“GLACE À L’EAU”, ou “GELO DE ÁGUA” em português, é o curta-metragem que viemos indicar para mais uma das nossas parcerias em reflexões. Dirigido por Mathieu Bare e com a música de Kémi Likouka, o filme explora a beleza efêmera das coisas e a aparente fugacidade da vida.
No filme, podemos acompanhar uma história inusitada: um filhote de baleia e um iceberg se tornam amigos. Para salvar a vida de seu novo companheiro e da “mãezona” dele, o heroico iceberg se coloca como escudo entre as baleias e o canhão lançador de arpões de um navio baleeiro que os estava caçando. Sua atitude salvou seus novos amigos, mas ao que parece, custou o sacrifício de sua própria vida.
A primeira observação que podemos fazer é sobre a atitude heroica do iceberg. O heroísmo é virtude das mais admiráveis que podemos expressar. É a capacidade de se colocar em risco para proteger ou salvar alguém, ou algo, que consideramos importante e valioso. Além disso, o heroísmo não se limita a atos de bravura física. Ele se manifesta de diversas maneiras, por exemplo, em atitudes que requerem moral e coragem, como falar a verdade ainda que possa trazer consequências negativas para si.
Associado à ideia de sacrifício pessoal, um outro ponto é que entendemos como heroísmo a atitude de alguém que coloca a sua vida em segundo plano em prol de uma causa maior. Nesse momento a verdadeira essência do heroísmo se revela, e o risco que se corre não é pelo próprio bem, mas em benefício de outros. Por isso mesmo, o ato heroico não pode ser imposto, pois é uma escolha pessoal e deve surgir de dentro de cada um de nós. Essa demonstração de amor e compaixão é uma expressão da nossa humanidade. Quando nos doamos em alguma oportunidade que temos de praticar uma atitude heroica, com certeza, naquele momento, conseguimos nos conectar com algo maior do que nós mesmos, e contribuímos com a justiça e com a dignidade humana.
Vimos também no curta-metragem um exemplo da famosa frase de Saint-Exupéry, eternizada em seu livro “O Pequeno Príncipe”: “Tu te tornas eternamente responsável pelo que cativas”. O imponente iceberg entendeu que não poderia ficar alheio ao real perigo que o seu amigo estava correndo, principalmente depois dos laços que eles já tinham desenvolvido e estreitado. Cada escolha, cada palavra, cada ação nossa, pode ter efeitos duradouros nas vidas das outras pessoas. Por isso, não podemos esquecer da responsabilidade sobre tudo que cativamos tanto positiva quanto negativamente.
A frase do livro “O Pequeno Príncipe” sugere que não podemos nos relacionar com as coisas e as pessoas ao nosso redor sem que isso tenha consequências. Ao nos conectarmos com alguém ou com algo, um vínculo é criado, e isso exige de nós cuidado, atenção e responsabilidades. Isso inclui desde cuidar de uma planta que escolhemos cultivar até manter relacionamentos saudáveis.
Dito isso, cabe agora fazer o seguinte questionamento: será que estamos cativando coisas que nos fazem bem e nos ajudam a crescer, ou estamos nos conectando com pessoas e coisas que nos fazem mal ou nos prejudicam de alguma forma? Fica a pergunta.
Seja como for, nós temos o poder de escolher o que queremos cativar, e consequentemente, sobre o que queremos nos responsabilizar. Isso nos faz refletir sobre o papel da nossa liberdade e autonomia na construção dos nossos relacionamentos e da nossa própria vida. A nossa próxima reflexão ao analisarmos as atitudes do nosso nada “gelado” iceberg, se refere ao altruísmo. Podendo se manifestar de diversas formas, o altruísmo está presente desde pequenos gestos, como ajudar um estranho a atravessar uma rua, até ações maiores, como trabalhar voluntariamente em uma causa social.
Embora o altruísmo possa parecer uma atitude contrária a ideia de autopreservação, teorias sugerem que esse tipo de comportamento pode ter benefícios tanto para o indivíduo quanto para a sociedade como um todo. Estudos indicam que pessoas altruístas tendem a experimentar sentimentos de satisfação e felicidade, além de serem mais respeitadas e valorizadas.
É desnecessário dizer que quem escolhe agir de maneira altruísta, não procura ser o centro das atenções, ou quer créditos ou aplausos pelas suas ações. Na verdade, o que nos faz agir assim é a capacidade que temos não só de nos colocar no lugar do outro, mas principalmente de conseguir entender as dificuldades e sofrimentos dos outros como se fossem nossos.
Isso nos faz aprofundar na certeza de que não somos nem estamos sós. Essa perspectiva filosófica enfatiza a interdependência entre todas as coisas e seres, e ela sugere que tudo está conectado de alguma forma e que todas as nossas ações irão afetar os outros, seja de maneira positiva ou negativa. Tradições espirituais e religiosas, como o Budismo, o Hinduísmo e o Taoísmo, têm como fundamento a crença de que todas as coisas estão interligadas, e enfatizam a importância do equilíbrio e da harmonia entre todos os seres e elementos do Universo. Não é preciso irmos muito longe para perceber isso. Você já se deu conta de como tudo fica mais leve e belo quando fazemos uma simples faxina em nossas casas? Pois é! Cada coisa no seu devido lugar, faz com que tudo funcione melhor.
Assim, podemos concluir que, sendo um agente ativo e consciente nessa teia universal tão complexa, contribuímos para que tudo flua com naturalidade, como tem que ser. Não podemos, portanto, esperar fluir ou evoluir de outra maneira. Se houver alguma coisa fora do lugar, mesmo que isso não seja uma atribuição nossa, é nosso dever fazer alguma coisa para que aquela realidade seja modificada. Só assim nós também poderemos ser beneficiados.
Novamente, voltamos ao exemplo do gigantesco bloco de gelo que sacrificou a vida por um amigo. Se olharmos para aquela atitude com os nossos olhos materiais, naturalmente pensaremos que, apesar de ser um gesto bonito e digno de respeito e admiração, o iceberg encontrou o seu fim. Mas será mesmo? Assim como o iceberg, nós, e tudo que existe, fazemos parte de uma coisa só. Como consequência do seu ato de bravura, o nosso amigo foi despedaçado, mas, ainda assim, ele parecia feliz. Sabem por quê? A resposta é simples e óbvia: tudo se transforma.
O herói do nosso filme pode até ter perdido a sua forma original, mas isso não significa que ele deixou de existir. É bem provável que, em pedaços menores, ele de fato derreteu mais rapidamente. Mas, e daí? A sua essência continua, e continuará, sendo a água; sendo água, ele é o próprio oceano; e sendo oceano, ele é a própria natureza – e assim por diante. Pegaram a visão? O que tem um início terá um fim, mas o que é sempre foi e sempre será.
Seja qual for a nossa realidade, a nossa forma, o nosso estado, a essência divina que nos anima é uma só. Ela é superior a tudo e está presente em tudo. Logo, não há o que temer. É disso que precisamos saber. De posse desse conhecimento, podemos superar todos os nossos medos. E, consequentemente, nossas ações serão contextualizadas, e todas elas serão ações de um verdadeiro herói, pelo simples fato de fazermos apenas o que devemos fazer.