O apego aos bens, o nosso mal do século

De vez em quando precisamos parar na vida para fazer um auto-exame de consciência, e nos perguntar o quanto estamos apegados aos bens, onde está realmente o nosso coração e se vale a pena gastar a vida nessa busca. Neste texto vamos falar sobre quando o apego excessivo às coisas está associado a um transtorno de personalidade. Falaremos também sobre o que esse comportamento atrai na vida, suas consequências e sua correlação com a estrutura social, política e econômica, mas o nosso principal objetivo nesta reflexão é entender como os grandes Mestres da Humanidade lidaram com os bens materiais e correlacionar essa postura com a transitoriedade da vida frente à eternidade.

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Lidar com os bens materiais é sobretudo uma questão de discernimento. Essa palavra tem origem no verbo discernere, do latim, e significa, entre outros sinônimos, distinguir. Então, antes de se falar qualquer coisa sobre “apego a bens materiais”, é preciso distinguir o que seria uma relação necessária com os bens e o que seria uma relação doentia com os bens. 

A necessidade de se ter bens materiais é uma inevitabilidade hoje. A logística da vida contemporânea exige que se tenha um aparato mínimo necessário de coisas para dar conta de uma rotina mediana. Precisamos de moradia, seja própria ou alugada, precisamos de transporte, seja próprio ou alugado, precisamos de alimentação, vestuário, meios de comunicação, como smartphones, computadores, entre outros, precisamos também de assistência à saúde, formação profissional, além de outros elementos. Constituir esse conjunto de coisas na vida requer muito foco, muito trabalho, muito esforço, muita concentração e direcionamento de energia para essas aquisições. Até aí estamos diante de uma relação necessária com as coisas, baseada nas contingências da vida, na necessidade de subsistir no mundo. No entanto, às vezes, perdemos a noção da real finalidade de se ter essas coisas e passamos a usá-las como um lenitivo para as nossas dores psíquicas, uma espécie de compensação para as nossas fragilidades.

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Quando os bens começam a se tornar uma espécie de anestésico para as dores provocadas pela ansiedade, insegurança, frágil autoestima, estamos diante de uma relação doentia com eles, que pode levar a um apego excessivo. Os psicólogos falam de um transtorno de personalidade muito comum hoje denominado “narcisismo”, em referência ao mito grego de Narciso. Um rapaz que se encanta de forma tão avassaladora pelo seu próprio reflexo nas águas de um rio, que isso o leva ao suicídio. Esse mito é um jeito intuitivo de falar de uma disfunção da nossa personalidade. Quando inflamos demais o senso de nossa própria importância, quando somos desesperadamente carentes de atenção, quando a nossa empatia e a nossa autoestima são muito frágeis é sinal de que podemos ter uma disfunção narcisista da personalidade e isso leva ao apego excessivo aos bens. 

Nesses casos, a posse dos bens funciona como uma proteção à auto-insegurança. Uma pessoa muito insegura de si, que se sente muito inferior, às vezes usa um veículo de grande porte como uma espécie de proteção, de autoafirmação. Ou um apartamento nos últimos andares de um arranha-céu. É importante, claro, ter discernimento diante desses exemplos, pois nem todo mundo que detém esses tipos de bens tem transtorno de narcisismo, mas esse pode ser o sonho de consumo de um narcisista. É fato que a maioria da população não tem condições de se refugiar nesses apetrechos, mas age no mesmo sentido quando traduz seu transtorno em um consumismo desenfreado, amargando fortes instabilidades financeiras, super-endividamentos, e muitas vezes até desvios de conduta para dá conta da necessidade de se ter um padrão de vida além de seus limites objetivos. Isso ocorre em todos os segmentos da sociedade, mas é na classe política onde esse sintoma vem se tornando muito visível. Às vezes nos perguntamos: o que faz um gestor público desviar dinheiro de orçamentos tão socialmente relevantes, como merenda escolar e aparelhos de UTI’s? Mesmo cientes do risco de serem pegos e de destruírem sua vida pública? Às vezes por trás de um ato de uma corrupção agressiva às necessidades sociais, há uma personalidade patologicamente apegada aos bens. Portanto, o apego doentio às coisas pode ser uma doença psíquica, pode levar ao suicídio, e é extremamente grave quando afeta pessoas que estão investidas em cargos públicos elevados, pois podem trazer enormes prejuízos à sociedade. 

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As consequências desse mal, que poderíamos dizer que é o “mal do século”, não são apenas colaterais, ou seja, não se restringem a pessoa que pratica a ação, por tabela, passa a alcançar a sociedade, mas são inevitavelmente graves para o indivíduo que o pratica. Uma pessoa muito apegada aos bens tende a se sentir vazia, pois está tentando preencher uma lacuna que não se preenche com coisas. Não se resolve um problema de autoestima comprando uma roupa, se alguém lhe vendeu esta ideia, lhe enganou. A autoestima se resolve com autoconhecimento e com reposicionamento na vida. Não se supera uma insegurança pessoal comprando um carro caro, para impressionar os demais. O problema da insegurança tem que ser trabalhado a partir de uma descoberta a respeito de quem você realmente é. Não se cura um transtorno de ansiedade, consumindo compulsivamente, isso tende a catalisar ainda mais a ansiedade, pois esses prazeres do consumo, do poder, da ostentação são prazeres insaciáveis, infinitos, quanto mais se tem, mas se necessita ter mais e isso gera um estado incontrolável de ansiedade. 

