O Mahabharata é uma das maiores pérolas de sabedoria da humanidade, um épico milenar que reúne filosofia, drama, dilemas éticos e espiritualidade em uma narrativa atemporal. Mesmo com culturas distintas, suas lições conectam corações e mentes ao redor do mundo. Em um mundo repleto de diferenças, poucas são as obras que, de tão grandiosas e tão transformadoras, conseguem tocar tantos corações e mentes quanto o Mahabharata. Imagine um épico que em suas páginas reúne filosofia, drama, dilemas éticos, mitologia, poesia e espiritualidade, tudo entrelaçado em uma narrativa que prende o leitor do início ao fim. Essa é a alma do Mahabharata, um presente da Índia para o mundo.

Escrito há milhares de anos, esse épico continua incrivelmente atual. Nesse sentido, o Mahabharata não é apenas um relato de reis e batalhas, mas é também um espelho da alma humana, um manual para compreender o dever, a justiça e a essência da existência de nossa espécie. Se você nunca ouviu falar sobre essa obra, hoje iremos apresentá-la e aprofundar suas ideias principais para que possamos reconhecer o valor que a civilização hindu proporcionou ao mundo ao deixar essa grande narrativa para a humanidade.
O que é o Mahabharata?
Devemos começar do princípio: afinal, o que é o Mahabharata? Em linhas gerais, estamos diante do maior poema épico já escrito. Com mais de 200.000 versos distribuídos em cerca de 1,8 milhão de palavras, ele é aproximadamente dez vezes mais longo que a Ilíada e a Odisseia juntas. Isso por si só já é um grande feito, porém, de nada adiantaria encher um livro de versos se estes não nos tocasse profundamente. Portanto, mais do que números, sua força reside na profundidade com que aborda as questões fundamentais da vida.
A obra narra a disputa entre dois grupos da mesma família real: os Pandavas e os Kuravas. Essa luta de primos se dá pelo trono do reino de Hastinapura; no entanto, essa disputa se desdobra em camadas de ensinamentos morais, espirituais e filosóficos que exploram o comportamento humano em suas formas mais nobres e sombrias.
Na tradição hindu, o Mahabharata não se resume apenas a uma história com lições de moral, ele é, antes de tudo, um texto sagrado. Assim como a Bíblia para os cristãos, a Torá para os judeus e o Alcorão para os mulçumanos, a narrativa do Mahabharata é considerada uma história divina, escrita e deixada pelos deuses. Além disso, ele contém ensinamentos profundos sobre o Dharma, o Karma e a busca pela verdade, conceitos fundamentais no hinduísmo.
Junto a isso, nos versos desse belo poema épico está inserida a Bhagavad Gita, considerada uma das maiores obras filosóficas da humanidade. Ainda nesse texto falaremos um pouco mais sobre ela; porém, já possuímos em nosso portal um texto aprofundando essa bela história, que está contida no Mahabharata. Você poderá acessar o texto clicando aqui.
Voltando-se para os aspectos históricos, o Mahabharata surgiu em um tempo que hoje chamamos de época védica, entre 1500 e 500 a.C., em um território que corresponde à atual Índia e partes do Paquistão e Nepal. A sociedade dessa época era profundamente ligada à oralidade, aos rituais védicos e à transmissão de conhecimento por meio de rishis, título dado aos sábios.

