Por que não atendemos mais o celular?

Você já passou por essa situação: o celular começa a tocar, vibra, acende a tela… e em vez de atender, você trava. Olha para o aparelho como se ele estivesse fazendo uma pergunta difícil demais. Às vezes, vira o telefone e fica esperando a ligação “cair”; outras vezes, você joga o celular em cima da cama e finge que não viu. Mesmo quando a pessoa que está ligando é alguém de quem você gosta, ainda assim rola aquela sensação de desligar e mandar uma mensagem.

Jovem encarando o celular tocando com expressão de hesitação e ansiedade. Por que não atendemos mais o celular?
A reação automática de travar ao receber uma ligação inesperada.

Parece exagero? Pois é exatamente isso que milhões de jovens sentem. E a pergunta que fazemos é inevitável: por que a nossa geração quase não atende mais o celular? A resposta é bem mais profunda do que parece e vai muito além de um hábito “inocente”. Não se trata apenas de “preguiça” ou “coisa de jovem”, como muita gente mais velha insiste em dizer. Existe um conjunto de mudanças culturais, emocionais e tecnológicas que transformaram a ligação telefônica em algo desconfortável, que na mentalidade atual deve ser evitada a quase todo custo. E para entender essa mudança, a gente precisa observar o que está acontecendo nas relações humanas de hoje.

As relações humanas no século XXI: o ideal da impessoalidade

Para entender esse fenômeno dos nossos tempos, algo aparentemente banal, mas que nos revela uma mentalidade perniciosa ao nosso redor, precisamos compreender a cultura em que estamos inseridos. Em uma sociedade em que a comunicação rápida se tornou uma marca indelével, a ligação parece um tanto quanto obsoleta, pois todos nós estamos conectados 24 horas por dia. Partindo desse ponto, a ligação virou um evento raro. Até os anos 2000, por exemplo, atender o telefone era uma coisa normal, diária, prática e, às vezes, até desejada pelas pessoas. Hoje, quando o celular toca “do nada”, dá até um minissusto em nós, podendo gerar até mesmo um medo nos mais ansiosos. 

A maioria de nós só se sente relativamente confortável quando a pessoa manda uma mensagem avisando antes: “posso te ligar?”. E mesmo assim, às vezes a gente hesita. Mas como é que chegamos a esse ponto? A primeira parte dessa transformação tem a ver com o modo como vivemos. Nosso celular vira uma fábrica de notificações o tempo todo. São mensagens chegando de amigos, comentários no TikTok, memes nos grupos, lembranças da escola, tarefas, avisos, áudios, notificações de jogos… Um verdadeiro turbilhão, tão grande que, quando ele toca para uma ligação, nossa cabeça interpreta como se fosse mais uma demanda, mais uma coisa para resolver no meio do caos.

Tela de smartphone repleta de dezenas de notificações simultâneas.
O bombardeio constante que transforma qualquer ligação em mais uma demanda emocional.

Ligações, ao contrário das mensagens, exigem atenção e um contato mais direto com outro ser humano, diferentemente das mensagens, que, querendo ou não, são apenas textos que, via de regra, podemos ignorar com mais facilidade. Nas mensagens, a gente pode pensar, apagar, reformular, responder depois, esperar baixar a ansiedade, ou seja, tudo na nossa velocidade. Uma ligação, ao contrário, expõe uma sensação de improviso constante. Você tem que responder na hora, lidar com o tom da conversa, com a emoção da pessoa, com seu próprio estado emocional. Não dá pra disfarçar muito: a voz entrega tudo. Sua tristeza, sua irritação, seu desinteresse, seu cansaço. E, convenhamos, às vezes a gente não quer ser lido tão facilmente.

Pessoa falando ao telefone com expressão vulnerável, mostrando emoção pela voz
A voz revela o que tentamos esconder nas mensagens.

Outra coisa que torna esse comportamento tão comum é que nunca existiu tanta ansiedade social entre jovens como existe hoje. A pressão por desempenho, a comparação constante nas redes, a sensação de estar atrasado, a busca por validação… tudo isso contribui para que conversas, mesmo através de um celular, pareçam assustadoras. Junto a isso, existe um fator pouco comentado, mas muito real: a ligação passou a ser associada a problema. A mensagem virou o modo padrão da comunicação; portanto, não há motivos para ligar para outra pessoa para conversar sobre assuntos banais. 

Nesse contexto, uma mensagem de áudio, que para alguns já é mal vista, virou o “rápido e prático”, mas quando alguém liga, muitas vezes a primeira reação é pensar que aconteceu algo sério, fora do comum e, naturalmente, um problema. A gente estranhou tanto o hábito de ligar que agora, quando isso acontece, parece urgente. E o cérebro, para economizar energia emocional, tenta evitar qualquer coisa que soe como urgência.

