O que nos faz humanos? O que nos separa dos demais seres conhecidos nesta vasta imensidão de nossa nave-casa? Talvez seja fácil separar homens de pedras: estas aparentemente não se mexem. Assim como parece simples traçar uma fronteira entre a vida humana e a vegetal, já que as plantas não choram, ainda que apresentem movimento. Mas, quando comparamos homens e animais, essa linha fica esmaecida, tênue e não é tão fácil de perceber. Enquanto um se movimenta, se alegra, fica irado, chora, o outro vive em busca do prazer e fugindo da dor. Tentemos identificar quem é o homem e quem é o animal nesta sentença e entenderemos o dilema. Ou seu cachorrinho não apresenta mais emoção do que aquele namorado virginiano calculista? De fato, a emoção é um traço característico dos animais. Olhemos os leões da savana, ou os peixes do mar e identificaremos facilmente medo, raiva e talvez, até mesmo algum grau de amor. Com os homens ocorre o mesmo: basta o burro do carro à frente realizar uma manobra que coloque em risco nosso precioso veículo, para que o touro indomável de nossa vingança transforme as vias públicas na verdadeira selva de pedras.

E o que falar sobre o binômio prazer e dor? Se observarmos nossa sociedade atual, veremos matilhas de homens e mulheres que dedicam a maior parte de suas vidas à procura do prazer e autopreservação. Por exemplo: Trabalhamos para ter dinheiro. Precisamos de dinheiro para comprar coisas. Compramos coisas para ter prazer, ou para evitar um desconforto, e muitas vezes as duas coisas. Queremos uma casa para evitar o sofrimento de uma vida sem teto, mas também para reproduzir a brincadeira infantil em tamanho real, decorando com vários penduricalhos nossa casinha de boneca. Por motivos muito semelhantes, o arquiteto joão-de-barro também faz sua moradia. Como podemos ver, somos em muitas situações realmente típicos membros do reino animália.

Mas, não haveria algo que nos desse a assinatura da nossa espécie? Seria apenas o cérebro altamente desenvolvido e a presença de um polegar opositor? Sim, há quem diga que o cérebro nos difere dos demais animais. E temos que reconhecer que não há na natureza nenhum animal com uma mente como a nossa. De fato, para muitos, nesse ponto podemos definir o ser humano: somos animais pensantes! Muitas vezes, somos sim. Como diria uma antiga tradição oriental, vinda da região onde hoje se situa a Índia, nossa mente pode ter dois comportamentos. Ela pode estar a serviço do animal em nós, calculando todos os estratagemas para realizar nossos desejos, focando em nossa própria satisfação egoísta, sendo assim uma ferramenta poderosa nas mãos de uma humanidade ainda não plenamente desenvolvida. É mais ou menos como se colocássemos uma metralhadora nas mãos de uma criança: em pouco tempo a sala toda estaria destruída e não demoraria para um desastre ainda maior acontecer. Um homem que usa sua mente nestes termos, seria um predador poderoso que consumiria tudo o que pudesse lhe dar prazer e proteção, sem se preocupar com os demais. E, como hienas, com estômagos sem fim, terminaria por ameaçar o equilíbrio da vida. Equilíbrio do qual, ele mesmo depende. Não pode ser esse o nosso elemento humanizador! Podemos ser mais do que apenas um “animal cabeçudo”. Temos que ser mais do que isso, ou varreremos a vida da face de nossa casa-nave. Deve haver algo que só seres humanos possam fazer. Algo que nos é natural…

Se voltarmos à tradição grega, encontraremos três dimensões para a vida humana: Nous; Psique e Soma. Esta última se relaciona com o mundo das ações, o mundo físico e dos instintos, nossa parcela animal. A primeira se refere a nosso lado inteligível, divino, a dimensão imortal da alma humana. E no meio dessa duas, aquilo que anima o corpo, a alma, nossos pensamentos e emoções. Se o homem eleva sua Psique até Nous, realiza seu “eu-humano”. Se rebaixa até Soma, faz nascer o seu “eu-animal”. Assim sendo, o homem tem uma escolha para toda a vida: viver como ser humano, ou como um animal pensante. Se escolher o segundo, viverá como descrevemos anteriormente. Mas, se voltar sua alma, sua mente, para o inteligível e imperecível em nós, poderá gerar frutos indistintamente humanos. E aqui reside a resposta a nossa primeira pergunta. O que nos faz humanos?