As histórias eram passadas de geração em geração, muitas vezes entoadas em canções ou poemas, preservando com fidelidade os detalhes de cada narrativa. Assim, o Mahabharata foi se formando primeiramente como tradição oral, depois como compilação escrita.
Visto que sua origem é a transmissão oral, não é possível datar com precisão quando, de fato, começaram a desenvolver tais histórias e lições, sendo sua origem um tanto quanto imprecisa. Por séculos, o Mahabharata foi recitado por poetas e rishis, que mantinham a memória da civilização viva. Vale ressaltar que a escrita já existia neste povo; logo, a escolha por manter uma tradição oral não foi pela limitação de outra maneira de registrar suas histórias, mas sim uma decisão. A oralidade não era uma limitação, mas sim um canal de acesso à espiritualidade. Recitar o Mahabharata era um ato de devoção, uma prática de memória sagrada e não uma diversão ou passatempo.
Foi esse cuidado com a tradição oral que possibilitou a preservação de uma obra tão longa. Cada verso, cada nome, cada ensinamento era sagrado. As escolas védicas, verdadeiros centros de sabedoria na Índia Antiga, por exemplo, usavam épicos como o Mahabharata para ensinar aos jovens e transmitir ao longo de gerações a sua tradição. Os rishis que dominavam essas narrativas eram considerados fontes vivas de conhecimento e entre eles, destacava-se um nome: Vyasa. Este foi o grande responsável por escrever os versos do Mahabharata.
Quem foi Vyasa?
Vyasa, também conhecido como Krishna Dwaipayana, é o autor atribuído ao Mahabharata. Ele é considerado um dos maiores sábios da tradição hindu e uma encarnação do próprio Vishnu. Para alguns, Vyasa é considerado um mestre de sabedoria de grau tão elevado quanto Buda, Maomé e Jesus, visto que sua função foi a de estruturar a religião hindu e organizar o Mahabharata. Seu nome, “Vyasa”, significa “compilador”, justamente pelo seu papel de reunir os versos cantados e declamados no Mahabharata em capítulos e livros.

Há diversas lendas e mitos sobre Vyasa. Uma delas diz que ele presenciou os eventos descritos no épico e os transmitiu diretamente ao mundo como uma forma de preservar o Dharma em tempos de decadência espiritual. Segundo a lenda, Vyasa ditou o Mahabharata ao deus Ganesha, o deus da sabedoria, que o escreveu com sua própria presa. Antes de começarem, Vyasa impôs uma condição: Ganesha só poderia escrever se compreendesse cada verso. Assim, o sábio recitava versos tão complexos que o deus precisava refletir, dando tempo para Vyasa compor os seguintes.
Entendemos que esse tipo de mito guarda um símbolo e não reflete um aspecto histórico. Ainda assim, a ideia por trás dessa pequena relação de Vyasa e Ganesha é a de que a obra foi feita em acordo com a sabedoria, ou seja, está diretamente ligada à verdade da natureza.
Vyasa escreveu o Mahabharata não apenas como historiador ou poeta, mas como mestre espiritual. Sua intenção era clara: iluminar o caminho da humanidade por meio de histórias. É provável que sua função tenha sido a de resgatar tais versos, que, ao longo do tempo, foram se perdendo na tradição oral. Sua real intenção, portanto, foi a de garantir que a humanidade continuasse a buscar a sabedoria, e assim ele nos deixou essa bela pérola, que ainda hoje podemos contemplar.
Muito mais que uma batalha
O Mahabharata está dividido em 18 parvas, ou “livros”, que vão desde o nascimento dos personagens até os eventos após a guerra. Cada parva é como um capítulo de uma epopeia divina, carregando consigo não somente a narrativa em si, mas também lições por toda a obra. É importante ressaltar que esses livros não seguem uma linha reta de ação, mas se desdobram em histórias dentro de histórias, o que, de início, confunde os leitores e torna a história um verdadeiro labirinto narrativo. Ainda assim, para os leitores que insistirem em desbravar seus ensinamentos, verá que mesmo após muitas histórias diversas, tudo se entrelaça e se encaixa com harmonia.
O grande “clímax” do Mahabharata é a guerra de Kurukshetra, uma batalha entre os Pandavas e os Kuravas que dura 18 dias. Mas engana-se quem pensa que o foco está apenas na violência e na disputa pelo governo de uma cidade. Essa guerra é símbolo de conflitos internos e morais, de batalhas travadas no coração de cada ser humano.

