Ao longo da história da humanidade diversos povos procuraram explicar o mundo. Se hoje utilizamos a ciência para essa função, no passado a mitologia foi um meio eficaz de traduzir em símbolos e ideias o Universo, a Natureza e o próprio Ser Humano. Devido à nossa cultura atual basear-se exclusivamente em fatos objetivos, ou seja, que podem ser provados e testados, deixamos de considerar o mito como uma possibilidade de interpretação do mundo, uma vez que suas narrativas não fazem “sentido” lógico. Partindo disso, por muito tempo foi deixado de lado o valor simbólico dessas histórias, como alegorias que guardam ideias e formas de enxergar o mundo e nosso papel nele.
Assim, jamais poderemos compreender um mito se utilizarmos apenas uma lógica racional, baseada em provas e fatos. Para além desse aspecto, o mito usa uma linguagem simbólica, que, em resumo, nada mais é do que o uso de ideias e alegorias para explicar algo. Desse modo, é fundamental não levarmos qualquer mitologia ao “pé da letra”, mas sim interpretá-la sob a luz do seu contexto histórico e levando em consideração as ideias principais do povo que o criou.
Considerando esses elementos, tomemos como exemplo a mitologia grega: os mitos dessa civilização formam, de modo geral, a base do pensamento helenístico. Ao tratar de mitos como o de Cronos, o titã do tempo que devora seus filhos, os gregos não estavam pensando de maneira literal, pois isso seria impossível e irracional. Enxergando esse mito a partir dos seus símbolos, ele representa a ideia de que tudo está fadado ao tempo e que, uma hora ou outra, o tempo irá devorar tudo que existe. Pode demorar dias, semanas ou mesmo milhares de anos, mas tudo no Universo, gostemos ou não, irá acabar um dia. Esse mito, portanto, trata de uma percepção da Natureza, uma Lei que está expressa em todas as formas de vida e, obviamente, também no Ser Humano. Visto isso e aproveitando que já estamos tratando da cultura grega, hoje conheceremos mais um Deus desse povo: Ártemis, a Deusa da caça.
Conta a mitologia que Ártemis é o fruto da relação de Zeus, o Deus dos Deuses, com Leto, a Deusa do anoitecer. Essa união gerou, na verdade, dois filhos gêmeos: Apolo e Ártemis, representando, respectivamente, o sol e a lua. Ártemis nasceu primeiro, um dia antes do seu irmão. Assim que nasceu, ajudou sua mãe a chegar à cidade de Delfos e lá a Divindade deu à luz ao Deus do sol. Devido a esse mito, a cidade de Delfos tinha o principal templo dedicado ao Deus Apolo.
Apesar de gêmeos, Apolo e Ártemis se mostravam com personalidades distintas. Enquanto a Divindade do sol adorava as artes e a alegria, sendo ele mesmo o patrono das nove musas, a Deusa da lua era casta e reservada, habitando nos bosques e protegendo os animais e a floresta. Por essa relação próxima com os animais, Ártemis também foi associada como Deusa da caça. Porém, não devemos enxergar Apolo e Ártemis como expressões opostas, mas sim complementares. Ademais, a ideia dos Deuses gêmeos guarda um significado ainda mais profundo: o da dualidade.
Vamos refletir um pouco sobre isso. Quando falamos em “dualidade” estamos representando a ideia do contraste. É necessário uma oposição para reconhecermos quem somos, ou discernir o que cada elemento é. Por exemplo: como saber o que é o quente sem entender o frio? Ou o que é certo sem o errado? Poderíamos citar milhares de exemplos nesse sentido, mas, no fundo, o que precisamos entender é que nós percebemos o mundo – e o entendemos – a partir de oposições. Assim, a dualidade é uma Lei da Natureza, expressa em suas mais distintas formas.
Ártemis e Apolo mostram que a dualidade nasce de uma mesma raíz e que por mais que pareçam ser bem distintas, estão sempre ligadas por um ou mais fatores em comum. Desse modo, os gregos entendiam que não existiam oposições absolutas, sendo essa diferença apenas uma aparência e que, na mais profunda essência, tudo irradiava de um mesmo ponto. Portanto, os dois Deuses são Divindades que apresentam características distintas e cumprem com papéis diferentes, mas sempre estarão ligados por uma essência comum.
