A mitologia sempre fascinou o Ser Humano. Desde pequenos gostamos de contar – e escutar – as mais diversas histórias, sendo elas verídicas ou não. Isso, inclusive, pouco importa quando estamos falando de mitos, uma vez que acima da veracidade dos fatos estão os símbolos e ideias que eles carregam. Não sabemos se Ulisses demorou dez anos para chegar em Ítaca, ou se a lendária batalha entre Kuravas e Pandavas realmente existiu nas planícies da Antiga Índia. Porém, certamente podemos reconhecer que tais histórias representam símbolos da luta entre o bem e o mal; da força da vontade, do amor e da inteligência superando as adversidades e entre outros ensinamentos tão valorosos.
Uma prova do nosso encanto pela mitologia é a própria existência e relevância destes em nosso tempo. À nossa maneira, ao contar e recontar os feitos dos heróis, Deuses e semideuses de cada civilização, fazemos com que eles perdurem no tempo e se tornem, assim como em suas lendas, imortais. Heróis como Hércules, Thor, Aquiles e Odisseu estão eternizados no cinema e em séries de TV, e tornaram-se ícones da cultura pop do nosso século.
Junto a eles outros tantos Deuses e heróis também entraram no cotidiano das pessoas por meio do entretenimento. Um dos mais recentes foi o Deus “Loki”, que tem uma série própria produzida pela plataforma de streaming Disney +. Lançada em 2021 e criada por Michael Waldron, a série busca continuar a história da Divindade Nórdica a partir dos acontecimentos de outros filmes da Marvel, a maior editora de quadrinhos do mundo e que já produziu diversas histórias baseadas em heróis e Deuses de diferentes mitologias.
Pensando nisso, devemos ressaltar que os personagens da Série – e das demais produções – nem sempre são fidedignos às histórias mitológicas do seu povo. Adaptados a um moderno século XXI, é perceptível que o “Loki” que é apresentado nos filmes e na série não é, de fato, o mesmo que era temido pelos antigos Vikings. Mesmo assim, algumas características mantém preservada a essência desse personagem, o que nos ajuda, igualmente, a entender seus dilemas ao longo da série.
Para os que não conhecem Loki a fundo, o Deus Nórdico geralmente está relacionado a trapaça, a má sorte, a magia e ao fogo. Nas lendas da mitologia nórdica ele costuma ser um mau sinal ao aparecer, assim como pode disfarçar-se e tomar a forma de qualquer pessoa para pregar suas peças. Tais aspectos são bem representados nas aparições do Deus nos filmes modernos e também na série. Entretanto, podemos refletir acerca de alguns pontos que a produção de Michael Waldron nos apresenta como lições que vão para além do entretenimento.
O enredo da série apresenta Loki em uma narrativa ligada à viagem no tempo. O que ocorre, a grosso modo, é que o Deus Nórdico acaba entrando em uma outra linha temporal e passa a ser perseguido pela “Autoridade de Vigilância do Tempo”, ou em outras palavras, a “polícia do tempo”. Para além disso, Loki depara-se nessa outra realidade com o seu contraponto nessa linha do tempo: Sylvie Lushton. Após o choque inicial dos dois personagens, ambos começam a se conhecer e perceber o quão iguais e, principalmente, o quão distintos são ao mesmo tempo.
A relação entre os dois personagens e suas descobertas nos mostram o valor da Identidade para o Ser Humano. Comumente associamos nossa Identidade aos nossos gostos, preferências e escolhas. Entretanto, quando verdadeiramente perguntamos “quem somos?” não achamos uma resposta satisfatória. Poderíamos, por exemplo, responder essa pergunta baseados em nossas profissões e, em geral, até o fazemos. Nos identificamos como professores, médicos, engenheiros, servidores públicos, mas isso é o bastante para nos definir?
Sabemos muito bem que não. Por isso, a busca pela nossa Identidade é uma das questões que norteiam a filosofia e a saga da Humanidade como um todo. Frente a isso, Loki passa a entender mais de si quando começa a observar o seu outro “eu” de uma linha temporal distinta. Isso ocorre, em grande parte, porque acabamos descobrindo nossa Identidade a partir do contraste.
