Filme “Homem-Absorvente”: Quando Amor Vira Invenção

Vivemos constantemente um ponto de tensão em que o passado e o futuro se encontram: de um lado, carregamos tradições que moldam nossa identidade, dão sentido às nossas raízes e oferecem a sensação reconfortante de pertencimento; de outro, somos empurrados por um impulso quase inevitável de transformar, questionar e criar novas tradições ou maneiras de existir no planeta. Ao mesmo tempo que a tradição nos ancora, muitas vezes, ao não entendermos que podemos fazer de outro modo ou mudar em si, isso pode nos limitar profundamente. 

Em alguns casos, ao viver de maneira automática as nossas tradições, conservadas a partir de pensamentos como “sempre foi assim” ou “desse modo sempre deu certo, então não precisamos mudar”, acabamos nem mesmo compreendendo os reais motivos de preservamos o que chamamos de “tradição” e acabamos entregues ao automatismo estéril.

Capa do filme Homem Absorvente

Por outro lado, a inovação pode ser um caminho de liberdade , uma vez que nos oferece uma gama de novas possibilidades, mas também nos expõe ao desconhecido, algo que naturalmente o ser humano tende a evitar. De certo modo, todos nós vivemos, em maior ou menor grau, entre esses dois extremos, pois ao mesmo tempo que lutamos para preservar alguns hábitos e formas consolidadas em nossa vida, também sentimos a necessidade de inovação, mesmo que isso nos dê um medo. 

Assim, seguimos construindo nossas escolhas, tentando equilibrar aquilo que herdamos com aquilo que desejamos deixar como legado. É nessa fronteira instável que surgem as grandes perguntas que movem a humanidade: até que ponto preservar o que conhecemos nos protege? E até que ponto ousar fazer o novo nos permite evoluir?

É justamente nesse entrelaçamento delicado entre tradição e mudança que nasce o conflito central do filme “Homem-Absorvente”. A obra revela, de forma profundamente humana, como o enfrentamento de costumes, muitas vezes pautados em uma rigidez dogmática, pode gerar resistência por parte de toda sociedade, mas também nos revela como a coragem de inovar tem o poder de redefinir vidas e romper barreiras para mostrar que o novo, pela força da própria natureza, sempre surge e transforma a existência.

A história real por trás do filme

Ao acompanhar a trajetória de Arunachalam, o protagonista do filme, testemunhamos não apenas o esforço técnico de criar uma solução prática, mas a batalha emocional e cultural de desafiar crenças arraigadas para abrir espaço ao novo. Assim, antes de ser um filme sobre invenção, o “Homem-Absorvente” (Padman, no original) é um filme sobre inovação. Porém, qual a verdadeira história por trás da obra?

Sucintamente, o “Homem-Absorvente” é inspirado na vida de Arunachalam Muruganantham, um empreendedor social indiano que se tornou mundialmente conhecido por desenvolver máquinas de baixo custo para a produção de absorventes higiênicos. Até aí, essa não parece ser uma história inspiradora, afinal, o mundo possui milhares de inventores. Entretanto, sua jornada começou de forma profundamente pessoal, quando descobriu que sua esposa utilizava trapos sujos durante o período menstrual por não poder comprar absorventes industrializados, cujo preço era inacessível para grande parte das mulheres indianas.

FIlme Homem Absorvente foto 2

Movido pelo desejo genuíno de oferecer mais conforto e dignidade à esposa, Muruganantham iniciou uma investigação quase solitária sobre menstruação e saúde feminina, um campo cercado de tabus em sua cultura, principalmente por ele ser homem e este ser, naturalmente, um assunto do campo feminino. Apesar da revolta da população perante sua pesquisa, da humilhação pública que passou em diversas ocasiões, as pesquisas o levaram a testar materiais, fazer experimentos até chegar a uma solução viável.

Ao longo desse processo, ele percebeu que o problema ultrapassava sua própria casa e que a situação de sua esposa era, na verdade, a de milhões de mulheres na Índia. Determinado a encontrar uma solução, Muruganantham criou uma máquina simples e barata, capaz de produzir absorventes de boa qualidade utilizando materiais acessíveis, o que tornava seu custo mais barato. Essa invenção permitiu que mulheres em comunidades rurais pudessem produzir seus próprios absorventes, gerar renda e, ao mesmo tempo, vencer o tabu de falar sobre o assunto de maneira natural.

Visto isso, “Homem-Absorvente” é um filme que, em sua aparente simplicidade, abre múltiplas camadas de análise e nos faz não apenas entender a história de Arunachalam Muruganantham, mas também compreender como a dinâmica social entre a tradição e a inovação é complexa e possui diversas camadas. Assim, assistir ao filme é experimentar uma mistura estranha de admiração e desconforto: admiração pela coragem e criatividade do protagonista, desconforto diante das barreiras culturais que o colocam à margem.

A inquietação é o impulso da inovação

A jornada de Arunachalam começa de maneira natural: o amor do protagonista por sua esposa. Essa conexão não é apenas um dado biográfico, é o motor que torna toda a história possível. Ao ver sua esposa usando panos improvisados durante o período menstrual, ele reconhece uma vulnerabilidade que a comunidade aceita como normal e travestida de cultura.

