Desconexão da Realidade: Como a Tecnologia Está Mudando a Experiência Humana

Vivemos em uma era de transformações e desconexão da realidade. O século XXI trouxe avanços tecnológicos que há poucas décadas soariam como ficção científica, mas junto a eles surgiu um distanciamento preocupante da experiência humana autêntica. Temos inteligência artificial, realidade aumentada, redes sociais que conectam bilhões de pessoas e dispositivos que cabem no bolso e com poder de processamento superior ao de computadores que antes ocupavam salas inteiras. Contudo, em meio a tanta inovação, estamos nos afastando de algo essencial: a realidade.

Desconexão da Realidade: Pessoa isolada em um mundo digital Desconexão da Realidade enquanto o mundo real se desfoca ao fundo
Tecnologia e o distanciamento da realidade

Essa ruptura, que vem ocorrendo de maneira sutil, afeta a forma como nos relacionamos, como percebemos o mundo e até como compreendemos a nós mesmos. Cada vez mais, usamos essa grande tecnologia como válvula de escape, criando assim refúgios tecnológicos, emocionais e simbólicos para não lidar com as dores da vida real. Entretanto, como disse o sábio Sidarta Gautama, o Buda, a dor é um veículo de consciência, ou seja, estamos aqui para aprender a sermos melhores e a dor, gostemos ou não, nos ajuda nesse processo. Ao fugir da dor, também evitamos o crescimento, o amadurecimento e a experiência genuína da existência humana.

A desconexão da realidade no século XXI

A desconexão com a realidade não ocorre de forma abrupta. Como todo processo, ela ocorre paulatinamente e, quando percebemos, já estamos imersos em um mundo em que nada é real, mas sim um simulacro daquilo que deveríamos viver. Portanto, as mudanças ocorrem em camadas, silenciosamente, muitas vezes mascaradas por boas intenções e movidas pela simples conveniência. Aliado a isso, no mundo atual, vivemos uma avalanche de estímulos. 

A cada instante, somos bombardeados com informações, imagens, notificações e distrações que, tal qual uma teia de aranha, nos prendem em um mundo virtual e, muitas vezes, nos desconectam da vida real. A consequência disso é que a nossa atenção está cada vez mais fragmentada, assim como outras faculdades basilares de nossa psique, como nossa consciência e memória.

Pessoa cercada por notificações e telas digitais
Bombardeio de estímulos e perda de foco

Frente a esse paradigma de um mundo conectado e veloz, a sociedade em que vivemos adaptou-se para concentrar-se na alta performance e na busca pelo prazer instantâneo, afinal, tudo se movimenta de modo tão rápido que o prazer e a felicidade também devem chegar a passos largos. Tudo isso favorece ao escapismo, pois no mundo real existem fases e um tempo apropriado para cada coisa.

Basta pensarmos em exemplos naturais: quando uma mulher engravida, por exemplo, é necessário esperar 9 meses para nascer um bebê saudável; quando plantamos, é necessário trabalho e tempo para que chegue o momento de colher; até mesmo dia e noite possuem um tempo determinado para ocorrerem. Se entendemos essa lei da natureza, de que há um momento certo para cada ação, porque vivemos em um mundo artificial, acelerado, que vai de encontro com essa perspectiva?

Esse dilema se reflete não somente em como lidamos com a natureza, mas também em nosso próprio mundo de relações. Em vez de enfrentarmos nossos conflitos, aprendermos que é necessário tempo e energia para construir algo sólido, seja um relacionamento amoroso ou uma amizade, muitos de nós recorrem a amizades e romances rápidos, vazios e que em nada se assemelham ao verdadeiro amor e amizade. Em um mundo que preza pela velocidade, às vezes “amizades” são construídas e desfeitas em simples trocas de mensagens.

Estamos, a cada dia que passa, nos afastando da experiência da vida real, concreta, que é cheia de imperfeições, mas real, demasiadamente real. A dor, o conflito, o esforço e a responsabilidade, elementos centrais do amadurecimento humano, estão sendo substituídos por simulacros que prometem uma vida sem atritos. Porém, essa “vida sem atritos” é também uma vida sem profundidade e, em última instância, falsa, ilusória.

Um exemplo dessa desconexão com a realidade são os famigerados “bebês reborn”. Esses brinquedos nada mais são que bonecos extremamente realistas, feitos em silicone ou vinil, com traços tão detalhados que se assemelham a recém-nascidos reais. Muitos são vendidos com certificados de nascimento, nomes, roupas, carrinhos e até certidões de vacinação fictícias. À primeira vista, pode parecer um hobby inocente ou uma forma artística de escultura em miniatura, feita para crianças brincarem.

