Concebemos o mundo a partir de dualidades: “alto e baixo”, “grande e pequeno”, “direita e esquerda”, “bem e mal”. O contraste dessas ideias e suas qualidades nos fazem estabelecer uma série de critérios que nos ajudam a formar nossa visão de mundo e identidade. Assim, passamos não somente a entender o que se passa ao nosso redor, mas principalmente definimos nossas preferências a partir do que nos gera prazer ou desconforto. Partindo disso, começamos a formar nossa identidade por meio do que nos atrai e também pelo que nos causa repulsa.
Dentro dessa perspectiva de polaridades, uma das mais conhecidas a nível mundial é o que chamamos de “Ocidente” e “Oriente”. Divididos pelo Meridiano de Greenwich, essas duas partes do mundo são ideias que perpassam uma linha imaginária que separa geograficamente os dois locais. Ocidente e Oriente são, antes de tudo, expressões de culturas e civilizações que geram grande parte das identidades do mundo atual. Não por acaso, costumamos falar que vivemos de maneira ocidental, mas não porque estamos a oeste do Meridiano, mas simplesmente pelos costumes que adotamos. Por outro lado, o que chamamos de “Oriente” é a conjugação de diversas culturas que cria uma falsa oposição, como se as pessoas que estão imersas nessa identidade fossem completamente distintas dos demais. No mundo atual, essas diferenças têm se tornado cada vez menores graças à globalização, mas ainda é possível notar grandes preconceitos referentes à cultura oriental, seja criando estereótipos de tipo físico, psicológico ou mesmo na maneira desses povos enxergarem o mundo.
Frente a essas diferenças, podemos pensar se em outros momentos da História esses dois “blocos culturais”, chamemos assim, já coexistiram de forma mais harmônica. De fato, se voltarmos um pouco no tempo, poderemos perceber que o mundo nem sempre foi tão demarcado como nos últimos séculos, e as diferenças entre Oriente e Ocidente já foram tão tênues que se limitavam apenas a formas específicas. Um grande exemplo desses momentos de integração de culturas foi o movimento greco-budismo, ocorrido por mais de 800 anos ao longo do subcontinente indiano e em algumas partes da Ásia Menor.
Como o nome pressupõe, o greco-budismo nada mais foi do que a mescla da cultura helenística com a doutrina de Buda, que espalhou-se pelo Oriente a partir da região do Nepal e chegou à Índia, Tibete, China e demais regiões da Ásia. Mas como essas culturas tão distintas se juntaram? E como entraram em contato? Para responder a essas questões precisaremos retornar um pouco no tempo, até o período das conquistas macedônicas, iniciadas pelo rei Filipe II e continuadas por ninguém menos que Alexandre, o Grande.
Esse período foi o século IV a.C.. Nessa época, a Grécia, que havia saído de duas grandes guerras – as Médicas, contra os Persas, e a do Peloponeso, travada entre Atenas e Esparta – estava fragilizada, tanto a nível econômico quanto social. Percebendo a vulnerabilidade dos seus “vizinhos”, os macedônios conquistaram todas as pólis gregas, expandindo seu território para toda a região dos Balcãs. Filipe II, porém, não imaginaria que a expansão macedônica seria tamanha que formaria um dos maiores impérios da antiguidade. Seu filho, Alexandre, fora educado pelo grego Aristóteles e desde cedo mostrou-se um apaixonado pela cultura helênica. A mitologia grega e os ensinamentos filosóficos com que entrou em contato fizeram que ele desejasse que todo o mundo macedônico conhecesse os pilares da civilização grega.
Desse modo, sempre que Alexandre conquistava um novo povo, principalmente aqueles em que a cultura mostrava-se completamente diferente da sua, o rei-general rapidamente forçava casamentos entre seus comandantes e pessoas de prestígio do império com as princesas destes reinos dominados. Sua intenção, para além da melhor convivência com os povos recém-conquistados, era a de integração entre as duas culturas. Assim, a cultura grega – que já era “exportada” ao longo do mediterrâneo e para o Oriente graças às trocas comerciais – passou a ser mais intensa com a ocupação de soldados e helenos nessas novas regiões. Como sabemos, Alexandre ampliou seu império até parte da Índia, que naquela época já era uma civilização milenar, dotada de diversos conhecimentos e de uma doutrina filosófica bem estabelecida. Foi nesse ambiente de pluralidade e mistura cultural que floresceu o conceito de “greco-budismo”, vivido principalmente pelas gerações de gregos que comandaram a região séculos depois da partida de Alexandre.
