No século XVII, René Descartes escreveu uma das frases que o eternizou como um dos principais filósofos da humanidade: “Penso, logo sou” (Cogito ego sum, no original). Apesar de uma frase “simples”, a ideia de que a razão é o principal componente da vida humana tem sido celebrada nos últimos quatrocentos anos. Diversos movimentos exaltaram – e ainda exaltam – nossa capacidade racional, e é fato que graças a ela conseguimos desenvolver nossa tecnologia de forma assustadoramente rápida no último século. Entretanto, será que somos apenas isso, seres que pensam e utilizam o cérebro de forma mais eficaz do que outras espécies?
Hoje acredita-se que o cérebro é o principal órgão do corpo humano. A nível biológico é inegável o valor que ele possui, visto que quase todo o sistema nervoso se concentra na sua região, e ele é responsável por interpretar os estímulos que nossos sentidos captam. Nosso cérebro é capaz de decodificar, interpretar e dar respostas a esses estímulos, fazendo com que nossa interação com o mundo seja dinâmica.
Também é no cérebro que uma série de hormônios e substâncias são produzidas, a maioria está diretamente ligada às nossas emoções e prazeres. Desse modo, além de responder aos estímulos externos, o cérebro também é capaz de nos lançar em uma gama de sentimentos, produzindo diversas sensações.
Por ser tão importante para nossa existência, qualquer lesão nesse órgão pode ser perigosa, deixando sequelas e até mesmo nos levando à morte. Por essas razões e o estimado valor que o cérebro possui em nossa vida, a ciência – principalmente a desenvolvida no início do século XX – considerava que o Ser Humano era, em resumo, um corpo comandado pelo cérebro. O cérebro seria, portanto, o que nós realmente somos, e nele habitaria nossa essência. Logo, a frase de Descartes estaria correta: somos o que pensamos.
Nos dias atuais, entretanto, começa-se a questionar sobre a soberania do cérebro. Não queremos lhe tirar a importância, uma vez que estas são comprovadas há bastante tempo. Porém, a ciência continua a avançar, e hoje sabemos, por exemplo, que outros órgãos como o coração e o intestino, cumprem funções neurológicas e emocionais, para além dos seus papéis “principais”. Sabemos que no intestino habitam bilhões de microrganismos que regulam nosso corpo, capazes de digerir e ajudar na absorção de nutrientes e nos manter vivos, além de ser considerado o “segundo cérebro” devido à imensa quantidade de neurônios que possui (cerca de 100 milhões). De maneira similar, o coração possui cerca de 40 mil neurônios e se adapta “tomando decisões” autônomas a partir dos estímulos que esses neurônios enviam.
Essas novas descobertas ainda estão longe de tirar o reinado do cérebro como principal órgão do nosso corpo. mas nos lançam para novas perspectivas: será mesmo que somos o que pensamos? Somos mais do que “máquinas biológicas”, que existem em função de um comando central?
Essas são perguntas que desde tempos remotos a humanidade se faz e sua resposta tem variado de acordo com o tempo e a cultura. Na Grécia Antiga, berço de alguns dos maiores pensadores da humanidade, acreditava-se que o Ser Humano era dividido em três partes: Nous (o espírito), Psique (os pensamentos e sentimentos) e Soma (o corpo físico). Nessa perspectiva, o cérebro não seria nossa essência, mas apenas um componente dentro do Soma e da Psique, uma vez que a razão se manifestava através dos pensamentos. Nous seria o elo com a vida espiritual, o ponto em que conectaria o Ser Humano à Divindade, às Ideias, ao Mistério. Todos esses nomes foram utilizados para se referir a algo que transcende a experiência humana, mostrando assim que nossa natureza pode se conectar com o mais profundo aspecto do Universo. Para isso utilizaríamos a Razão razão, que é a capacidade de captar ideias e refletir sobre elas, chegando à sua essência.
É fundamental entendermos que razão e pensamentos são elementos distintos dentro dessa perspectiva. Enquanto a razão se estrutura a partir da captação desse mundo espiritual, mais sutil e que não pode ser alcançado de outra maneira, o pensamento se estrutura pela lógica e é resultado do mundo manifestado.
Para além disso, o cérebro não seria a fonte da qual os pensamentos e a razão nasceriam, mas sim um órgão que captaria esse estímulo externo e o decodificaria. Nesse aspecto, a razão não nasce do cérebro, mas o utiliza para se expressar. Para tornar mais didática essa ideia, imagine o cérebro como uma grande antena de TV. Ela captaria as ondas eletromagnéticas e levaria até a televisão, gerando uma imagem, essa seria a sua função. Assim, Exercícios intelectuais como a Filosofia, a História, a Matemática e demais ciências serviriam como formas de melhorar o desempenho do cérebro, fazendo com que sua “antena” captasse sinais distintos e mais difíceis de serem alcançados.
Podemos perceber que o cérebro, nessa perspectiva, é apenas um aparelho que conecta o Ser Humano a esse mundo sutil. Então, não somos o nosso cérebro, muito menos os pensamentos que correm através dele, mas sua importância é fundamental, disso não temos dúvidas. Apesar disso, em outras culturas esse órgão tão estimado não era nem um pouco valorizado.
A cultura egípcia, por exemplo, encontrava mais respostas no coração do que necessariamente no cérebro. Era no coração que residia a alma humana e a fonte de todas as intenções que tivemos em vida. Por essa razão, esse era o único órgão que não podia ser retirado no processo de mumificação, para que no outro mundo o coração do morto fosse pesado na balança da justiça, tendo como contrapeso a pena de Maat.
Poderíamos passar dezenas de páginas elencando civilizações e culturas que, assim como os egípcios, também apontaram outros aspectos do corpo humano como a residência da nossa essência; porém, nos parece mais interessante entender que o que nos faz humanos não é apenas um aspecto de nossa existência, mas sim todas as partes que nos compõe. Tal qual um quebra-cabeça que fica incompleto sem uma de suas partes, não podemos renegar nem um dos nossos aspectos, do mais simplório ao mais complexo. Todos cumprem uma função em nosso organismo e na nossa relação com a vida.
Não somos, portanto, seres cerebrais. Somos seres que possuem um grande cérebro, assim como um grande coração, capaz de desenvolver em seu interior as maiores qualidades que a humanidade já viu. Sejamos, enfim, o que viemos ser: Humanos!