Série “Os Livros Sagrados”: Definição, Origem e Por Que Ainda Transformam a Humanidade

Os livros sagrados acompanham o destino humano de buscar o transcendental. Diferentemente de outras espécies, temos autoconsciência e isso nos lança a perguntas existenciais: de onde vim, para onde vou, quem sou? Na antropologia, o salto humano não foi só tecnológico e linguístico, mas também simbólico e ritual, quando passamos a criar atos e narrativas que ultrapassam a vida objetiva para nomear o invisível.

Série Os Livros Sagrados: mosaico de manuscritos e tradições
Livros sagrados: uma janela para o humano e o transcendente

É por isso que, para alguns antropólogos, não somos somente homo sapiens, que em latim significa “o homem que sabe”, mas também homo religiosus, o homem religioso, ou aquele que busca religar-se a esse aspecto transcendente. Ao refletirmos sobre esse assunto, nos parece adequado, de fato, o termo religious, uma vez que a religião é, por finalidade, uma maneira que a humanidade encontrou, desde a pré-história, para tentar explicar aspectos do mundo e dilemas internos, tentando assim uma nova abordagem para tais questões existenciais.

Podemos afirmar que isto é o que realmente nos diferencia dos outros seres da natureza, afinal, alguns animais são capazes de criar linguagem, como as baleias, outros se divertem e entendem o que é prazer, como os golfinhos e as orcas, até mesmo alguns primatas já possuem um grau de raciocínio lógico ao resolver pequenos problemas.

Logo, o que de fato nos faz diferentes? Nenhum dos exemplos citados é capaz de refletir sobre a morte, a vida e a própria existência. Nenhum deles faz ritos e reza por seus mortos, ou é capaz de buscar respostas sobre a origem do universo. Isso só o ser humano o faz, e essa inquietação, essa busca por transcender o mundo objetivo, é o que nos torna únicos.

Visto isso, cada cultura humana produziu, ao longo do seu tempo de existência, uma forma religiosa. Com ela, surgiram escritos que ajudaram a organizar e definir ritos, valores e respostas para a humanidade e que são verdadeiras pérolas de sabedoria, prontas para serem acessadas por qualquer um de nós. Essas doutrinas, sintetizadas em palavras, parábolas, mitos e histórias ganharam o status de “sagrado”, pois algumas, como veremos, foram interpretadas como a própria palavra de Deus para a humanidade.

Série Os Livros Sagrados: mosaico de manuscritos e tradições
Livros sagrados: uma janela para o humano e o transcendente

Nesse sentido, os livros sagrados das religiões sempre ocuparam um lugar privilegiado na história da humanidade. É fundamental ressaltar que eles não são apenas livros religiosos, mas verdadeiras janelas que permitem vislumbrar os valores, as angústias e as esperanças de civilizações inteiras e por isso não devemos menosprezá-los, seja de qual doutrina for, muito menos achar que não há valor nessas palavras caso não sejamos uma pessoa religiosa, pois tais escritos nos dão um direcionamento e uma visão de mundo da qual, sejamos fiéis seguidores ou não, podemos nos beneficiar, com suas reflexões. Assim, ler um texto sagrado é, de certa forma, colocar-se diante do coração pulsante de uma tradição e poder beber de uma fonte de sabedoria.

Partindo dessa perspectiva, nos cabe perguntar: o que define um texto como sagrado? Por que a humanidade os preserva, lê e retorna a eles constantemente? E mais: como até mesmo alguém que não se considera religioso pode se enriquecer ao conhecê-los? É sobre essas questões que vamos nos debruçar.

O que são Os Livros Sagrados?

Para refletirmos sobre esse assunto é fundamental definirmos o que estamos chamando de “Os livros sagrados”. Em síntese, um texto sagrado é um escrito que, dentro de uma tradição, é reconhecido como portador de uma autoridade espiritual. Mais do que simples registros históricos, eles são vistos como canais que conectam o humano ao divino, o finito ao infinito, a vida cotidiana ao mistério da existência. Porém, não pensemos que algo “espiritual” está relacionado com fantasmas ou um mundo “sobrenatural”. 

A bem da verdade, o que chama-se de “espiritual” é o aspecto imaterial do ser humano, ou seja, aquilo que não pode ser tocado ou percebido pelos nossos sentidos comuns. Nossas virtudes, sentimentos e ideais, por exemplo, podem ter uma finalidade transcendente e serem espirituais, quando não buscam realizar-se com o mundo material.

