É possível herdar traumas de nossos Pais?

Devemos tudo aos nossos familiares, não é verdade? Graças a eles recebemos os nossos valores, educação, aprendizados e todas as necessidades que surgem em nosso caminho. Em diversas sociedades humanas, senão todas, a família é a base no qual os indivíduos são formados e, por isso, é vista como um dos principais pilares de sustentação da cultura de um povo. Em muitos casos, os filhos herdam o ofício dos pais, criando verdadeiras dinastias em torno de uma profissão ou negócio. É também junto aos nossos pais que aprendemos como nos comportar diante da vida, como resolver os problemas que nos são colocados. E assim, eles se tornam nosso principal referencial de Ser Humano.

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Foto: Andrea Piacquadio.

Essa “dívida” eterna que temos com nossos progenitores é revertida em gratidão e respeito. Somos, em geral, gratos por tudo que nossos pais nos ensinam e, por isso, respeitamos o seu legado, sendo nós mesmos a realização deles. Porém, será que só herdamos as qualidades dos nossos pais?

Sabemos que não. É evidente que em um mundo imperfeito, com seres humanos imperfeitos, também vamos possuir debilidades e defeitos que, em algum grau, também herdamos. Isso ocorre porque as crianças, e todos nós um dia fomos uma, aprendem pelo exemplo. À medida que vamos interagindo com outros seres humanos, principalmente aqueles mais próximos de nós, vamos imitando seu comportamento, fala e gestos. Por não possuir, nessa fase da vida, uma mente totalmente formada, acabamos desenvolvendo nossas habilidades mentais através destes estímulos externos, copiando-os de maneira integral. Portanto, é extremamente comum encontrarmos filhos que são “a cara” e a “personalidade” do pai ou da mãe. Se temos um pai irritado, por exemplo, que resolve os problemas de forma exacerbada, por que nos surpreendemos quando nos pegamos resolvendo nossos conflitos da mesma forma? Dentro dessa lógica, é natural que passemos a copiar nossos pais em algum grau, achando correto a maneira como eles agem no mundo, seja ela de fato correta ou não.

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Foto: Pixabay.

Esse senso moral nas crianças é desenvolvido ao longo do tempo e, evidentemente, pode ser corrigido nas fases posteriores da vida. Porém, os estímulos e exemplos errados podem ser tão difíceis de resolver quanto uma mancha que, não importa o quanto esfregamos ou lavamos, acaba não saindo. Por isso, a formação infantil precisa ser extremamente cautelosa para que os efeitos nocivos de nossos defeitos, que inexoravelmente irão surgir na convivência com nossos filhos, não acabem por afetá-los tão profundamente.

Apesar disso, a ciência está começando a compreender que o legado que nossos pais nos transmitem não são apenas reflexo da cultura ou da educação que recebemos em nossas casas. De forma objetiva, sabemos que biologicamente herdamos uma série de aspectos de nossa família, como traços corporais, riscos de desenvolver doenças e etc. Até esse ponto, não há nada de novo, correto? Mas será que é possível herdar traumas psicológicos também? Ou pelo menos consequências atreladas a essas condições?

Essa pergunta se faz pertinente porque, ao contrário de outras partes do nosso corpo — que em algum grau já estão pré-definidas as formas de como serão —, os traços psicológicos são o resultado de nossas experiências e da maneira que lidamos com traumas. Visto que esse tipo de experiência psicológica é intransferível, uma vez que é processada na mente de cada indivíduo, seria possível que mesmo sendo psicologicamente independentes de nossos pais, ainda herdássemos alguns dos seus traumas?

Foto: Yulianto Poitier.

Coloquemos em exemplos para entender. Vamos imaginar a seguinte situação: pais que possuem trauma de nadar, por exemplo. Por viverem experiências negativas relacionadas ao afogamento e nunca aprenderem essa habilidade, ambos possuem um trauma quando entram em piscinas ou no mar. Será que, necessariamente, seus filhos terão um trauma ligado a nadar?

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Romeu e Julieta, Frank Bernard Dicksee, 1884.