Esse é, em grande medida, um dos princípios básicos do conhecimento. Colocando em exemplos, pensemos na seguinte proposição: como eu sei que “eu” sou “eu” mesmo? Por mais estranha que pareça essa pergunta, sua resposta pode ser simples e direta: eu sou eu porque eu não sou o outro. Assim como diferenciamos as pedras das plantas, por reconhecermos que uma é o que chamamos de “pedra” e a outra é o que denominamos “planta”. Esses exemplos simples nos mostram como a nossa mente passa a aprender: por comparação e distinção.
Assim, a contraposição (ou contraste) nos gera a consciência. Levando essa ideia adiante, como podemos aplicá-la de forma efetiva na busca pela nossa Identidade?
Seguindo o mesmo raciocínio, podemos dizer que o Ser Humano não é uma pedra, muito menos uma planta ou um animal, pois há características que os distinguem. Não somos inertes como as pedras; não nos alimentamos de sol e somente crescemos como as plantas; também não agimos apenas por instinto e emoção, como os animais. Por comparação, talvez a nossa verdadeira Identidade esteja em nossa capacidade de utilizar a razão à serviço do Todo. É importante acrescentar o “a serviço do todo” pois alguns animais, primatas em geral, possuem certo tipo de raciocínio lógico, entretanto, o utilizam baseados em respostas comportamentais e buscando sempre satisfazer seu instinto.
O Ser Humano, entretanto, nem sempre utiliza sua razão apenas para isso. Morrer por um ideal, ou salvando outras pessoas são exemplos clássicos sobre isso. Assim, é possível que essa seja a nossa característica essencial, que nos torna seres únicos na Natureza e que para nos realizarmos se torna necessário praticá-la. Isso significa dizer que é preciso viver essa parte única que habita em nós, seja através das nossas profissões, hobbies ou mesmo a todo instante.
Infelizmente, essa não é uma realidade comum para a maior parte da Humanidade. Ainda sofremos por não conseguirmos encontrar nossa verdadeira Identidade e muito menos exercê-la. Desse modo, acabamos vivendo de maneira limitada, sendo apenas aquilo que disseram que éramos. Em resumo, deixamos de ter um modo de vida autêntico e vivemos como nos ordenam.
Frente a isso, a Série “Loki” nos ajuda a entender que é preciso, muitas vezes, que um observador “de fora” nos mostre o quão perdidos estamos na busca de nossa verdadeira Identidade. Por não conseguirmos nos afastar dos problemas diários e de nossa rotina, que geralmente consome nossa energia e tempo, acabamos vivendo quase em um modo automático, realizando tarefas e sem refletir sobre nossa existência. Nesses casos, é fundamental que tenhamos alguém que nos enxergue como somos e nos mostre quem verdadeiramente podemos e devemos ser, ou seja, qual o nosso papel na vida.
Como bem sabemos, isso não ocorrerá de maneira simples. Em muitos casos, inclusive, não aceitamos que nos digam “o que devemos fazer”. Achamos, ingenuamente, que estamos no controle de nossas vidas e que a temos sobre a palma de nossas mãos e rechaçamos aqueles que desejam nossa evolução. Porém, se conseguirmos observar atentamente esses momentos, saberemos reconhecer a validade de observar a vida sob uma nova perspectiva.
Nas tradições antigas este era, de modo geral, o papel do Mestre frente a um discípulo. O Mestre não era apenas alguém que dominava uma técnica, mas sim o que era capaz de transmiti-la para os demais, fazendo-os honrar seus Princípios e manter suas tradições. No campo da filosofia, o Mestre seria aquele que aprendeu a “arte de viver” e se coloca à disposição para todos que desejam dominar a si mesmos. Dentro desse processo é fundamental encontrar sua Identidade.
Visto isso, não poderíamos deixar de indicar a série “Loki” por observarmos quão interessante é o modo que a Divindade Nórdica passa a encontrar a si mesmo. Deixando de lado suas formas, o Deus despe-se para encontrar quem verdadeiramente é. Assim deveríamos fazer e lembrar o lugar ao qual pertencemos na Natureza.