A sabedoria oriental nos fala que a dor é um veículo de consciência. O que isso significa? Evidentemente, nenhum ser humano acha a dor agradável, mas já parou para pensar na importância que ela tem em nossas vidas? Do ponto de vista físico, é graças à dor que sabemos que algo de errado ocorre em nosso corpo. Ela, portanto, é um aviso de que algo deve ser corrigido.
Se considerarmos um ponto de vista mais amplo, poderemos perceber que as dores humanas são um verdadeiro motor para as grandes civilizações. A dor é como uma força propulsora da natureza que nos lança para diante, que nos obriga a crescer e superar as adversidades impostas pelo meio natural. Colocando em exemplos, a locomotiva surgiu por um ato de desespero, para salvar a indústria de uma crise de produção no começo do século XIX; já os antibióticos surgiram em 1941 diante de milhões de soldados gravemente feridos na II Guerra Mundial; e as máquinas de raio-x portáteis surgiram da mesma forma para socorrer os feridos de guerra, e essa escala não para.
Esses exemplos recentes não cobrem todo o espaço de invenções que a humanidade criou para aplacar algum tipo de dor, seja física ou psicológica. Logo, é interessante refletirmos como podemos lidar com a dor de maneira saudável e consciente, pois, assim como tudo na natureza, esse fenômeno também tem um papel a cumprir dentro de nossa existência.
A dor como impulso para a evolução humana
Vemos que os grandes fatos históricos são resultantes da forma como lidamos com o sofrimento: a Idade Média é uma resposta do Ocidente à dor decorrente da derrubada do mundo clássico; o renascimento é uma mudança de perspectiva, como um remédio para as dores causadas durante a Idade Média; a modernidade, com a revolução científica, o surgimento do capitalismo, a revolução industrial e todo o sistema de pensamentos racionalistas são uma busca profunda desta civilização pelo controle e pela superação da dor.
Isso nos mostra que a forma como interpretamos a dor através dos nossos mitos é o grande motor por trás da História. Se quisermos saber para onde a História está nos levando, temos que examinar o jeito como estamos lidando com a dor. De que modo estamos conduzindo nossas dores?
Esse vídeo, do Jordan Peterson, traz um desabafo sobre os equívocos desta civilização diante do sofrimento, pois, ao invés de nos lançarmos diante da dor com uma postura ativa, optamos pelo prazer de sermos vítimas. Repudiamos a dor, corremos dela, como se fosse possível fugir. Choramos nos velórios da vida, inativos, como se uma mão invisível provesse todo o funeral. Temos sido débeis diante da dor, gritamos aos quatro cantos que tudo está errado, como se daí viesse uma espécie de solução invisível.
Aprendendo com as nossas dores
Somente quando mudarmos nossa postura diante da dor, teremos condições de mudar o curso da nossa história. Diante da dor é preciso mais que lutar ou resistir. Enquanto não aprendermos sobre seu significado, retornaremos a sofrer e não sairemos do ciclo vicioso de amarguras e rancores que acumulamos na vida.
Para os seguidores do Budismo, esse ciclo se chama “a roda de Samsara” ou “roda das encarnações”, pois, uma vez que não aprendemos com as nossas dores, tendemos a repeti-las e a gerar cada vez mais a necessidade de voltar a esse mundo. Dentro dessa perspectiva, aprender com a dor está diretamente ligado à evolução humana e uma vez que aprendemos, não precisamos reviver essa lição.
Para entender bem esse conceito, precisamos nos voltar aos ensinamentos de Sidarta Gautama, o Buda. Esse grande mestre de sabedoria, que viveu no século VI a.C., nos fala que a dor é inexorável à existência, logo, todos nós sentimos dor. Se a dor é uma constante e absoluta no mundo, o que devemos fazer? Conhecer as suas causas para assim poder começar o processo de cessação da dor.
Para o Budismo, toda dor tem uma origem única: o apego ao que é temporal. Essa é uma lição difícil de absorver, pois tudo ao nosso redor está fadado a desaparecer nas areias do tempo. Desde o celular ou computador, o qual estamos utilizando agora para ler esse texto, até a nós mesmos, que um dia seremos apenas pó. Como superar o apego a tudo isso que invariavelmente irá desaparecer?