Vamos pensar no seguinte exemplo para entendermos: Imagine que estamos ajudando uma pessoa. Podemos tomar ações que a beneficie e internamente estarmos com pensamentos de crítica, com segundas intenções ou mesmo fazendo apenas “por obrigação”. Assim, por mais que o ato esteja conectado com uma virtude, a bondade ou a generosidade, por exemplo, internamente não há nada virtuoso acontecendo. Ou seja, essa ação, por mais eficaz que seja, nada tem de espiritual. O espiritual, portanto, ocorre quando conectamos aquilo que fazemos com sentimentos e pensamentos que estão para além dos resultados objetivos, do ganhos ou benefícios que teremos. É uma ação livre de desejos, realizada apenas pelo dever moral.

Uma vez que entendemos o que chamamos de “espiritual”, devemos explicar outra palavra que, em geral, nos causa uma grande confusão. O termo “sagrado” não se refere apenas a algo religioso no sentido estrito, mas sim a tudo que nos destina a uma vida mais próxima do divino, que sacraliza a nossa existência. Logo, sagrado não é necessariamente fazer orações, mas estar dedicando-se a esse aspecto transcendente. Sendo assim, textos sagrados são aqueles que têm, por grande finalidade, nos aproximar desse mistério que chamamos de Deus.

Embora possam compartilhar características com obras literárias e filosóficas, os livros sagrados se distinguem por sua função e pela maneira como são recebidos. Um poema pode emocionar, uma filosofia pode iluminar a razão, mas um texto sagrado é considerado uma ponte para algo maior do que o indivíduo. Por exemplo, enquanto Platão buscava compreender o mundo pela razão, os Vedas, na Índia, buscavam transmitir um conhecimento revelado, que deveria ser preservado como herança espiritual. A diferença, portanto, não está apenas no conteúdo, mas também no status simbólico e no valor comunitário que essas obras assumem.

Grande parte dos livros sagrados nasceu antes mesmo da invenção da escrita, o que parece contraditório, porém, ainda sim, extremamente real. Isso ocorreu porque durante séculos eles foram transmitidos oralmente de geração em geração, guardados na memória de mestres, sacerdotes, bardos e anciãos. Esse cuidado em preservar as palavras com exatidão mostra a importância que já se atribuía ao conteúdo.

Transmissão oral diante do fogo e registro em papiros e pergaminhos
Da voz à escrita: a memória que atravessa milênios

Com o surgimento da escrita, essas tradições ganharam uma nova forma de imortalidade. O que antes dependia da voz humana passou a ser registrado em tábuas, papiros e pergaminhos, permitindo que viajassem pelo tempo e pelo espaço, ganhando assim novos horizontes e sendo mais fidedignos que a memória humana. Assim, aquilo que era proclamado à beira de uma fogueira pôde atravessar milênios e chegar até nós.

Além do caráter objetivo dessas escrituras, o próprio nascimento desses textos, em geral, envolve alguns mitos. Por exemplo, em geral um texto sagrado está frequentemente ligado a uma experiência considerada extraordinária. Pode ser a revelação de uma divindade, como no caso do Alcorão, recitado a Maomé, ou a iluminação de um sábio, como Buda, cujos ensinamentos foram reunidos em sutras.

Porém, isso não é uma regra. Há  também textos que surgem da memória coletiva de um povo. O Popol Vuh, dos maias, é exemplo disso: uma narrativa que combina mitologia, história e espiritualidade, refletindo a identidade profunda de um povo. Nesse sentido, os livros sagrados são tanto revelação quanto memória, um encontro entre a experiência do mistério e a preservação cultural.

Revelação individual e memória de um povo em diálogo visual
Entre o encontro pessoal e o patrimônio comunitário

Visto suas diferentes origens, pode-se entender que os textos sagrados raramente falam de forma literal, sendo o simbolismo uma característica comum para todas as narrativas. Essa linguagem simbólica permite que eles sejam interpretados em múltiplos níveis, de acordo com a maturidade e a sensibilidade de quem lê. Um exemplo claro está nas parábolas de Jesus: simples histórias sobre sementes, vinhas e pescadores que, no entanto, carregam sentidos profundos sobre a vida, a fé e a justiça. O simbolismo dá aos livros sagrados uma vitalidade inesgotável, pois sempre há algo novo a ser descoberto em cada leitura.

Outro traço essencial dos livros sagrados é a tentativa de apontar para além do humano, revelando aspectos da natureza que estão para além de nossa vida comum. Mesmo quando falam de questões práticas, como leis de convivência ou regras de conduta, eles o fazem a partir de um horizonte transcendente, tendo como finalidade a ascensão da alma até um outro local, metafísico por excelência, que é a verdadeira morada da alma humana. Esse “algo além” pode ser chamado de Deus, Absoluto, Nirvana ou simplesmente Mistério. Independentemente do nome, essas narrativas fazem o leitor ultrapassar os limites da vida cotidiana e contemplar dimensões mais amplas da existência.

