Falar de temáticas voltadas para adultos sob a perspectiva do olhar da criança foi uma das propostas principais da animação musical “A caminho da lua”. Lançado recentemente pela Netflix, no segundo semestre de 2020, o filme foi dirigido por Glen Keane, o experiente animador, autor e ilustrador americano que já esteve à frente de diversas outras animações e longas da Disney. Quem não se lembra da Pequena Sereia, do Aladdin, da Bela e a Fera e do Tarzan que nos encantaram nos últimos 30 anos com toda a sua magia? Em todos esses filmes tivemos Glen participando ativamente de suas produções.
O filme “A caminho da Lua” tem como base o roteiro de Audrey Wells, roteirista, cineasta e produtora cinematográfica norte-americana que faleceu no ano de 2018, vítima de câncer. A trama principal desse musical gira em torno de como uma criança lida com a perda precoce de sua mãe e vive o seu luto e as mudanças familiares a partir desse fato. Fei Fei é a personagem principal e é sob o seu olhar e o seu coração que vemos todos os seus dilemas e dramas.
Embora poucos saibam, o roteiro escrito por Audrey e animado pelo produtor Glen, é um pouco da própria história da roteirista que, de alguma forma, queria deixar uma mensagem a sua filha. Apesar da temática ser adulta e difícil, o filme é alegre, divertido e leve. Destaca-se a forma como se discorrem os fatos, que os envolvem com um ar de puro encanto e magia. O musical é bem dançante ao estilo do hip-hop, do pop e do k-pop o que torna as cenas dinâmicas e vivas.
De maneira geral, a animação infantil “A Caminho da Lua”, narra a vida de Fei Fei, uma jovem chinesa que cresceu numa família envolta de carinho e amor dados pelos seus pais. Ainda criança, a jovem costumava ouvir da mãe o mito de Chang’e, a Deusa da Lua que encontrava-se à espera de reencontrar o seu amado. Adorava escutar a lenda dessa jovem que viveu uma linda história de amor, mas que por engano tomou duas pílulas para a imortalidade e fatalmente fora separada do seu amor para sempre. O desfecho da história narra que a Deusa vai morar na lua sozinha. Esse mito então, se torna o elo da jovem Fei Fei com a sua mãe e a memória que passa a ter dela, pois conviver com a dor da sua ausência, além de ver o seu pai casar-se com uma nova mulher a machuca profundamente. A necessidade de se adaptar a uma nova família levou a jovem a utilizar a lenda da deusa Chang’e como um amuleto para superar a dor e alimentar a esperança de rever a sua mãe novamente.
Toda a aventura na animação começa quando a jovem chinesa tenta retornar ao passado e decide ir até a lua fazer um pedido a sua Deusa. Junto com o seu “novo irmão”, Chin, uma figurinha cômica, e o seu coelho, ela reúne todo o seu conhecimento em ciência para construir um foguete para cumprir a sua missão. Ao chegar lá, Fei Fei se depara com um lugar mágico, muito colorido e com várias criaturas fantásticas. Uma perspectiva interessante nessa produção foi a contação de uma lenda importante para as crianças chinesas sem os elementos de uma narrativa ocidental. A autenticidade da história conjugou elementos da cultura moderna da China, o que deu um toque bem especial e leve ao enredo. Só para exemplificar, a imagem da Deusa Chang’e (na voz da Phillipa Soo) é expressa através de uma versão oriental cartunizada, bem colorida e divertida. O que traz toda uma estética infantil e deixa o filme ainda mais agradável.
De maneira inteligente, ao longo da trama a dor do luto da Fei Fei vai se transformando em aceitação dos fatos da vida. Aqui há um ponto de grande importância: aceitar a dor, acolher os fatos que acontecem e aprender com eles, marca a chegada da maturidade para a jovem, que entende que o melhor caminho é seguir em frente.
Para além da estética e da técnica do filme, cabe aqui uma reflexão a ser pontuada. Até que ponto compreendemos e sabemos lidar com as nossas perdas? E como podemos ajudar as crianças a lidarem com essas questões? Sabemos que as crianças não são imunes à dor, mas como ensiná-las a enfrentar certas situações ou temáticas adultas, preservando o desenvolvimento saudável de sua psique? Se na animação somos embalados pelas emoções dos belos musicais e a fantasia que toda a tecnologia pode nos conferir, na realidade o processo de ter que lidar com determinados “assuntos de adultos” levam as crianças a um alto nível de estresse, podendo causar sérios problemas na personalidade desses Indivíduos que estão em formação.
No livro “A República” de Platão, no processo educativo da cidade ideal, todas as crianças deveriam ser protegidas pelos adultos de determinados assuntos, tendo em vista que, por ainda estarem com a sua psique em formação, o peso de determinadas ideias seria quase insuportável, além de doloroso. Para alguns psicólogos, por exemplo, crianças em idade pré-escolar normalmente associam o tema da morte com ideias de retorno, como uma viagem, e não como uma realidade.
Já para as crianças entre 05 e 10 anos a compreensão da ideia da morte já se torna mais palpável, mas nestas idades ainda não há experiências necessárias para se viver o luto, por isso a depender da proximidade do falecido com a criança a morte pode gerar choques traumáticos. Ainda assim, falar sempre a verdade para as crianças é um dos conselhos mais recomendados dos terapeutas infantis. Mas, qual a verdade é possível ser dita para as crianças? Em que momento elas devem ser convidadas para opinar e participar dos divórcios, dos problemas financeiros, das dificuldades familiares, das crises emocionais dos seus pais e parentes? Se pudéssemos comparar o peso de determinadas ideias e experiências citadas acima ao peso real por quilogramas dos objetos, alguém em sã consciência, colocaria sobre os ombros de uma criança de 5 anos um objeto pesando toneladas? Acredito que tal atitude causaria estranheza a qualquer Indivíduo normal. Porém, por que entregamos para as crianças carregarem determinadas ideias, num nível de complexidade difícil até para os adultos?
Não é que as crianças não precisem lidar com a morte de um pai, com um divórcio inevitável, um problema financeiro ou um mundo virado de cabeça para baixo. Entretanto, nós, os adultos, precisamos saber e ter o compromisso de proteger os nossos pequenos de temas desnecessários que vão lhe causar dores evitáveis. E, quando houver a necessidade de partilhar algo, que passemos pelos crivos da necessidade, da importância e analisemos quais serão as formas mais adequadas para não expor a saúde psíquica e mental deles, além da formação da personalidade de nossos pequenos. Nós somos responsáveis pelo futuro deles, então que possamos honrar com tal dever!