O apego excessivo aos bens pode levar à autodestruição, pois é um ciclo vicioso. Quem se apega muito às coisas em detrimento de Valores Humanos tende a atrair para seu círculo de relações pessoas interesseiras e em geral com o mesmo problema de apego, o que vai criando um reforço mútuo. Aos poucos o indivíduo vai ficando tão supérfluo e efêmero quanto os bens a que está estendendo a sua Alma. Vai se tornando pouco a pouco um refém da objetificação, vazio, raso e dividido em uma variedade de interesses e impulsos para todos os lados.  Pessoas assim em geral não falam de outro assunto que não esteja relacionado a coisas: roupas, comidas, carros, móveis, calçados, etc. Limitam seus alcances ao mundo das sensações, ao imediato, e até são atrativos em certa medida, mas quando se necessita de um amigo para tratar de aspectos mais profundos da existência não dá para contar com esse tipo de pessoa. Assim, vão ficando muito solitários, pois vão amealhando para si apenas uma rede de gente interessada momentaneamente em um papo sobre coisas, travestidas de amigos, mas as amizades genuínas não nascem daí, tem uma raiz em aspectos mais profundos do Ser, e como os super-apegados aos bens não tem essa raiz no Ser, tendem, por conseguinte, à verdadeira solidão. Sentem-se sozinhos mesmo tendo muita gente por perto e em geral nem sabem o porquê de tanta solidão. Essa falta da dimensão profunda da existência, essa ausência de amigos verdadeiros, essa perda da consciência da imortalidade, essa confusão entre as coisas que são finitas, passageiras e vulneráveis e as que não são, podem levar o indivíduo a um colapso existencial tão grave que pode descarrilar em alguma atitude suicida como no mito de Narciso.

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Veja que não é fácil existir. Há uma guerra invisível acontecendo no campo sutil dos estados mentais e psíquicos. O que fazer diante disso? Como não cair nessas ciladas? Um conselho prático para lidarmos bem com a existência é olharmos para as grandes tradições da Humanidade e vermos como os grandes Mestres lidaram com a arte de viver. Ao longo da história da Humanidade, nos deparamos com Mestres de Sabedoria, por exemplo, na história da civilização grega aparece Sócrates, que se torna tão essencial ao pensamento Humano que os historiadores da filosofia o colocam como marco temporal do pensamento ocidental. Na região dos Himalaias, entre a Índia e a China há dois mil e quinhentos anos, outro grande Mestre se destaca no sistema de pensamento oriental, o Sidarta Gautama, Buda. Na Palestina, Jesus surge no começo de nossa era, tão impactante no sistema de pensamento ocidental que também o colocam como divisor da periodicidade histórica: antes de Cristo e depois de Cristo. Olhando para essa cadeia de Mestres que periodicamente surgem ao longo da história Humana, a lógica parece apontar para uma providência misteriosa ao encontro das necessidades da Humanidade. 

Há uma passagem nos evangelhos em que Jesus diz para os seus discípulos: “as raposas têm covis, as aves do céu o seu ninho mas eu não tenho onde reclinar a cabeça”. Em outra passagem ele diz: “por que andais ansiosos com o que haveis comer e vestir, olhai os lírios do campo, eles não tecem nem fiam, mas nem Salomão com toda a sua grandeza conseguiu se vestir como eles”. Esse mestre que nasceu no lugar onde as vacas comem, e construiu uma escola de discípulos com pescadores e pessoas muito simples, passava uma mensagem de desapego aos bens deste mundo. Sócrates inaugurou um sistema de educação que consistia em fazer nascer em nós, assim como as parteiras traziam os filhos à luz, algo que lateja dentro, como uma semente que quer florescer. O que esses Mestres de Sabedoria nos trazem, não tem a ver com coisas, mas com Espírito, com aspectos profundos que a morte não leva, pois não são transitórios. O que é real não morre. Nossas dores são frutos dessa confusão que fazemos entre o ilusório e o não ilusório, entre o que está passando e o que é eterno. O super apego aos bens materiais, à luz da Sabedoria dos grandes Mestres que passaram por esse mundo, consiste em um mergulho na ilusão e por conseguinte trás muitas dores. Superar esse apego é curativo e libertador. 

Cecília Meireles no Cântico IV diz: “(…) não queiras ser tu, queiras ser a alma infinita de tudo. Troca o teu curto sonho humano pelo sonho imortal. (…) troca-te pelo desconhecido. Não vês, então, que ele é maior? Não vês que ele não tem fim? Não vês que és tu mesmo? Tu que andas esquecido de ti”. O mergulho nos bens materiais, a redução da vida ao sustento financeiro e a volúpia de se ter muito o tempo todo é apenas um sonho curto, um esquecimento de quem somos em profundidade. Somente uma conexão profunda com nossa Alma é capaz de nos curar dessa cegueira e nos redirecionar para o que realmente vale a pena se apegar, que são os Valores Eternos. O que precisamos buscar com toda a força que há em nós é a Sabedoria, o desenvolvimento de uma vida amorosa, paciente, sensata, equilibrada, virtuosa, isso sim são tesouros que vale a pena acumular. Não desperdicemos tempo e energia na acumulação excessiva e doentia de bens passageiros, pois isso vai na contramão da evolução. Evoluir é trazer para o plano da consciência os tesouros eternos que jazem inconscientes nas profundezas de nós mesmos.

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