Junto a isso, um aspecto importante é que a maioria destes textos não existem apenas como obras escritas, mas exigem uma série de ritos e práticas feitas de maneira coletiva. São lidos em templos, recitados em cerimônias, usados em momentos de nascimento e morte, o que denota um profundo caráter de comunidade e isso, via de regra, fortalece o sentimento de pertencimento dentro daquela sociedade. É assim que os elos da religião se formam, de modo sólido.

A importância dos Livros Sagrados para a humanidade

Independentemente da tradição, os livros sagrados são portadores de valores universais como justiça, compaixão, solidariedade e respeito à vida. Muitos princípios éticos que hoje consideramos fundamentais, como não matar, não roubar e ajudar o próximo, foram transmitidos e fortalecidos por meio desses textos.

Para um leitor mais crítico da religião, pode-se afirmar que tais princípios são “óbvios” e que uma visão básica de justiça já os estabeleceria; entretanto, é importante entender que a vida em comunidade surgiu antes das leis e do próprio estado, e num primeiro momento, em um estágio primitivo, foi necessário um aspecto moral e transcendente para estabelecer tais ideias. Nesse ponto, apesar de parecer algo simplório para o convívio humano, essas regras básicas foram o alicerce – e ainda o são – de grandes constituições e leis.

Comunidade diversa lendo livros sagrados em cerimônia respeitosa
Leitura, rito e pertencimento

Além desse aspecto objetivo, poucos textos tiveram impacto tão profundo na produção artística quanto os sagrados. Gerações de artistas, das mais diferentes áreas, foram inspiradas pelas narrativas religiosas. A arquitetura de catedrais, a pintura de ícones, a poesia mística e até a música clássica encontram nessas narrativas sua fonte de inspiração. De “A Divina Comédia” de Dante à “Nona Sinfonia de Beethoven”, da caligrafia islâmica às mandalas budistas, os livros sagrados moldaram a expressão estética de diferentes culturas. Isso por si só já deveria ser motivo suficiente para entendermos a importância de conhecer esses livros sagrados, pois, se não os dominarmos minimamente, não poderemos compreender grande parte da arte e da cultura que nos cerca.

Além disso, também é fundamental entender a relação entre tais textos e a ciência. Apesar de existir, dentro do senso comum, um forte embate entre ciência e religião, a história mostra que os livros sagrados também estimularam reflexões que deram origem à filosofia e ao pensamento científico. Também é importante destacar que ciências como a história, a antropologia e a teologia estão diretamente ligadas a essas escrituras, usando-as como fontes para desvendar alguns mistérios sobre a própria humanidade. Assim, mesmo que não sejam livros científicos, os livros sagrados abriram caminhos para o questionamento intelectual.

Visto isso, é fundamental entender como podemos interpretar tais narrativas. Talvez a grande polêmica e discussão atual sobre esses textos seja, no fundo, uma interpretação equivocada que muitos fazem do que é descrito. Há, por exemplo, quem cometa o erro de ler de maneira literal esses textos, ou seja, entendendo cada palavra como um relato exato dos fatos. Outros preferem uma leitura simbólica, vendo-os como metáforas e narrativas pedagógicas destinadas a transmitir verdades espirituais e éticas.

Por exemplo, o Gênesis, no judaísmo e cristianismo, não deveria ser lido como um relato histórico da criação em sua literacidade. Deus não criou o mundo em sete dias, ou não pelo menos em sete dias terrestres, como muitos interpretam. Na verdade, o sete é um símbolo de perfeição, visto a numerologia. Assim, perceber esses significados escondidos na narrativa se faz essencial; caso contrário, jamais poderemos extrair as ideias mais profundas dessas palavras sagradas. 

A grande magia dos livros sagrados está justamente nessa capacidade de usar símbolos para transmitir ideias e poder aos que entendem essa linguagem, dialogar com diferentes leitores e contextos, permitindo o acesso a ideias tão antigas quanto a própria humanidade e, ao mesmo tempo, extremamente válidas.

Dito isso, é natural que um dos grandes empecilhos para uma correta interpretação dos textos sejam as traduções e modificações ao longo dos séculos. Como trata-se, em geral, de textos antigos, não podemos achar que a versão atual que estamos lendo é completamente fidedigna à primeira, criada há milênios. Além disso, quase todos os livros sagrados foram escritos em línguas antigas, muitas delas, inclusive, estão “mortas” no nosso tempo, como o grego antigo, o latim e o aramaico. Traduzir tais obras se torna um desafio hercúleo, e erros são naturais nesse processo. Entretanto, isso não invalida os ensinamentos, visto que podemos interpretar seus símbolos e extrair os ensinamentos, mesmo que não sejam iguais aos originais.