Outro motivo que mostra nossa repulsa pelas ligações é o fato de que em uma ligação, tal qual em uma conversa ao vivo, precisamos ser espontâneos. Não conseguimos fingir quem somos quando estamos conversando, pois, como já apontamos, nosso tom de voz, nossa maneira de falar revelam estados emocionais, dúvidas etc. Assim, é preciso ter um grau de maturidade emocional para lidar também com esses momentos, algo que muitos jovens ainda não desenvolveram. O medo de se mostrar vulnerável, de não ter uma resposta pronta, de soar estranho, de ser interpretado errado acaba criando um distanciamento das ligações, algo que até pouco tempo atrás era o mais comum dos mundos.

No fundo, todas essas razões se conectam a um ponto central: a impessoalidade nas relações. Quanto mais a gente migra para formatos de comunicação que permitem edição, controle e distância emocional, mais difícil se torna lidar com interações que pedem presença real. E quando uma geração inteira começa a evitar esse tipo de contato, isso diz muito sobre como estamos nos relacionando, ou talvez, sobre como estamos nos afastando uns dos outros.

Os riscos desse comportamento e por que eles são maiores do que parecem

Primeiro, pense em quantas situações importantes na sua vida poderiam ter sido diferentes se uma simples conversa tivesse acontecido por voz. Sabe aquela briga com um amigo que só piorou porque vocês ficaram trocando mensagens mal-interpretadas? Ou aquela sensação de que um crush sumiu sem explicação, quando talvez bastasse uma ligação de 2 minutos para tudo se resolver? Ou ainda aquelas conversas necessárias com a família, que nunca acontecem porque são sempre adiadas para “outro momento”?

É aí que mora o problema. Substituímos a conversa real por tentativas de comunicação fragmentadas, apressadas, desencontradas. Uma mensagem escrita tem o poder de ser prática, rápida, objetiva; porém, nem sempre transmite exatamente o que estamos desejando. Ela não traz o tom de voz, a intenção verdadeira e na falta desses detalhes, a gente preenche as lacunas com suposições. E geralmente suposições erram, afinal, dentro do universo de possibilidades é muito complexo afirmar que sabemos exatamente o que aquela mensagem significou.

Dois amigos trocando mensagens separados, cada um sozinho em seu espaço.
A comunicação digital aproxima, mas também fragiliza vínculos.

Sendo assim, quando evitamos ligações, o que evitamos de verdade é o contato humano mais direto. E, aos poucos, isso deixa a gente menos treinado em conversar, menos preparado para lidar com conflitos, menos disposto a enfrentar conversas difíceis e menos habilidoso em interpretar emoções alheias. Percebe que, sem nos darmos conta, estamos fragilizando nossas relações e nossa capacidade de interagir com o outro? Não por acaso, cresce, de maneira alarmante, a quantidade de pessoas que não conseguem lidar com a ansiedade e outros desafios da psique que, em outros momentos, eram vencidos ao nos colocarmos na prova de aprender a lidar com os outros.

 E, infelizmente, isso se torna um ciclo vicioso: quanto menos desenvolvemos nossas habilidades sociais, mais estranho fica falar por voz; quanto mais estranho fica, mais a gente evita; quanto mais a gente evita, mais perdemos a oportunidade de treinar e desenvolver nossas habilidades. Salvaguardando as diferenças, é como um músculo que, ao não ser usado, atrofia.

Naturalmente, ao não sabermos lidar com nosso emocional, também não saberemos refletir sobre o básico das relações humanas, como pedir desculpas, pedir ajuda quando necessário, ser grato àqueles que estão ao nosso lado, aprender a resolver conflitos, conversar sobre nossos sentimentos, admitir quando estamos mal e, muito menos, ser capazes de criar laços inquebrantáveis uns com os outros, que só podem ser construídos a partir dessa resiliência emocional, forjada sobre os golpes que a experiência comum nos dá.

Como combater essa mentalidade?

A boa notícia é: ninguém precisa virar o “louco das ligações”. Ninguém precisa atender tudo o que toca. E muito menos precisa começar a ligar para todo mundo do nada, como se fosse um hábito obrigatório. Mas existem maneiras de recuperar um pouco da presença que estamos perdendo nas relações. E isso pode fazer diferença enorme no jeito como nos sentimos no dia a dia.

O segredo não é ligar mais, pois não é o fato de estarmos em uma ligação apenas que retornaremos a ter uma convivência saudável. O segredo é, na verdade, se permitir conectar mais com os outros. E isso começa aos poucos, do jeito que faz sentido para você.  Talvez começando por pessoas com quem você já se sente confortável, talvez aplicando em situações específicas ou mesmo combinando com amigos formas novas de conversar, sem pressão. 

Dito isso, é curioso perceber como esse afastamento acontece de um jeito quase invisível. Ninguém acorda um dia e pensa: “Hoje eu vou parar de atender ligações para sempre.” Não. É algo que vai acontecendo aos poucos, como quem vai deixando de tocar um instrumento que gostava na infância. A gente simplesmente para de praticar. Quando vê, já perdeu o jeito. E, por vezes, vamos além e insistimos, com teses e argumentos elaborados, que a ligação não faz sentido e que, pelo bem da humanidade praticamente, deveríamos abolir essa maneira “antiquada” de comunicação.