Muitos poderiam fechar os olhos, conformar-se com a tradição e aceitar que “a vida é assim mesmo”. Ele, no entanto, reage à passividade de toda comunidade perante esse fato. Esse gesto é, na prática, o primeiro ato de empreendedorismo que Arunachalam faz, pois o empreendedor é aquele que, diante das dores de um grupo ou sociedade, busca encontrar soluções a curto e longo prazo.

O que diferencia essa inquietação de algo meramente emocional, que passa tão rápido quanto uma chuva de verão, é a transformação dessa preocupação em ação. Em linhas gerais, não se conformar com a maneira que vivia produz no protagonista uma proatividade de resolver, a qualquer preço, um problema que já durava gerações. Ele não se limita a sentir pena ou a oferecer um remendo temporário ou mesmo qualquer coisa apenas para a sua esposa; ele busca entender a raiz do problema.

Sua iniciativa revela uma característica comum dos grandes empreendedores: a capacidade de converter empatia em investigação. Muitas vezes, pela força dos costumes, podemos cair no senso comum de pensar que empreender é apenas uma outra forma de começar um negócio ou ganhar dinheiro. Entretanto, o empreendedorismo é, no fundo, a busca constante por evolução e melhoria social, e é por isso que, quando bem sucedida, é capaz de impactar a vida de milhões de pessoas. Assim, mesmo sem formação técnica, Arunachalam se lança em uma curva de aprendizado autodidata, movido pelo desejo de proteger e dar dignidade à mulher que ama e, por extensão, a todas as mulheres da Índia.

O filme acompanha com minúcia o processo de Arunachalam, que é, naturalmente, permeado por tentativas e erros. Muitas vezes, abatido pela frustração, o protagonista até pensa em desistir, mas nunca abriu mão de alcançar seu objetivo; e isso, por si só, nos traz uma lição importante: aprendermos que todo e qualquer empreendimento, seja a nível prático e teórico, exigirá de nós resiliência. O caminho até o sucesso em nossos objetivos não é, certamente, linear. Basta pensarmos em tudo que nos propomos a fazer: na primeira tentativa já conseguimos fazer perfeitamente? É natural que ocorram falhas, e estas, via de regra, devem ser corrigidas para novas tentativas.

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Frente a isso, as primeiras soluções pensadas por Arunachalam são rudimentares; os materiais escolhidos, muitas vezes inadequados; e os resultados, insatisfatórios. Ainda assim, há uma progressão orgânica, pois cada fracasso ensina algo novo. Ele passa a estudar sobre fibras têxteis, a experimentar diferentes camadas, a observar padrões de absorção e a testar modelos.

Essa fase do processo é essencial para desmistificar duas ideias: a primeira é a de que inovação exige laboratório sofisticado, repleto de equipamentos e uma equipe de profissionais extremamente qualificados; a segunda é a de que a tecnologia é necessariamente inacessível quando pensada para comunidades pobres. A máquina que ele projeta emerge dessa aprendizagem prática, que, apesar de simples, é capaz de se adaptar às condições limitadas de recursos que Arunachalam possuía.

O fato de alcançar o sucesso mesmo em condições precárias, contra toda a comunidade em que vivia, nos relembra uma antiga frase: não existe impossível, apenas impossibilitados. Para quem vive com a inquietação da mudança, nada pode pará-lo. Nesses momentos, percebemos como o ser humano é capaz de operar “milagres” e mover o mundo para chegar ao seu objetivo. Foi assim que Arunachalam fez, transformando o problema em protótipos e desenhos desenvolveu uma maneira eficaz de superar um dilema centenário.

Inovar exige enfrentar os costumes

Entretanto, como sabemos, inovar não é – e provavelmente nunca será – um mar de rosas. Quando a inovação precisa adentrar o terreno dos costumes, ela acaba cruzando uma linha perigosa e tênue, capaz de mexer com os ânimos de toda uma população que, por desconhecimento, não compreende a necessidade de mudança. Portanto, inovar não é apenas uma questão técnica, mas principalmente um desafio de sensibilidade e sociológico. Ao buscar uma melhoria, mesmo que essa seja uma necessidade real, ao mesmo tempo mudará a maneira como toda comunidade interage com aquela situação, e isso, muitas vezes, é rechaçado.

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Assim, o protagonista enfrenta reações que vão do ridículo às acusações morais. Sua iniciativa é vista por alguns como uma transgressão da ordem social, por outros como uma afronta ao pudor. O cerne desse conflito está no fato de que a inovação, quando toca um tabu, não encontra apenas resistência racional, mas principalmente uma resistência emocional: proteger o tabu equivale a proteger a identidade comunitária. Romper com isso exige coragem, pois não se pode mudar uma cultura de séculos em poucos dias, meses ou mesmo anos.