O olhar do não religioso sobre os Livros sagrados

Como já demonstramos, mesmo quem não professa uma religião pode se beneficiar dos ensinamentos presentes nos livros sagrados. Isso porque, no fundo, um texto sagrado não busca converter seguidores, mas apresentar um caminho de transcendência para a humanidade. Logo, todo e qualquer ser humano pode buscar tal caminho, sem se prender a dogmatismos ou se filiar a uma religião.

Leitura laica de livros sagrados em biblioteca contemporânea
Sabedoria acessível a todos

Vamos tomar como exemplo o famoso “Sermão da Montanha”, no cristianismo. Nele, Jesus fala de mansidão, justiça e misericórdia, valores que transcendem crenças. Não podemos dizer que esses são valores exclusivamente cristãos, pois todo e qualquer ser humano pode viver essas virtudes, independente de qualquer aspecto de sua vida. Da mesma forma, os preceitos do budismo sobre o desapego e a compaixão podem inspirar qualquer ser humano.

Portanto, não devemos observar essas obras a partir de um preconceito, ou seja, um conceito pré-concebido e enraizado em nossas culturas, que, infelizmente, não buscam a unidade. Na realidade, tais textos funcionam como espelhos da condição humana, oferecendo reflexões sobre como viver com dignidade, solidariedade e coragem, independentemente de fé. E isso pode ser extremamente benéfico para quem se permite conhecer um pouco mais de cada uma dessas doutrinas.

Assim como visitamos catedrais, mesquitas e templos como patrimônio artístico e para adquirir mais capital cultural, podemos também ler seus textos como parte do legado comum da civilização. Preservá-los e estudá-los, portanto, não é uma questão de fé ou crença religiosa, mas uma atitude que visa preservar a memória coletiva da humanidade em sua busca incessante pelo sentido da vida.

Além disso, a busca por respostas também pode nos levar a investigar tais textos sem estarmos conectados diretamente a uma forma religiosa. Afinal, quem de nós não se pergunta sobre de onde viemos, por que estamos aqui, para onde vamos? Essas perguntas não são exclusivas de religiosos; são humanas. Sendo assim, ao abrir um texto como o Bhagavad Gita, somos confrontados com dilemas éticos que ressoam ainda hoje: agir ou não agir? Viver para si mesmo ou para o bem comum? Do mesmo modo, ao ler o Eclesiastes, percebemos que a busca de sentido, a vaidade dos esforços humanos e a passagem do tempo são preocupações universais.

Os livros sagrados, portanto, não fornecem respostas prontas, mas nos colocam diante do mistério da vida e nos convidam a refletir, a dialogar com aquilo que é maior do que nós. Mesmo fora de uma tradição religiosa, todos os seres humanos experimentam momentos transcendentes, em que não há uma explicação objetiva e flui de dentro de nós uma alegria ou percepção única. Podemos citar como exemplo o nascimento de um filho, a contemplação de um pôr do sol, a sensação de estar em comunhão com algo imenso e inexplicável. Todos esses momentos, apesar de podermos explicá-los objetivamente, despertam em cada ser humano algo único, intrínseco e que é, ao mesmo tempo, belo e misterioso.

Por conta disso, percebendo a necessidade de conhecermos um pouco mais sobre cada uma dessas escrituras, nós da Feedobem decidimos começar mais uma série para que vocês, nossos leitores, possam se aprofundar um pouco mais em tradições que, via de regra, são pouco conhecidas em nosso mundo. A sociedade atual, cada vez mais mergulhada no materialismo, tende a deixar de lado esses assuntos que nos ajudam a transcender, logo, nos sentimos na obrigação de reacender uma chama de sabedoria e ensinar, através desses livros, alguns valiosos ensinamentos destes livros.

Portanto, não percam os próximos capítulos da série “Os Livros Sagrados”, pois nele vamos aprender como  ler tais obras é mais do que estudar religião ou crenças antigas. É, acima de tudo, permitir entrar em contato com séculos de sabedoria, com a profundidade do espírito humano e com a dimensão do mistério que atravessa nossa existência. Mesmo que você não se considere religioso, esses Livros podem oferecer inspiração, consolo e novas formas de ver o mundo. Também podem ajudá-lo a compreender melhor não apenas outras culturas, mas também a si mesmo. Aguardamos todos para acompanhar essa bela série!

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