Essa é uma questão que sucinta algumas variáveis. Uma delas é o fato de que provavelmente eles não ensinarão seus filhos a nadar, ou não os estimularão a isso, uma vez que eles mesmos não sabem e têm medo. Logo, o medo de entrar na água e nadar será passado de forma inconsciente aos seus filhos e isso, consequentemente, os afetarão. Essa é uma das formas de “herdar” um trauma dos seus pais, e isso ocorre de forma cultural em algumas famílias. Um exemplo corriqueiro de “trauma” herdado através de gerações é o fato de uma família não se relacionar com outra, como em Romeu & Julieta, uma das grandes peças de William Shakespeare. Na história, as famílias do casal eram rivais e ao longo de gerações não se suportavam. Em uma análise psicológica, a geração mais nova (a de Romeu e Julieta) já não sabia o motivo de odiarem uns aos outros, mas por imposição isso ocorria. 

Nesse caso, entretanto, ainda está relacionado com uma questão muito mais cultural ou de formação familiar do que algo genético, ou seja, algo que foi passado sem essa interferência cultural. Será então que isso é possível?

De acordo com a biologia celular, sim. A epigenética, área da biologia que busca compreender as mudanças causadas nos fenótipos a partir das células e a sequência de DNA, mostra que há uma relação direta com as experiências vividas pelos pais que aparecem em seus filhos. Chamada de herança epigenética meiótica, essa relação ocorre quando um evento traumático é vivenciado por um dos pais e, algum tempo depois, este tem um filho. O que ocorre é que nossas células, que a todo tempo estão se modificando dentro de nós, acabam se adaptando a essa experiência e  a esse padrão genético, alterado devido a vivência traumática. Assim, a experiência é transmitida aos descendentes. 

Dessa forma pode-se dizer que sim, os traumas dos nossos pais chegam até nós não somente a nível psicológico, mas também a nível genético. É preciso, porém, deixarmos claro o que estamos chamando de trauma. Os estudos epigenéticos apontam para momentos de extrema tensão como fome, guerra, tortura e outras experiências nesse nível. Fica claro, portanto, que não é qualquer trauma ou problema psicológico que fará esse processo epigenético acontecer, mas sim momentos de extremo estresse físico e/ou psicológico. Em uma guerra, por exemplo, a tensão constante ocasionada pelo medo de morrer, a pressão psicológica de lidar com o campo de batalha e outros traumas causados dentro do contexto da guerra são fatores que explicam não somente as sequelas dos veteranos que experienciaram esses acontecimentos, mas também dos seus descendentes.

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Foto: Pexels.

Dentro dessa perspectiva, é interessante notar como tudo que podemos traduzir como “Ser Humano” está interligado. Não somos máquinas biológicas, muito menos um corpo físico que pensa e sente, como se esses três “níveis” estivessem separados. Somos um único ser que possui todos esses atributos e estes, por sua vez, estão interligados. Não podemos conceber um corpo saudável sem uma psique que também não esteja saudável. Do mesmo modo, um trauma psicológico não afeta apenas as nossas ideias e emoções, muito menos ficam presas em nosso inconsciente. Mesmo que não pensemos em nossas travas mentais, elas nos afetam fisicamente e acabam por se expressar em gestos, manias e até mesmo em doenças. Logo, se em nosso aspecto físico transmitimos traços biológicos, nos parece lógico (e agora comprovado) que nossos traumas também podem ser um péssimo legado para as futuras gerações.

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Foto: Daria Obymaha

Dito isso, é fundamental que passemos a combater as debilidades psicológicas que nos afligem. Não podemos cair na farsa de que “o que ocorre na mente fica na mente”, como se nossas emoções e pensamentos não afetassem as pessoas ao nosso redor ou a nós mesmos. É preciso, portanto, uma postura ativa frente aos nossos traumas. Combatê-los é, em grande medida, um favor que fazemos a nós mesmos e aos nossos futuros filhos. E mesmo que você, meu caro leitor, tenha decidido que não quer ter descendentes, é certo que tem amigos e pessoas ao seu redor. Nossos traumas não passam biologicamente para estas pessoas, porém, a convivência torna nossos traumas palpáveis para os demais e isso pode ser um grande obstáculo em nossas vidas pessoais. 

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