Entretanto, o que poderia passar de um simples hobby ganhou outras proporções. Diversas pessoas adultas têm adotado esses bonecos como substitutos de filhos reais, alimentando-os com mamadeiras, colocando-os para dormir em berços, levando-os a passeios, tirando fotos e postando em redes sociais como se fossem bebês vivos. Há até encontros de “mães reborn” para compartilhar experiências e trocar dicas de cuidado. Além disso, é relatado casos de pessoas que levaram seus “filhos” para vacinar em unidades básicas de saúde, o que comprova uma total desconexão da realidade.

O que inicialmente pode parecer curioso, na verdade revela um comportamento preocupante e que reflete um pouco o dilema que vivemos no mundo atual. Estamos diante de uma geração que tem medo da responsabilidade da maternidade e da paternidade reais; logo, para viver essa experiência sem passar pelas dores e dificuldades de criar uma pessoa, muitos recorrem à ilusão de que esses bonecos são, de fato, seus filhos.

Adulto alimentando um bebê reborn com mamadeira em casa
O afeto simulado através de bonecos realistas.

A mesma situação ocorre, em proporções menores, com quem adota plantas e animais e os trata como filhos. É importante entendermos que dar carinho e amor para os nossos pets é fundamental e necessário, sendo essa uma bela expressão de amor. Porém, precisamos compreender que esses não são nossos filhos, pois a experiência humana é distinta. Ainda assim, todos os anos, observamos o crescimento de mais pessoas que tratam e colocam seus animais de estimação na condição de filhos, levando-os para creches, dando-lhes roupas e exigindo-lhes uma maneira de viver que não é própria dos animais.

Esses comportamentos podem ser vistos como uma metáfora da nossa época: queremos os bônus da vida sem os ônus. Queremos os sorrisos de um bebê, mas não os choros na madrugada. Queremos o status de ser mãe, mas não a dor do parto, a renúncia da rotina, o desafio de educar. O bebê reborn simboliza a ilusão do afeto sem esforço.

Além disso, muitos desses “pais” e “mães” reborn expõem seus bonecos como se fossem reais, confundindo não apenas suas próprias emoções, mas também os limites entre realidade e ficção. Há casos de pessoas que compram esses bonecos após perderem filhos ou por não conseguirem engravidar, o que aponta para um luto não elaborado ou um trauma não enfrentado. A questão que se coloca, portanto, não é julgar essas pessoas, mas compreender o que esse comportamento sinaliza.

Ironicamente, nunca estivemos tão conectados e tão desconectados ao mesmo tempo. A internet nos conecta a qualquer parte do mundo em segundos, mas nos distancia do que está à nossa frente. Nas mesas de jantar, cada um olha para sua tela. Nos transportes públicos, quase ninguém conversa. No trabalho, interações humanas reais são trocadas por mensagens instantâneas. Criamos uma vida paralela online que, muitas vezes, parece mais importante do que a vida concreta.

Esse distanciamento pode gerar um profundo vazio existencial, pois, quando a vida real se torna difícil – e ela naturalmente é difícil em algum grau para todos nós –, ao invés de enfrentá-la, muitos optam por se refugiar no mundo virtual e se esconder atrás das telas. A questão que precisamos nos fazer é: que tipo de humanidade estamos construindo quando escolhemos interações simuladas em vez de vínculos reais?

Como podemos solucionar esse dilema?

A solução para essa desconexão da humanidade precisa ser uma solução humana. Não existirá uma pílula ou um novo app que nos faça compreender a vida real como ela é e enxergar sua beleza. Desse modo, talvez nosso primeiro e importante passo é aceitar que a vida real é imperfeita, complexa, cheia de altos e baixos. Como esses fatores fazem parte da vida, não precisamos viver em um conto de fadas em que há sempre perfeição em tudo, pois isso não existe. A natureza está em uma eterna evolução e nós, como partícipes desse processo, também estamos evoluindo. Evoluir significa, em poucas palavras, crescer e se adaptar. Esse é um processo que leva tempo e não é isento de dores.

Grupo de pessoas em roda conversando ao ar livre
Reconexão com o real por meio de vínculos humanos

Portanto, ao invés de buscar a perfeição das simulações, precisamos cultivar a gratidão pelas imperfeições que tornam a experiência humana rica e autêntica. Devemos valorizar as lágrimas reais, as frustrações concretas, os relacionamentos que exigem diálogo, perdão e constância. Tudo isso molda o nosso caráter e aprofunda nossa existência. Para isso, é fundamental investir em relacionamentos reais,  que demandam tempo, escuta e presença. Dessa forma, devemos resgatar o valor do convívio familiar, da amizade e da convivência comunitária, pois é na interação com outros seres humanos que podemos crescer. 

Por fim, vivemos um tempo em que precisamos fazer uma escolha consciente: vamos continuar nos afastando da realidade em nome do conforto emocional, ou vamos encarar o desafio de viver com profundidade? O mundo precisa de mais gente real, de mães reais, de pais reais, de amigos reais, de cidadãos que não fujam da vida, mas a abracem com coragem. Sejamos, portanto, nós esses homens e mulheres do mundo real.

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