Filme “O Auto da Compadecida”: A genialidade nordestina entre fé e esperteza

A cultura nordestina é um patrimônio nacional. Retratado na grande mídia como um local seco, com fome e miséria, o Nordeste oferece muito mais do que pode ser apresentado pelas mídias convencionais, que, baseadas em estereótipos, reforçam preconceitos sobre essa bela região. Para além dos aspectos pejorativos que permeiam o assunto, o Nordeste é mágico e vibrante, de uma cultura tão rica que carrega grandes nomes de intelectuais do Brasil. 

Frente a isso, uma das obras mais difundidas sobre o Nordeste é uma verdadeira ode à cultura sertaneja, capaz de apresentar não apenas o lado da fome, o cenário da miséria do sertão, mas principalmente a força e a inteligência do nordestino, capaz de unir céu e terra, deus e o diabo em uma mesma sentença.

Paisagem do sertão nordestino com um céu vibrante e um cacto em destaque.
A beleza do sertão nordestino retratada em O Auto da Compadecida.

Hoje falaremos do Auto da Compadecida, uma das obras mais icônicas do paraibano Ariano Suassuna, um dos grandes escritores do Brasil. A obra, que teve como inspiração alguns cordéis e teve sua estrutura pensada a partir da obra “Auto da Barca do Inferno” do português Gil Vicente, une com perfeição a beleza do intelecto em sua maneira de fazer arte com a cultura popular nordestina, capaz de conectar a todos e transformar causos em histórias dignas de cinema.

Auto da Compadecida: uma ode ao nordestino

O Auto da Compadecida foi um dos grandes filmes do cinema brasileiro. Apesar de sabermos disso, é válido ressaltar que, antes de existir o filme, essa obra foi uma peça de teatro, escrita em 1955. Assim, é importante entendermos o seu valor dentro do tempo histórico, afinal, até os anos 1970, por exemplo, poucas obras versavam sobre o Nordeste sem ser retratando somente o cenário de fome e escassez. 

Apesar da obra de Ariano Suassuna também nos transportar para o sertão, de apresentar personagens pobres e com poucas chances na vida, eles não são transformados em mártires ou pessoas dignas de piedade. A bem da verdade, o universo de personagens de Ariano nos ganha pelo carisma e inteligência, retratando arquétipos e figuras tão icônicas que deixam para trás o pensamento de que no Nordeste existe apenas a pobreza. 

Cena de João Grilo e Chicó em trajes simples.
João Grilo e Chicó: a esperteza e o humor do sertão.

Quem não se apaixonou pela inteligência de João Grilo, capaz de criar confusões e achar soluções mesmo quando não havia escapatória? Sua moral dúbia, mas sempre guiado por um bom coração, revela a inteligência cotidiana, que não se aprende nos livros, mas que é útil para sobreviver em uma sociedade tão desigual. 

Seu grande parceiro, Chicó, é o seu oposto no quesito da inteligência, mas a amizade dos dois faz superar todas as adversidades. Chicó é, à sua maneira, os músculos, e João Grilo, a mente por trás da dupla. Os dois protagonistas encantam pela sinergia e nos apresentam uma antiga ideia sobre a amizade ser, acima de tudo, a capacidade de manter-se leal aos seus companheiros de bom coração.

Trailer de “O Auto da Compadecida 1”:

Além da amizade entre João Grilo e Chicó, “O Auto da Compadecida” tem outros grandes personagens que são, no fundo, grandes estereótipos que ajudam a sustentar a trama: o padeiro avarento e sua mulher infiel; o valentão da cidade que se acovarda frente ao perigo; os clérigos gananciosos. Todos eles constroem a trama de maneira divertida ao passo que nos fazem refletir sobre o valor de suas virtudes, seus atos e defeitos.

A obra é uma verdadeira ode ao Nordeste e à cultura popular. Não por acaso, o Movimento Armorial, criado nos anos 1970 pelo próprio Ariano Suassuna, tinha como objetivo a valorização da cultura nordestina para contrabalancear de forma ativa as demais visões sobre o Nordeste e seus estereótipos. Não pretendia negar ou rejeitar os fatos – como a seca e a migração em massa ocorrida nos momentos mais duros da escassez –, mas sim mostrar como aquele povo era capaz de construir beleza, arte e cultura através de suas próprias referências.

