Curta “O Emprego”: humanos não são objetos

Vivemos em uma sociedade utilitarista. Mesmo essa sendo uma verdade difícil de aceitar, é necessário olharmos para esse cenário com a objetividade que nos permita refletir sobre ele. Cada vez mais fica nítido que o trabalho humano se tornou, em grande medida, uma moeda de troca pela sobrevivência. Essa mentalidade de uso e troca, porém, perpassou os limites do mundo do trabalho e avança cada vez mais nas relações pessoais. Vivemos uma eterna “troca” de favores com nossos amigos e parentes, contabilizando o que foi feito de positivo e negativo, e, na primeira oportunidade, utilizamos dessas informações para ganharmos alguma vantagem, seja material ou subjetiva.

Frente a essa realidade, quando pensamos em nossos ofícios ou habilidades é impossível não pensarmos que só é válido aquilo que pode ser utilizado. Assim, o médico só tem sua profissão validada quando pode exercer a medicina, um professor quando pode ensinar, um sapateiro quando faz sapatos. Caso você não possa exercer sua profissão, ela deixa de ser válida no mundo atual.

Não é assim que o senso comum pensa? Não por acaso, quando nos aposentamos, após décadas de trabalho esforçado e exaustivo, geralmente passamos a ser vistos como um “peso” para a sociedade, que já não reconhece o valor de quem deu sua vida a uma profissão. A cada dia que passa, valoriza-se mais quem pode ser útil, ou seja, quem está ativo em suas funções, e aqueles que já gozam da aposentadoria são vistos como um fardo. 

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Há uma série de implicações nessas afirmações, porém, a causa disso tudo está, como já apontamos no começo desse texto, no pensamento utilitarista. “Só é válido aquilo que nos serve”, portanto, nunca deixe de servir, pois, caso o faça, já não será visto como alguém de valor. Infelizmente, esse tipo de pensamento alimenta o nosso egoísmo e nossas relações sociais – não apenas no trabalho – passam a ser balizadas pelo que o outro pode nos oferecer. Caso não haja nada de valor a ser recebido numa relação, então não interessa continuar construindo uma amizade ou qualquer tipo de convivência.

Percebe, meu caro leitor, como esse tipo de pensamento é perigoso? Aos poucos, vamos nos afastando das pessoas, pois não queremos ser explorados e, ao mesmo tempo, não há nada que possamos explorar nelas. Assim, nossas relações se baseiam em trocas materiais e afetivas, e não pelo fato de queremos conhecer de forma desinteressada o outro. Nossos interesses passaram a ser utilitaristas e egoístas e talvez, por isso, estejamos vivendo em um mundo em que virtudes como “confiança”, “amizade” e “amor” sejam cada vez mais raras.

Sobre esse assunto, recomendamos hoje o curta “O Emprego” (El Empleo), que é uma animação argentina da primeira década dos anos 2000, produzida e dirigida por Santiago Grasso e Patrício Plaza. Foi um curta-metragem que recebeu vários prêmios nacionais e internacionais devido à sua temática – o homem e a sua relação com o trabalho. Neste pequeno filme, de forma lúdica, aborda-se de forma impressionante o processo de desumanização do indivíduo através das suas relações de trabalho. 

Capa do curta o Emprego

Longe de querer aqui discorrer ou aprofundar os conceitos de “alienação”, “trabalho” e o seu impacto nas relações sociais, cabe a nós resgatar o sentido dessa relação social para entender melhor a proposta do curta. 

Assim, comecemos por entender as categorias utilizadas por Marx, um dos importantes estudiosos sobre a temática em questão. Em uma de suas obras, mais precisamente O Capital, o autor discorre sobre o processo de construção da humanidade ao longo da história. Segundo o filósofo e sociólogo, é através do trabalho que, ao longo da história, o indivíduo se humaniza, domina e transforma a natureza a favor de suas necessidades, pois através do trabalho o homem constrói a sua identidade e supera as adversidades do cotidiano, com sua imaginação e sua capacidade de produzir ferramentas. 