Essa é, ironicamente, a grande contradição do nosso tempo: somos a geração mais conectada da história, capazes de ampliar a comunicação de modo global e falar com quem quisermos, mas, ao mesmo tempo, somos a que mais rechaça a conexão real, a que menos entende o outro e que, via de regra, a que está perdendo a batalha nas relações humanas.

Vale ressaltar que conexão não é só troca de palavras, como muitos podem pensar. A bem da verdade, o que chamamos de “conexão” é a capacidade de se relacionar positivamente com os outros, de modo que se consiga fortalecer esse laço ao longo do tempo. Podemos estabelecer conexão com muitas pessoas, mas se não colocamos energia nessas relações, elas naturalmente perdem o seu contato e, mesmo falando todos os dias, por vezes, podemos ser apenas bons colegas. 

Assim, há uma relação intrínseca entre a forma como criamos a conexão com outras pessoas e a intimidade que possuímos com ela. Para muitos, vivemos a época da indiferença, no qual o íntimo já não existe, pois tudo se torna público nas redes, mas, ao mesmo tempo, tiramos o valor de construir esse tipo de aproximação reservada às pessoas mais próximas. Ao fugir da intimidade acabamos, sem perceber, nos distanciando das nossas amizades, conceito esse quase inexistente para as novas gerações. Os amigos são substituíveis e, em meio a diferentes modos de se relacionar, estamos próximos e, no segundo seguinte, já cortamos os laços que antes nos uniam. 

Visto isso, o primeiro passo para combatermos essa mentalidade é relativamente simples: identificar quais relações da sua vida merecem mais presença. Não falamos aqui de uma presença constante, muito menos invasiva, mas com qualidade afetiva. Quando você percebe quem são essas pessoas, torna-se mais fácil criar momentos reais. Não precisa começar com uma ligação de meia hora, mas quem sabe uma chamada rápida, apenas para saber como anda a vida e quais as novidades. Às vezes, ouvir alguém dizer “eu tô aqui, tá?” vale mais do que 200 mensagens dizendo a mesma coisa.

A verdade é que nossa geração passou tanto tempo se comunicando por telas que conversar ao vivo parece uma habilidade antiga. Mas é justamente por isso que precisamos reaprender esse contato. Não como um retrocesso, mas como um equilíbrio; afinal, nenhuma tecnologia deveria substituir completamente a forma como o ser humano se conecta de verdade. E reaprender não é algo que acontece de um dia para o outro, pois tudo precisa de tempo. A natureza, já diria um sábio hindu, não dá saltos. Portanto, devemos começar com pouco, com pequenas escolhas, simples mesmo, que podem até parecer bobas, mas que vão reconstruindo nossa capacidade de estar com o outro.

Visto isso, o que precisamos é equilíbrio. Precisamos recuperar a naturalidade da conversa falada, sem tratar isso como algo ultrapassado ou que deve ser evitado a todo custo. Precisamos também aprender a reconhecer quando a mensagem está enfraquecendo nossas relações ao invés de fortalecê-las, porque, mesmo que ela seja um meio eficaz para trocar informações, não é o melhor método para criar conexão entre os seres humanos. Frente a isso, o nosso principal desafio talvez seja reaprender o valor de se comunicar e se relacionar de um jeito essencialmente humano num mundo digital. 

No fim das contas, a pergunta “por que não atendemos mais o celular?” não é só sobre o método de comunicação que escolhemos: é sobre a nossa maneira de se relacionar com o mundo e com os outros; é sobre o jeito como crescemos, sentimos, sobre o mundo acelerado e confuso em que vivemos; é sobre como a tecnologia nos aproximou de tanta coisa e, ao mesmo tempo, nos afastou um pouco daquilo que mais importa: a presença humana. 

A gente não deixou de atender o celular porque ficou preguiçoso, nunca foi sobre isso. A gente deixou de atender porque ficou assustado com o que pode ser falado. Ficou cansado de ter que lidar com outras demandas. Ficou inseguro sobre como se comportar em uma ligação. Ficamos demasiadamente acostumados a controlar cada parte da nossa comunicação, como se ser espontâneo fosse perigoso demais. E, aos poucos, fomos perdendo o costume de conversar “de verdade”. 

Amigos conversando pessoalmente em um ambiente acolhedor.
O retorno à conversa real como chave para fortalecer vínculos.

Não por maldade, ou mesmo por consciência de suas consequências, mas por sobrevivência emocional. Só que evitar a conversa não nos protege de verdade. Pelo contrário: nos deixa mais sozinhos, mais ansiosos, mais distantes até das pessoas que amamos. Agora é a hora de retomar velhos hábitos, de dar um passo atrás, reconquistar nossa liberdade emocional e sermos capazes de aprender a se (re)conectar com os outros.

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