Voltando-se para os outros atributos de Ártemis, a Deusa da caça era costumeiramente representada como uma mulher bela e armada de arco e flecha. Ao seu redor sempre haviam animais como cães, ursos e cervos. Sua habitação era o Monte Olimpo, a morada dos Deuses, mas a Deusa passava grande parte do tempo nas florestas, sendo uma protetora incansável da vida selvagem e da Natureza. Além disso, Ártemis tem como uma de suas características principais a Pureza.
Segundo o mito, ainda em sua infância ela pediu a Zeus que a concebesse a virgindade eterna, tornando-se assim casta. A virgindade em muitas culturas é símbolo da Pureza e para os Helenos isso também era uma verdade. Outras Deusas do panteão grego também são virgens, tidas igualmente como castas e personificação da Pureza como, por exemplo, Atena e Héstia, que representam esse aspecto em suas funções. No caso de Ártemis, seu papel como protetora dos animais e da floresta exige de si a Pureza para manter-se em suas atividades sem distrações ou concessões. É graças a essa Virtude que ela não permite violações do seu espaço, como no caso do mito de Actéon.
Conta o mito que certa vez estava Ártemis e suas ninfas banhando-se em um lago distante e, por acaso, passava pelas redondezas um caçador de nome Acteon. Ele acabou avistando as Divindades banharem-se e ficou a espiá-las em seu momento de purificação. Ártemis então percebeu o observador curioso e como punição o transformou em um cervo. Em seguida, os cães de caça de Acteon passaram a persegui-lo e, eventualmente, acabaram por matá-lo.
Observando o mito ao “pé da letra” poderíamos achar que o castigo de Ártemis é demasiadamente cruel para com o caçador. Porém, o símbolo por trás da narrativa mostra que a Pureza, em seu aspecto mais Divino, não permite ser invadida, seja fisicamente ou apenas nas suas intenções. Ártemis, como grande protetora desse atributo, não permite que sua imagem seja maculada e por isso acaba caçando aqueles que corrompem essa Lei. Acteon, de fato, não é a única “vítima” de Ártemis, tendo outros também tentado “manchar” a Pureza da Deusa. Foi o caso de Orion, um caçador que tentou violá-la, porém, sem sucesso. Como punição, Ártemis enviou um escorpião para picá-lo e, consequentemente, o levou à morte. Assim feito, a Deusa da caça concedeu ao escorpião, como recompensa, que ele habitasse às estrelas, tornando-se assim a constelação zodiacal que conhecemos hoje.
Ártemis, portanto, não é apenas uma “contraparte” de Apolo, o tão conhecido Deus solar. Seus atributos e funções eram estimados aos antigos gregos, que em diversas cidades erguiam templos em sua homenagem. O mais célebre de todos estava na pólis de Éfeso, na qual a principal deidade era a Deusa da caça. Acima disso, Ártemis guarda o símbolo da Pureza e Proteção, dois atributos que, combinados, podem nos levar a um caminho mais Espiritual, pois, para conservar a Pureza é preciso estar eternamente vigilante em nossas atitudes, sentimentos e pensamentos. De igual modo, se desejamos proteger algo é fundamental querermos que este continue intacto, que sua forma não seja alterada. A proteção, assim, em seu sentido mais profundo, exige do protetor a Pureza em seu dever.
Por fim, essas ideias não são válidas apenas para os antigos gregos. Por mais que não se construam mais templos dedicados a Ártemis, as ideias que a Deusa representa continuam válidas em nosso mundo atual. Essa é a mágica dos mitos, pois seus ensinamentos não estão presos ao tempo, não podem ser engolidos por Cronos. Para além do contexto histórico em que foram desenvolvidos, eles possuem chaves atemporais sobre a condição humana que não são necessariamente factíveis, mas convertem-se em uma realidade psicológica que podemos viver a todo momento. Assim, não precisamos ser Deuses e andar com arco e flecha pelas ruas de nossas cidades, mas certamente podemos encarnar a Pureza em nossas ações e a proteção de nossas atitudes mais honrosas a partir destes símbolos. Cabe, portanto, vivermos as ideias e assim o mito viverá.