O mito de Giges foi contado pela primeira vez há cerca de dois mil e quatrocentos anos, no livro A República, de Platão. No entanto, trata de um assunto que é muito atual, fala de corrupção, de injustiça e de imoralidade. Considerando que vivemos em um país marcado por desvios de verbas públicas, abuso de poder, lavagem de dinheiro, fraudes em licitações, etc. E que essa endemia de injustiças vem inviabilizando o desenvolvimento econômico e humano, nunca foi tão atual, tão urgente e tão socialmente relevante a busca de uma reflexão sólida e profunda sobre o assunto.
Platão ao refletir sobre Justiça e, por conseguinte sobre corrupção, não o fez de uma forma superficial, apaixonada, ideológica ou partidária. Fez uma reflexão profunda sobre a essência, a origem da Justiça e sua relação com a natureza humana. Esse é o tema central do texto platônico. O livro é todo construído em torno de diálogos, em que o personagem central é um filósofo chamado Sócrates. Esse grande filósofo vai fazendo perguntas a um grupo de homens, e o formato das perguntas e a condução dos diálogos vão aprofundando o tema e permitindo descobertas muito significativas a respeito.
Em um dos momentos desse diálogo, o personagem Glauco começa a provocar Sócrates, levantando uma tese muito realista sobre Justiça. Em síntese, ele diz que, na verdade, os homens praticam a Justiça a contragosto, e se todos pudessem mesmo, só praticariam injustiças, o problema são as reações da sociedade quando são descobertos. É daí que nascem as leis, na conjectura de Glauco. Os homens criam leis para serem constrangidos a não praticarem injustiças, porque do contrário, ninguém, naturalmente, ou por boa vontade, seria justo.
A fim de ilustrar sua tese, Glauco começa a contar um mito. Ele diz que havia um pastor de ovelhas, na Lídia, chamado Giges que viverá uma experiência muito curiosa. Diz que uma vez teve um temporal muito forte, acompanhado de um tremor, que abriu uma profunda fenda na terra. Ao pastar o seu rebanho, Giges se depara com a abertura no solo e resolve explorá-la. Ao entrar na fenda, se depara com um cavalo de bronze, oco e provido de janelas. Giges olha pelas janelas e vê um cadáver, inteiramente despido, com um anel de ouro em uma das mãos, retira o anel do cadáver e coloca em seu próprio dedo. Mais tarde, na reunião de rotina dos pastores para apresentar relatório dos trabalhos ao Rei, Giges, sentado no meio dos outros pastores, começa a brincar com seu anel e, por acaso, vira a pedra do anel em direção à palma da mão, isso fez com que ele se tornasse inteiramente invisível para os demais, que já se referiam a ele como se não estivesse ali presente.
Surpreendido com o fenômeno, Giges começou a testar repetidamente, e todas as vezes, ao virar a pedra do anel em direção à palma da mão, ficava invisível, voltando a aparecer ao retornar a pedra à sua posição inicial. Assim, consciente do poder inerente a tal habilidade, começou a usá-lo em seu interesse: consegue inicialmente se tornar mensageiro do Rei, depois seduz a rainha e aos poucos vai tomando todo o reino, até que por fim, assassina o rei e apodera-se do seu trono.
Um mito é um jeito de falar sobre aspectos sutis, que na linguagem comum, descritiva, não conseguiríamos. Desse modo, a partir do mito de Giges a questão que é suscitada é a seguinte: de um lado, Glauco argumenta que todos somos corruptos por natureza, mas somos constrangidos a inibir essa natureza em razão da censura do meio, de modo que se conseguíssemos o poder de ficar incólume à reprovação externa, tal como Giges, naturalmente seríamos corruptos.
Esse jeito de pensar é muito atual. Tem muita gente que acredita assim, que o natural, o óbvio, é sermos corruptos, basta não estarmos sendo vistos. Mas o que Sócrates diz disso? Ele concorda?
Na verdade, essa argumentação de Glauco era apenas uma provocação, o que ele pretendia é que Sócrates aprofundasse o diálogo sobre a essência profunda do que é a Justiça, e se vale a pena ser justo.
A partir dessa provocação de Glauco, Sócrates vai trilhar um caminho que vai no sentido de afirmar que a Justiça é um arquétipo, ou uma ideia de natureza muito elevada e cabe ao homem encarnar esta ideia, ou trazê-la à sua existência. Então não somos justos ou injustos por natureza, mas temos em nós toda a potência para encarnar o ideal de Justiça ou ofuscá-lo. Tudo isso está ao nosso alcance.
Podemos ser justos, ou injustos, ambas as posturas têm consequências. A injustiça é o afastamento da ordem, da harmonia, do equilíbrio. Inevitavelmente, o fruto da injustiça é o desequilíbrio. Então ser justo não é uma questão de aparência diante dos outros, mas de vivência. Essas posturas tem desdobramentos internos. A vida é uma construção. Imagine um edifício que é construído sem alinhamento, sem prumo, aonde as colunas são erguidas de forma tortuosa. A questão não é só aparente, mas de consequências concretas, esse desalinhamento pode levar a construção a um desmoronamento.
O mito de Giges nos lembra isso, que Justiça não é uma questão de aparência, pois ainda que ficássemos invisíveis e que absolutamente ninguém visse os nossos erros, ainda assim estaríamos vulneráveis aos desmoronamentos decorrentes da desordem e do desalinhamento interno que essas posturas corruptas e injustas nos proporcionam.
Mais adiante no diálogo, Sócrates aprofunda ainda mais na ideia e mostra que, aquele que é justo, pois responde a uma necessidade interna, a um chamado de sua própria alma, é a pessoa mais feliz de todas. As pessoas cometem atos injustos para conquistarem algum tipo de bem material, ou para obterem algum privilégio, ficando dependentes da “recompensa” de seus atos, e também das possíveis punições de suas ações. Por outro lado, aquele que é verdadeiramente justo, depende somente de si mesmo para se sentir pleno, pois a sua felicidade está em ser fiel a si mesmo, e isto ninguém pode dar ou retirar dele. Este é um ensinamento antigo, mas que se mostra extremamente necessário nos dias atuais. Então, como diria a filósofa russa Helena Blavatsky: Honremos esta verdade com a prática!