Representação Artística do Ariano Suassuna e o movimento armorial
Caricatura de Ariano Suassuna, idealizador do movimento armorial Fonte: Toda a Matéria

O Movimento Armorial foi uma grande iniciativa para colocar os elementos da cultura nordestina em destaque perante à classe erudita do país, mostrando assim que não é preciso ter cargos ou diplomas para difundir a arte.

“O Auto da Compadecida 2”: um retorno ao sertão nordestino no século XXI

Após o sucesso das obras de Ariano Suassuna, o filme “O Auto da Compadecida” chegou aos cinemas em 2000 e se tornou um clássico. Agora, 24 anos após o estrondoso sucesso, surge um novo “Auto da Compadecida”, voltado para questões atuais e que tenta trazer um novo olhar sobre a obra.

Capa do filme o auto da compadecida 2
Capa do filme o auto da compadecida 2

A história ainda se passa em Taperoá, com o retorno de João Grilo, que havia desaparecido por duas décadas. O retorno da amizade com Chicó faz os dois amigos embarcarem em uma nova jornada. Preservando os principais traços da obra de Ariano Suassuna, o filme não é necessariamente uma continuação, mas sim uma outra história dentro do mesmo universo. Os causos abordados agora são problemas atuais: a pequena cidade do interior, entregue à seca, tem suas modificações, próprias do nosso tempo, e o filme surge como uma obra quase de nostalgia.

Vale lembrar que não devemos comparar os dois filmes, uma vez que o primeiro jamais poderá ser colocado na mesma prateleira que o segundo devido à nostalgia daqueles que assistiram e riram com as desventuras de João Grilo e Chicó. O segundo filme, portanto, deve ser visto como uma homenagem, uma forma de recontar para outra geração a beleza da cultura nordestina.

Trailer de “O Auto da Compadecida 2”:

A arte e o poder de comunicar: a beleza de “O Auto da Compadecida”

Visto tais questões, devemos refletir sobre a arte que compõe tanto os filmes como a obra de Ariano Suassuna. É fato que a arte é muito mais do que apenas a produção de uma tela, um filme ou uma música. Ao fazermos arte, podemos transmitir ideias, colocar nossas opiniões e comunicar de forma sutil – ou não – com o público. 

Aquele que faz arte, ou seja, o artista, é uma ponte entre as ideias que capta e o público que a observa através da obra. Nesse sentido, “O Auto da Compadecida” é revolucionário ao quebrar os estereótipos tão firmados na primeira metade do século XX. Ariano responde à altura os escritores de outras regiões do país que escreveram sobre o Nordeste. Podemos citar, a nível de exemplo, a obra “Vidas Secas”, escrita pelo famoso Graciliano Ramos, que, apesar de ter ido no Nordeste apenas uma vez, produziu um clássico da literatura brasileira em que apresenta o Nordeste como uma região condenada. 

Capa do Livro Vidas Secas do Graciliano Ramos
Livro: Vidas Secas do Graciliano Ramos disponível na Amazon

Ariano não nega as dificuldades que a região passa, mas não limita o público a pensar que ali estão um grupo de coitados. A alegria, a irreverência, a inteligência e todas as tramas sociais, próprias do gênio humano, estão ali e se desenvolvem à sua maneira. O Nordeste não é uma região de morte, é uma região de vida, de esperança, de religiosidade, de fé. Essa é a grande chave que podemos tomar para nós ao lermos ou assistirmos “O Auto da Compadecida”. Todas essas ideias permeiam não apenas a obra de Ariano, mas também toda a humanidade, e talvez por isso seja tão fácil nos conectarmos com os seus personagens.

No fundo, cada personagem dessa obra de Ariano é uma faceta do ser humano que ora é inteligente, ora se acovarda, ora pensa apenas em si e, também, por vezes, é capaz de sacrificar-se pelo próximo. Eis a beleza dessa obra-prima da cultura brasileira, e por tudo isso recomendamos fortemente que assistam – e leiam – “O Auto da Compadecida”!

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