Visto isso, podemos destacar como uma das cenas mais comoventes do filme é a representação do isolamento do protagonista. Ao ser ridicularizado, excluído e até fisicamente agredido pela própria comunidade, ele paga um preço pessoal altíssimo. Sua relação com a esposa é testada, seus vínculos sociais desfeitos, tudo pelo fato de tentar encontrar uma solução para sua esposa e as mulheres indianas. Essa solidão é algo comum a quem desafia a tradição dogmática de uma sociedade, e isso nos faz compreender o custo humano da inovação em determinados contextos. Inovar, neste sentido, é aceitar viver excluído de grande parte do convívio social ,é suportar olhares, fofocas e a perda temporária de laços que antes pareciam inquebráveis.

Mesmo assim, a narrativa não o apresenta como um mártir. Sua resiliência é alimentada por um propósito claro e por pequenas vitórias, como, por exemplo, uma mulher que aceita usar o absorvente, uma adolescente que antes deveria faltar aula por causa da menstruação e agora poder continuar frequentando a escola. Essas vitórias, embora discretas, funcionam como ancoradouros emocionais que o sustentam ao longo da jornada e garantem, ao longo do tempo, a legitimidade de sua invenção. 

Essa, por sua vez, não é aceita “do nada” ou mesmo abraçada pela comunidade rapidamente. Na verdade, apesar de começar a funcionar, mostra-se difícil de ser implementada de forma abrangente. Para que a máquina e o produto sejam aceitos, é necessário um trabalho de construção de confiança. O protagonista aprende a converter rejeição em diálogo. Ele busca aliados fora da aldeia, encontra especialistas, aprende com ONGs e, em certos momentos, com o próprio mercado. Essa construção de reputação é um processo lento que envolve demonstrações práticas, dados de eficácia e testemunhos, tudo para demonstrar sua eficácia.

Ao aproximar educadores, profissionais de saúde e ativistas, a iniciativa ganha respaldo. A prova social, ou seja, o fato de outras mulheres testarem e validarem a solução, torna a solução mais plausível e menos ameaçadora para os desconfiados. Desse modo, o filme mostra que a resistência cultural pode ser diluída quando a inovação entrega resultados concretos e quando pessoas respeitadas pela comunidade endossam a solução.

Ao mesmo tempo, quando a produção local é acessível, a invenção abre frentes econômicas importantes. Arunachalam, portanto, não mudou apenas uma realidade biológica ou social, mas mudou completamente a maneira da comunidade viver e obter recursos. Esse é o grande impacto de um empreendedor na sociedade. Não se trata, portanto, de obter lucro individualmente, mas de conseguir mudar a realidade das pessoas ao seu redor. Essa dimensão do empreendedorismo é vital, pois mostra que a inovação pode articular não apenas uma maior dignidade, mas também subsistência.

Criando uma nova realidade

Além da tecnologia e da economia, o filme enfatiza a importância da educação. Normalizar a menstruação passa por desmistificar mitos, ensinar meninos e meninas sobre biologia e empatia, e incorporar o tema em currículos escolares. O protagonista parte da necessidade objetiva, que é  a fabricação de absorventes, mas sua batalha não se encerra ao finalizar a produção. Assim, Arunachalam caminha para sonhos mais altos, que é o de incentivar a discussão pública e gerar novos conhecimentos, transformando a própria tradição. Com o passar do tempo, escolas e rádios locais começam a incorporar a discussão, deixando assim de ser um tabu para assumir um lugar no debate coletivo.

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A educação é, portanto, a ponte entre técnica e cultura. Sem ela, a tecnologia pode permanecer marginal, espalhando-se apenas como uma alternativa prática. Com educação, a tecnologia transforma-se em ferramenta de transformação cultural, capaz de alterar hábitos, normas e expectativas.

Dito isso, embora a história seja profundamente específica, suas lições são, na verdade, universais e podem inspirar a todos nós. O filme mostra claramente como uma solução desenvolvida em contextos de escassez pode inspirar políticas e iniciativas em diferentes países; e que, a nível individual, podemos usar Arunachalam como um referencial de nunca abrir mão dos seus objetivos, por mais que seja necessário nadar contra uma forte correnteza que é, em algum grau, a ignorância que assola a humanidade. Assim, a narrativa se transforma em estudo de caso para organizações que atuam em saúde pública, para gestores interessados em tecnologia social e para empreendedores que buscam impacto.

Por fim, “Padman”, nome original do filme, é uma obra que funciona em múltiplos níveis. Como biografia, narra a trajetória improvável de um inventor autodidata. Como drama social, expõe a violência simbólica de tabus e a urgência de políticas públicas sensíveis. Já como proposta inspiradora, demonstra que inovação, quando orientada por empatia e praticidade, pode gerar mudanças significativas.

A história de Arunachalam nos lembra que para transformar a vida humana raramente precisamos estar reféns de grandes orçamentos, ou sermos gênios indomáveis. Depende, antes de tudo, de estar imbuído de uma Vontade inquebrantável, de um amor capaz de suportar toda e qualquer pressão e, naturalmente, da inteligência para encontrar a melhor forma de alcançar seus objetivos. Assim, com essas três poderosas virtudes, não há nada que seja impossível ao ser humano.

O legado do filme é nos relembrar que somos capazes de mudar o nosso mundo, a nossa realidade individual e, por conseguinte, alcançar patamares que mudem a realidade da própria humanidade.

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