Os reis dessa região passaram a desenvolver um contato direto com o budismo, que nessa época, na Índia, mostrava-se mais popular do que o próprio bramanismo. Os preceitos de Buda encantaram os helenos, e sabemos disso porque alguns deles têm em suas lápides dizeres como “servo de Buda” ou mesmo “fiel seguidor do dharma”, conceitos orientais que até então eram quase desconhecidos no Ocidente. Para além da curiosa integração destas ideias por meios destes reis gregos, podemos refletir sobre como não havia, de fato, uma separatividade sólida entre essas duas regiões. Ao contrário do que imaginamos, na antiguidade existia uma forte rede de comunicação entre as civilizações, o que fez com que diferentes ideias e culturas fossem disseminadas nos quatro “cantos” do mundo.
Citamos dois exemplos interessantes sobre isso: o primeiro é a cidade de Alexandria, no Egito. Fundada por Alexandre, o Grande, durante sua dominação no Egito, Alexandria era um importante centro cultural, econômico e científico. Nesta cidade, situava-se uma das principais bibliotecas do mundo antigo, na qual estima-se que existiam milhares de pergaminhos contendo os mais distintos tipos de estudo. Além disso, Alexandria era uma cidade que hoje chamamos de “Cosmopolita”, ou seja, na qual diferentes culturas e pessoas viviam em harmonia. Devido a seu caráter comercial, ela recebia pessoas de todas as partes do mediterrâneo, além de povos da península arábica e da Ásia Menor. Nessa cidade plural, desenvolveu-se diversos tipos de culto, e as misturas de diferentes deuses se tornaram comum, principalmente egípcios e gregos, as duas culturas que predominavam nesta época. Ainda assim, sabe-se que em Alexandria existiam alguns indianos e estes, de forma mais tímida, levaram a cultura budista para dentro das muralhas da cidade egípcia.
Outro exemplo desta integração do mundo antigo está no fato dos romanos, em sua fase imperial, conseguirem comercializar artefatos de origem chinesa, graças às diferentes rotas comerciais que levavam produtos a saírem do mediterrâneo e cruzar milhares de quilômetros pelo continente asiático até chegar ao milenar império da China. Tal tarefa só pôde ser possível com uma complexa rede de comércio que conectava por diferentes meios essas civilizações tão distantes espacialmente. Nesse processo de troca de produtos, é natural que outros aspectos culturais se mesclem, fazendo com que conheçamos um pouco mais de cada pessoa com a qual interagimos.
É evidente que o comércio por si só não nos faz mais abertos a outras culturas, mas sem dúvida demarca um passo importante para a aceitação e compreensão do outro. Frente a isso, a religião também é uma ponte importante para a ligação entre essas diferentes formas de enxergar o mundo. Dizemos isso porque para além dos aspectos formais, ou seja, da prática e ritos específicos de cada religião, há uma essência que busca se religar ao divino. Se conseguirmos enxergar essa essência em cada expressão religiosa, poderemos perceber a beleza em todas as formas de culto, desde as mais próximas de nós até aquelas que quase nada conhecemos. Foi essa capacidade de integrar a essência dessas doutrinas que fez nascer o greco-budismo, pois notou-se que “Buda” e “Hércules” são, em maior ou menor grau, pedaços de um mesmo caminho que nos faz se ligar ao divino.
Se isso foi possível há mais de 2 mil anos, será que não somos capazes de mais uma vez enxergarmos a beleza de todas as formas religiosas? E se expandirmos essa perspectiva, será que não é possível integrarmos as demais culturas humanas à nossa própria experiência? Sem sombra de dúvidas, a capacidade de enxergarmos a unidade humana na multiplicidade de formas culturais em que vivemos é uma habilidade que nos proporciona uma evolução em direção à nossa verdadeira natureza humana. Sendo assim, que possamos nos esforçar ainda mais para, assim como os reis gregos na Índia Antiga, possamos unir diferentes modelos culturais em prol de uma única realidade: a da nossa essência enquanto seres humanos.