Os guerreiros de Kurukshetra representam ideias, desejos e sentimentos como a ambição, o dever, a inveja, a compaixão, o sacrifício. Tudo isso converge para uma só pergunta: o que é agir corretamente? Em meio a diferentes desejos, como seguir o verdadeiro caminho? Além dos protagonistas, o Mahabharata traz centenas de personagens com histórias ricas. De Vidura, o conselheiro que sempre age de acordo com o Dharma, a Kunti, mãe devota, passando por sábios, demônios, reis e mendigos — todos compõem o tecido complexo da narrativa.
Vale ressaltar que essas histórias paralelas funcionam como espelhos, ampliando o entendimento sobre a condição humana. Não há personagens perfeitos ou vilões absolutos — todos carregam luz e sombra. Frente a isso, fica claro que o Mahabharata não é apenas um livro na Índia ou que trata apenas da cultura hindu. Ele é, na verdade, parte da própria humanidade e dialoga diretamente conosco.
Quantas vezes já vivemos os dilemas enfrentados por Pandavas e Kuravas? Quantas vezes disputamos, dentro de nós mesmos, com emoções e sentimentos opostos?. Presente em casas, templos, teatros e canções, é impossível compreender a Índia sem entender sua relação com esse épico.
Dentro da sociedade indiana, por exemplo, o valor social do Mahabharata é tamanho que é ensinado nas escolas, celebrado em festivais e revisitado por intelectuais como um fundamento da identidade civilizatória do país. É nítido que essa é mais que uma obra literária, pois moldou – e segue moldando – valores sociais, comportamentos e até leis. Ele inspirou códigos de conduta, conceitos de governança e até debates políticos.
Os personagens do Mahabharata
O Mahabharata é, acima de tudo, uma tapeçaria humana. Seus personagens não são meros heróis ou vilões, mas espelhos de nossas fraquezas, aspirações, medos e grandezas. Cada um deles representa uma dimensão do ser humano e da alma.
Os Pandavas, filhos do rei Pandu, são cinco irmãos que simbolizam virtudes humanas fundamentais: Yudhishthira, o mais velho, representa a verdade e a justiça; Bhima, o mais forte, representa a força bruta temperada pelo amor; Arjuna, o arqueiro, simboliza a disciplina, o dever e o dilema moral; Nakula e Sahadeva, filhos dos Ashvins, representam beleza, sabedoria e lealdade.
Eles são criados no exílio, pois perderam o direito de estar na cidade após serem enganados em um jogo de dados. A punição devido à derrota era a de passarem 12 anos na floresta, e durante este período, passam por duras provações e enfrentam a constante tentação de revidar a injustiça com ódio. Entretanto, optam pelo caminho do Dharma, mesmo quando este é difícil e doloroso.
Os Kuravas, filhos do rei Dhritarashtra, são cem irmãos liderados por Duryodhana, o antagonista principal. Mas não se engane: eles não são simplesmente vilões. São humanos marcados pela ambição, inveja e orgulho, aspectos que estão enraizados em todos nós. Nesse sentido, Kuravas e Pandavas são, em síntese, virtudes e defeitos que, dentro do coração de cada ser humano, disputam uma terrível batalha para dominar a nossa consciência.

Duryodhana deseja o trono que acredita ser seu por direito, e fará de tudo para consegui-lo. Seu melhor amigo, Karna, é um dos personagens mais trágicos do épico. Karna é, a rigor, um Pandava, mas escolheu lutar a guerra ao lado dos Kuravas, pois optou pela “lealdade” a Duryodhana e os benefícios de estar ao seu lado ao invés de lutar nas fileiras dos Pandavas.
Entre todos os personagens, porém, Krishna ocupa um lugar especial. Ele não é apenas um personagem comum, mas sim a encarnação divina, uma manifestação de Vishnu na Terra. Ele atua como estrategista, diplomata e condutor da carruagem de Arjuna, o grande guerreiro que, no Bhagavad Gita, assume o papel de protagonista. Entretanto, acima de todos os papéis que Krishna assume, ele é, antes de tudo, o guia espiritual de Arjuna. É dele que vem a Bhagavad Gita, o coração filosófico do Mahabharata. Suas palavras são uma ponte entre o homem e o eterno, entre o agir e o desapego, entre o mundo e o divino.
Bhagavad Gita: a joia espiritual do Mahabharata
No auge da tensão, pouco antes da guerra começar, Arjuna hesita. Diante de seus parentes, mestres e amigos no campo de batalha, ele abaixa seu arco. Está dilacerado pelo dilema moral: deveria lutar e matar seus parentes queridos ou recuar e abandonar seu Dharma de guerreiro?