O fato é que nos apegamos ao passageiro por não conhecermos o atemporal, o perene. Assim, a dor nos traz uma valiosa lição: nada que seja fruto da matéria poderá escapar de Cronos. Quantas vezes, por exemplo, sofremos quando alguém nos irrita, nos tira do sério, ou quando perdemos um bem material? Esse sofrimento está no tempo, uma vez que passa. Porém, uma vez que não aprendemos a lidar com nós mesmos, não buscamos nos conhecer, o que ocorre? Novamente, em outra oportunidade, voltamos a sentir essa dor através de uma nova perda, uma nova irritação, um novo desentendimento.
A dor, portanto, é a oportunidade que possuímos para parar e refletir o porquê estamos tão apegados às nossas opiniões, nossa “imagem” e tudo que nos faz parecer que estamos abrindo mão de nós mesmos. Tudo isso também irá desaparecer um dia, logo, é temporal.
A grande lição que Buda nos apresenta é o desapego, mas isso não significa indiferença perante a vida. O desapego é tão somente o exercício de saber que tudo nesse mundo passará, portanto, não há como frear o devir que a todo momento se apresenta em nossa porta. A dor cessa quando se entende as experiências como aprendizados, tal qual degraus que nos levam para um outro patamar. Assim, as irritações, os sofrimentos, passam a ser valiosas oportunidades de reflexão e compreensão da vida.
Essa postura diante da dor é transformadora. Passamos, em geral, a aceitar a vida e seus ditames. Isso não significa, entretanto, uma postura passiva frente aos acontecimentos ao nosso redor. Precisamos sempre atuar, afinal, a vida exige ação. O que nos fará movimentar, porém, já não é a raiva, o rancor ou algum tipo de desejo, mas sim a necessidade que a própria vida nos impõe. Nesse sentido, a dor não paralisa ou fragiliza, apenas aponta um norte, uma direção, se convertendo assim em uma estrela-guia para os navegadores desse mar que é a existência.
Sentindo a dor da humanidade: um caminho para a vida espiritual
Um dos fragmentos do livro “A Voz do Silêncio”, trazido para o Ocidente pela filósofa russa Helena Blavatsky, diz que devemos receber em nosso coração todas as lágrimas humanas, e não enxugar nenhuma delas até que haja desvanecido a dor que as causara. Esse belo trecho nos relembra que não vivemos sozinhos, afinal, é muito comum nos fecharmos em nossas próprias dores e dilemas. Esquecemos de olhar para o lado e perceber que todos sofrem pelos mais variados motivos. Logo, a dor da humanidade deve ser também a nossa, pois estamos todos juntos nesse grande processo de evolução.
O próprio Buda, em sua história, afirma que não entrará no Nirvana – o “paraíso” dos Budistas – enquanto não enxergar as costas do último ser humano a passar para essa nova etapa da Vida. Logo, de nada adianta pensarmos apenas em nossas dores se não possuímos compaixão com a dor do próximo, se não buscamos aplacar essa angústia que o outro sente. Assim, se sentirmos dor pela ignorância no mundo, não deixemos que a ignorância continue reinando em nossas vidas; se sentirmos a dor da violência, não deixemos que a violência impere em nós.
Essa percepção da vida abre uma possibilidade de viver uma vida espiritual, ou seja, uma vida baseada em valores que transcendem o egoísmo. Não pensemos em uma vida diferente, pois uma pessoa espiritualizada não é nada mais do que aquela que se dedica a entender o próximo e trabalha em cooperação com a harmonia, dentro das suas possibilidades.
Por fim, se mostra necessário aprender a lidar com diferentes dores. Todos nós passaremos por incontáveis desconfortos em nossa vida, isso não é uma novidade. O que diferencia um sábio para um ignorante é, na verdade, o que se enxerga a partir da dor que se sente. Há quem veja com os olhos do instinto, da separatividade, da injustiça e se mantenha aferrado em seu sofrimento; há, porém, quem veja tais momentos como eternos aprendizados e um campo fértil para crescer e ajudar a humanidade em sua jornada. Cabe agora escolhermos o nosso caminho.