; quando estavam diante do amanhecer, viam Éos, Deus do amanhecer. 

Esses pontos de vista formam o que podemos chamar de paradigma, ou seja, perspectiva ou ponto de partida. Os alcances de uma civilização, e de nós mesmos, dependem muito disso, da perspectiva de como se vê o mundo. Essa perspectiva grega começou a ser afetada já por volta do Século III a. C., quando a Grécia foi conquistada pelos macedônios, mas o golpe final se deu com a queda de Roma no Século V da nossa era, que marca o início da Idade Média no Ocidente. 

A queda de Roma é algo mais significativo do que o fim de um Império. É, na verdade, a morte de um paradigma, de uma perspectiva acerca do Mundo, do Universo e do Homem. O novo paradigma que começa a ser gestado a partir de então e que hoje se encontra em seu apogeu é marcado pelo inverso do que acabamos de falar sobre a Grécia: em lugar de uma busca por Unificação de tudo o que existe, a nova perspectiva rompe com o sentido unificador e faz a escolha por sofisticar ramos especializados. 

Hoje somos extremamente multifacetados, recortamos a realidade em infinitos pedaços e já não sabemos como uni-los em uma essência única. Em lugar de um olhar contemplativo para a Natureza, o que surge no novo paradigma é uma busca de domínio para exploração. Os mares não têm nada a ver com Poseidon. São, na verdade, rotas comerciais para o mercantilismo. A lua não inspira Ártemis, mas é um sonho de colonização futura. A terra é um negócio, o amanhecer se reduziu ao toque apressado dos despertadores, à correria e à pressa. Suprimimos os Deuses, particionamos a realidade e mergulhamos em um mundo sem sentido, sem magia, sem intuição, sem graça, onde a matemática nada mais é do que uma técnica para se erguer prédios, fabricar veículos cada vez mais velozes, auxiliar o mercado financeiro e desenvolver softwares cada vez mais avançados. 

Mas, por que, para os gregos, a matemática era Divina? Para responder a essa questão, devemos pensar a partir do paradigma grego: partindo do ponto de vista de que tudo o que existe neste mundo, e para além dele, está integrado, unificado e que toda a realidade é gerada a partir de uma Unidade. Além de ter tudo  isso unido a uma perspectiva de respeito pela Natureza, a matemática seria a maneira pela qual todos esses elementos, distintos em formas, se comunicariam. Esse modo de pensar levou os gregos a descobertas às quais jamais chegaríamos com o paradigma atual. Desde o passo de uma tartaruga à corrida veloz de um atleta; do mergulho de um corpo pesado em uma banheira de água à vibração de uma corda de um instrumento musical, tudo para os gregos, cada acontecimento, por mais banal que parecesse, falava a mesma linguagem, uma espécie de idioma da Alma do mundo, porque, em sua perspectiva, as coisas estavam integradas. E isso era muito Sagrado e Divino, direção da qual se aproximavam como meros mortais em busca da Verdade. Queriam entender o Mundo, os Mistérios que os cercavam, e essa busca os conduziu a lugares sublimes. 

Os gregos nos mostram, a partir dos postulados da geometria, dos teoremas de Tales, do teorema de Pitágoras e das descobertas de Arquimedes, que a matemática é a linguagem da Alma do mundo. Se um dia viermos a nos comunicar com seres viventes em outro lugar do Cosmos que não seja o planeta Terra, provavelmente falaremos com eles através da matemática, porque esta é a linguagem do Universo. Os números são a expressão da Unificação de tudo o que existe. 

O nosso planeta descreve uma trajetória ao redor do Sol, e essa trajetória é um lugar geométrico, com centenas de relações matemáticas entre suas distâncias. Como isso pode surgir por coincidência? Ao acaso? A matemática prova que há uma lógica que ordena o Universo, uma espécie de Inteligência Cósmica. Por isso, os gregos viam a matemática como um presente dos Deuses. Para eles, o grande Mistério dessa Inteligência Cósmica poderia ser traduzido em narrativas míticas envolvendo Seres Divinos. Os mitos, portanto, foram usados na cultura grega para explicar como nós, Seres Humanos, mesmo com nossas limitações, somos capazes de entender a matemática, uma linguagem tão sofisticada e universal. Usando uma chave mítica, eles afirmavam que os Deuses nos deram essa linguagem de presente para que pudéssemos entender essa realidade tão complexa que nos hospeda. É uma explicação mítica, simbólica, mas profunda.

A nossa jornada evolutiva depende do quanto conseguimos acessar a realidade conscientemente. Para os gregos antigos, os Deuses nos auxiliam nessa busca por evolução, por isso eles nos deram essa fagulha do fogo, que é o pensamento matemático. Um cético pode até ridicularizar essa perspectiva, mas é inegável que esse olhar grego desperta em nós uma força descomunal para aprender matemática, para nos aproximarmos das equações, dos teoremas e interagirmos com essa linguagem que expressa tudo o que existe.

Precisamos de um novo paradigma hoje. Esse olhar de exploração da Natureza e essa cegueira diante da Unidade do mundo têm nos levado a abismos profundos. Temos sido predatórios de nós mesmos, desenvolvemos um padrão de relação com a Natureza que fomenta mais a exploração dela do que sua contemplação. Rompemos com o Sagrado, dividimos a realidade em infinitas partes. Por causa disso, precisamos urgente de uma perspectiva que junte esses pedaços, que nos revele o fio que Une todas as coisas. Precisamos também de uma nova ciência que não seja uma ruptura com o Sagrado, que não esteja exclusivamente comprometida com a produção e o enriquecimento. Ou seja, precisamos de uma ciência que seja uma ponte entre a nossa condição humana e o Grande Mistério do Universo. Quando mudarmos nossa perspectiva e, a exemplo dos gregos, vermos na matemática um presente Divino, jamais diremos que a odiamos, ou que é nosso calo, nosso trauma ou coisa do tipo, mas sentiremos pelos números a mesma sensação que temos quando estamos diante de coisas muito Sagradas.

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