É nesse momento que Krishna, em sua carruagem, revela os ensinamentos da Bhagavad Gita — um dos textos espirituais mais profundos da história humana. Krishna apresenta diversos caminhos: o Karma Yoga (caminho da ação correta), o Bhakti Yoga (caminho da devoção) e o Jnana Yoga (caminho do conhecimento). Cada um é uma via de libertação espiritual.
Mais de dois milênios após sua composição, a Gita ainda é lida por filósofos, líderes espirituais e pessoas comuns em busca de sentido. Mahatma Gandhi dizia que, nas horas mais escuras, a Bhagavad Gita era sua luz. Ela ensina que agir com consciência e sem apego transforma o mundo ao nosso redor — e principalmente, transforma quem somos por dentro.
Poderíamos passar horas dissertando sobre os grandes ensinamentos do Bhagavad Gita; porém, recomendamos mais uma vez ao leitor que leia nosso texto dedicado exclusivamente a essa obra, que, apesar de estar dentro do Mahabharata, é tão profunda e rica quanto todos os versos deste épico.
O Mahabharata é uma pérola de sabedoria para a humanidade
Dito tudo isto, reforçamos que ele não é apenas um épico de reis, guerras e deuses. Ele é um guia prático e espiritual que atravessa os séculos como um farol para a alma humana. Seus ensinamentos são eternos porque falam diretamente ao coração, independentemente de tempo, cultura ou religião.
Para entendermos o Mahabharata, porém, é fundamental estarmos acostumados com alguns conceitos da tradição hindu. A palavra “Dharma”, por exemplo, aparece constantemente no Mahabharata e só fará sentido a narrativa se realmente refletirmos sobre o que significa este conceito. Apesar de não ter uma tradução direta para o nosso idioma, o Dharma significa “caminho correto”. Em síntese, podemos apontar o Dharma como o momento em que estamos seguindo as leis da natureza, seguindo o fluxo da vida até chegarmos a nossa realização.
Seguir o Dharma, porém, não é algo simples. Por vezes, estar no Dharma é ir contra os próprios desejos, impulsos e vontades. É suportar o sofrimento ou tomar decisões difíceis. A grande lição é que o Dharma não é uma lista do que “pode” ou “não pode” fazer. Ele depende do contexto, do papel que se ocupa na vida, da consciência que se tem ao realizar atos. Logo, é preciso que, ao longo de toda nossa existência, estejamos conscientes do caminho que queremos trilhar, da maneira como devemos seguir esse fluxo da vida, que, em diversos momentos, exigirá de nós ações que vão de encontro aos nossos desejos.
Outro princípio fundamental do Mahabharata é o Karma, a lei de causa e efeito. Cada ação gera uma reação, cada escolha molda o destino. Os personagens colhem, ao longo da história, os frutos doces ou amargos de seus atos passados. Mas essa história também ensina que não somos prisioneiros do passado. Podemos transformar o Karma com consciência, arrependimento e ação justa no presente.

Vários personagens deste épico são tragados pela ilusão do ego: Duryodhana, pela inveja; Karna, pela ambição; Bhishma, pela rigidez; Arjuna, pela dúvida. O sofrimento nasce quando o “eu” se sobrepõe ao “todo”. Krishna, por outro lado, representa o caminho da entrega ao divino. Ele ensina que, ao renunciar ao desejo de seguir nossos instintos e medos e passar a agir com fé, como uma verdadeira busca pela integração com a natureza do ser humano, descobrimos a verdadeira liberdade.
Por fim, será que podemos perceber o quanto essas ideias estão diretamente ligadas a nós? Quantas vezes, por exemplo, renunciamos os nossos deveres apenas para nos manter em locais ou atividades que nos dão prazer, quando o correto seria seguir os nossos valores e atribuições? Quantas vezes achamos a vida injusta quando, na verdade, somos nós que não conseguimos enxergar as suas leis e entender que, apesar do aparente caos, há uma grande harmonia e justiça divina ocorrendo em cada ação?
Apesar de ser uma obra sagrada do hinduísmo, o Mahabharata transcende religiões, tempo e espaço. Não por acaso, essa obra, nos dias atuais, guarda tantos valores e lições para vivermos cotidianamente. Seus ensinamentos são éticos, filosóficos e espirituais e nos apontam um caminho para alcançarmos a verdadeira liberdade. Por isso, ele toca pessoas de todas as crenças e culturas e segue vencendo o tempo.
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