Os seres humanos são os únicos que roçam o divino. Só a nós cabe o benefício da contemplação da beleza! Não veremos nunca uma girafa aproveitar sua posição privilegiada para admirar as árvores e a harmonia de um crepúsculo. Só o homem pode tecer argumentos sobre as Leis da Natureza. Um macaco usa uma ferramenta, mas não escreve livros apenas para tentar explicar o universo. Só a mente humana pode escolher ser caridosa, humilde, boa, racional, justa, enfim virtuosa! É isso que nos faz humanos. Não é a quantidade de contas que podemos fazer, isso as máquinas fazem melhor. Nossa humanidade está na possibilidade de olhar para o mundo de um ponto de vista não pessoal. De um ponto de vista de alteridade, e compreender como tudo está unido numa mesma cadeia de causas e efeitos. Olhar para cada ser na face da terra e ver resplandecer de dentro dele a luz de uma águia dourada e entender que essa é a mesma luz que cintila e brilha dentro de cada um de nós. E dessa possibilidade de sermos Um, compreender que mesmo que haja sombras em nossas personalidades, mesmo que nossos pequenos eus, escondam nosso grande e único Eu, mesmo que nossas escolhas, palavras, ações pareçam esconder a luz do sol, ainda há em cada ser humano a potencialidade de realizar essa transmutação e brilhar como uma estrela. Para ver isso, temos que deixar nosso próprio sol nascer e desenvolver nessa aurora um olhar que não seja centrado somente em nós mesmos. Se conseguíssemos ver que somos todos partes de um mesmo mistério, talvez fosse mais fácil compreender os outros!

No dia 17 de setembro, comemoramos o dia da compreensão mundial. Um dia dedicado à convivência fraterna; à concórdia; ao respeito. Essa é uma realidade difícil de conquistar. Mas, que outra batalha valeria à pena?

Como diz uma tradição tibetana, há no mundo um grande mal chamado de “Heresia da Separatividade”, anunciando que entre eu, você e as outras pessoas do mundo há um vazio, ou seja, não há nada que nos conecte. Para superar esta ilusão e alcançar uma visão que permita compreender a tudo e a todos, temos que tentar ver para além dos muros que nos separam, para além das palavras agressivas, para além das críticas maledicentes, para além dos rompantes de destempero, para além das violências todas. É necessário esforço!

É um trabalho longo e difícil, é verdade, mas quando um de nós consegue algum progresso e constrói em si um pouco de sua própria humanidade, ganha o poder de inspirar a muitos! E na trilha desses que superam a grande heresia da separatividade, vamos recordando o que é ser “Humano”. O vídeo abaixo nos mostra um grande exemplo disto:

Observemos o caso de Agnes Furey e Leonard Scovens. Ele é um jovem negro viciado em crack, que assassina a namorada e seu filho pequeno. Ela é uma mãe e uma avó, que chora uma perda irreparável. Nada poderia unir esses dois, a não ser a humanidade que teima em nos chamar de volta para casa, que trepidava no peito de Agnes e que adormecia no de Scovens. Ela escreveu, ele respondeu. E de tanto ler as histórias uns dos outros, encontraram um ponto de encontro. Agnes encontrou uma pureza que seu nome já denunciava. Leonard encontrou um novo significado para a palavra “Amor”. Os dois se aproximaram do conceito de “Justiça”, que eles chamam adequadamente de restaurativa. Porque devolve o sentimento de humanidade para o centro de nossas relações. E se essa senhora de 80 anos encontrou forças para compreender alguém com tantas sombras, e que ela teria todos os motivos para odiar, se mesmo assim ela encontrou razões para perdoar e ver, será que nós temos o direito de nos esconder em desculpas vãs para manter aquela mágoa estúpida?

Assista ao vídeo com essa história contada pelos olhos de Leonard. Olhe nos olhos dele e veja a sua própria humanidade refletida.

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