Desse processo surge o desenvolvimento da cultura. Ou seja, a cultura é fruto da produção que é consequência do trabalho. Diante disso, se o homem é alienado do processo do seu trabalho, não se constrói, não tem identidade, não produz cultura e se reduz apenas a uma coisa/objeto, tal como se demonstra em nosso curta.

Aqui nesse ponto, cabe trazer outro importante conceito para a nossa análise, que é o conceito de “alienação”. A palavra vem do latim “alienatio”, que significa estar alheio a algo. Mas, tratando-se do caso em questão, a alienação do trabalho significa que o trabalhador participa apenas do processo e não tem acesso ao produto final, ou seja, aos bens que produz. Assim, dentro da dinâmica de produção, o trabalhador elabora e constrói, mas fica totalmente alheio ao produto e, consequentemente, fica também alheio a qualquer valor ou bem agregado ao seu trabalho. 

Agora focando as nossas atenções para o curta, “O Emprego” resgata e atualiza essas ideias, ou pelo menos uma parte delas, em apenas 7 minutos. Dado o histórico de premiações e visualizações nas plataformas virtuais, assim como o debate gerado, percebe-se que essas ideias ainda continuam reverberando com muita força. No curta, o encadeamento das cenas da rotina do trabalhador conduz para a ideia de sua relação desumana com os objetos, com as pessoas e com tudo o que o cerca. Ou seja, um indivíduo alienado do trabalho, consequentemente, torna-se um objeto e passa a coisificar tudo o que o rodeia.

É muito interessante como, através das cores e da ordem da narração das imagens, os produtores ressaltam a simetria entre as pessoas e os objetos, que acabam por se igualarem no seu valor social. A cena final culmina com o trabalhador se deitando ao chão e servindo de tapete para o seu chefe pisar e passar por cima. Da mesma forma que objetificava os demais trabalhadores, o protagonista também se torna um objeto de seu patrão, que, por sua vez, podemos deduzir, é mais um personagem que será privado de sua humanidade, para ser usado como objeto de outras pessoas, em outras circunstâncias.

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Diante da proposta do curta e de tudo que foi citado acima, cabe uma reflexão sobre esses conceitos que foram debatidos exaustivamente ao longo dos últimos séculos. O curta, de fato, mostra uma realidade que tem levado a perigosas tensões entre classes sociais. Parece que vivemos constantemente em uma guerra entre os que são usados e explorados, e aqueles que usam e exploram. Porém, a solução para este problema não é simplesmente uma troca de papéis. Essa forma de encarar a sociedade só nos mergulhou em um mar de desconfianças, mágoas, tristezas e incertezas.

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A perspectiva de uma abordagem apenas materialista da sociedade já nos mostrou que ela não consegue dar respostas à nossa realidade, tendo em vista o nosso histórico dos últimos séculos. Reduzir a vida humana às necessidades materiais é desconsiderar outras necessidades transcendentais que habitam dentro de todos nós. Como explicar o nosso impulso para a Justiça, para a Bondade ou para a Beleza? Esses são aspectos subjetivos que transcendem a materialidade de nossa vida objetiva.

Assim, é preciso compreender que a Vida – com “V” maiúsculo – perpassa os aspectos sociais criados artificialmente para a convivência humana. Como ser da natureza, a humanidade está muito além dos acordos sociais e das convenções que, ao longo dos séculos, moldaram a cultura e percepção da vida. Quando percebemos verdadeiramente que não viemos ao mundo para construir carros, pontes e se achar superior aos demais seres da natureza, poderemos verdadeiramente viver em harmonia, construindo a nós mesmos.

Por isso, precisamos fazer como o personagem que aparece após os créditos, o “abajur”, que simplesmente abandona essa condição e não aceita mais ser usado como um objeto. Mas isto não pode servir somente para nós mesmos. Uma pessoa tem valor pelo que ela é, e não pelo que ela produz. Se queremos dar respostas válidas ao momento complexo em que vivemos, precisamos compreender o ser humano de maneira profunda e conectá-lo às virtudes que habitam dentro dele. Para isso, é necessário entender que o nosso verdadeiro trabalho não é construir coisas no mundo material, mas sim compreender e construir a nossa própria identidade humana, a partir do que há de mais Divino dentro de nós.

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