Todas as vezes que uma mãe chama seu caçula para o almoço e serve um vatapá, feito no delicioso azeite de dendê;
Todas as vezes que alguém toca um agogô e antes de dar seu trago na cachaça, dá um gole para o seu orixá;
Sempre que o maracatu toca nas terras de Pernambuco, a nova Roma de bravos guerreiros, na noite dos tambores silenciosos;
Assim que um moleque joga sua capoeira, ao som do berimbau, fazendo bagunça e cansado procura o dengo de sua iaiá, que com seu balangandã o espera com um quitute e um cafuné;
Logo que uma mulher escuta samba, mas aquele samba raiz, com cuíca, afoxé, maracas;
Quando você se envolve em um perrengue, mesmo que pare num camburão, todo esmolambado, por causa de um fuxico, daquele vizinho banguela…
Nessas horas, no fundo do coração brasileiro, ecoa uma voz milenar, chegada aqui há tantos e tantos anos atrás, nas lágrimas e no corpo esquálido (magro de tão desnutrido pela viagem de além-mar) de homens e mulheres negros. Vindos da maior diáspora da história da humanidade, para que nunca esqueçamos: cinco milhões de pessoas foram escravizadas para manter o sistema produtivo da colônia portuguesa, o Brasil.
As histórias de dominação de uma cultura por outra são numerosas na caminhada humana. Continuamente, culturas foram dizimadas e substituídas pela dominante. Mas, houve casos em que o agente hegemônico se encontrou com uma cultura tão forte que foi por ela dominado. Se não nos braços, no coração. Como os mongóis, que dominaram o Tibet e encontraram uma tradição religiosa tão profunda que adotaram sua religião como a oficial para o império. Em nosso país, costumam nos dizer que desembarcaram vindos da África os nagôs, jejes e bantos. Mas eles eram povos muito mais numerosos, entre eles estavam ovimbundos, dembos, ambundos, imbangalas, quiocos, lubas, lundas, congos, tios, hauçás e iorubás. Com eles, culturas diferentes, produtos de um sussurro imemorial de tempos ancestrais, vindos da terra, onde o homem surgiu, segundo a ciência. Esses nossos ancestrais foram machucados, torturados e chicoteados. Sangraram mas resistiram, e se é verdade que suas culturas não triunfaram sobre as outras nas terras do Novo Mundo, também é verdade, que ninguém conseguiu calar definitivamente sua voz. Hoje, a voz dos povos africanos grita na cultura brasileira com tanta força que não há quem passe sem sentir nenhum efeito, quando encontra com as pegadas dessa procissão.
Na música brasileira, a influência mais clara se dá em nosso samba. Fruto daquilo que o Brasil faz melhor: juntar potenciais antagonismos e trazer uma solução nova, criativa e harmonizada. E foi unindo instrumentos africanos, como a cuíca, o atabaque, tambores, marimbas, maracas, com o pandeiro que os árabes haviam legado aos portugueses, além de outros elementos, que nasceu este estilo musical. O samba de Wilson Batista, Cartola, Noel Rosa, Nelson do Cavaquinho, Dorival Caymmi, Clementina de Jesus, Nelson Sargento, Dona Ivone Lara… E como esquecer do balé afro de Clara Nunes? Do Maracatu Atômico de Jorge Mautner e Nelson Jacobina? Das alfaias eletrificadas do Manguebeat recifense? Mas, a força da cultura africana invade também o jazz do genial Moacir Santos. E até mesmo a música erudita de José Siqueira. Este último, um artista com história interessantíssima. Por suas relações com o comunismo, mudou-se para URSS (antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, de cuja desintegração a Rússia é resultado) e regeu a Orquestra Filarmônica de Moscou, colocando os cantores líricos russos para entoarem um iorubá europeu na belíssima peça Oração aos Orixás.
O movimento tropicalista também cingiu-se dos elementos africanos. Muitos dos grandes discos da história musical de nossa nação beberam dessa fonte. O grandioso Clube da Esquina, de Milton Nascimento, Lô Borges, Beto Guedes, Flávio Venturini, Toninho Horta, Wagner Tiso, Tavinho Moura, Tavito, Nelson Angelo, Robertinho Silva, Luiz Alves, Vermelho e Rubinho … E o que diremos sobre o samba rock de Jorge Ben?! E sobre Chico Science e Nação Zumbi? Esta lista não teria fim…
Na culinária também todos experimentamos o sabor de nossos antepassados. Vatapás, angus, pirões, canjicas, pamonhas, bobós, quibebes e abarás. No vocabulário, basta voltar ao primeiro parágrafo. Todas as palavras em itálico são de origem africana, além de tantas outras que não foram citadas. Foi essa cultura que nos deu um Jorge Amado, que inspirou um Castro Alves, que nos legou um Luís Gama, Jorge de Lima, José do Patrocínio, Solano Trindade e Carolina Maria de Jesus.
O grande Solano Trindade nos deixou essa pérola:
Sou negro
A Dione Silva
Sou Negro
meus avós foram queimados
pelo sol da África
minh’alma recebeu o batismo dos tambores
atabaques, gonguês e agogôs
Contaram-me que meus avós
vieram de Loanda
como mercadoria de baixo preço
plantaram cana pro senhor do engenho novo
e fundaram o primeiro Maracatu.
Depois meu avô brigou
como um danado nas terras de Zumbi
Era valente como quê
Na capoeira ou na faca
escreveu não leu
o pau comeu
Não foi um pai João
humilde e manso.
Mesmo vovó
não foi de brincadeira
Na guerra dos Malês
ela se destacou.
Na minh’alma ficou
o samba
o batuque
o bamboleio
e o desejo de libertação.
(O poeta do povo, p. 48)
Na religião, somos todos filhos de Oxalá. Aqueles seres humanos que saíram muitas vezes crianças de sua terra-mãe possuíam uma tradição espiritual das mais complexas e profundas. O culto de Ifá, por exemplo, com todos os seus mistérios é uma das formas mais belas de relação com a fonte da vida na Natureza. Assim, como indígenas, egípcios, celtas, vikings, maias, astecas, aqueles povos da África subsaariana não enxergavam diferença entre a vida cotidiana e a vida ritual. De tal forma que todos os momentos de sua vida eram atos de religação com seus deuses, e antepassados.
Obrigados a se submeter à religião cristã dos colonizadores, tropeçaram, mas não caíram. É nesse tipo de situação que a força de um povo com identidade se mostra. Mesmo depois de centenas de anos de perseguição e proibição, o que ainda acontece nos ainda atuais, o culto dessas forças da natureza e dos antepassados se adaptou, assimilou elementos e gerou novas e originais formas de se relacionar com o sagrado. Ainda hoje, o Candomblé, a Umbanda, a Jurema e outras manifestações mantém sua força e sua luta pelo direito de existirem enquanto formas de expressão genuinamente brasileiras.
De todas as heranças que recebemos de nossa Mãe África, a que mais cultivamos é um certo jeito de ser: Está estampado na altivez aguerrida dos baianos que não levam desaforo para casa, assim como nossos avós e anciões cheios de sabedoria chamados de malês; Está tatuado no gingado nagô resiliente dos cariocas, que encurralados nos morros, rodam o pandeiro na mão equilibrando a vida entre pobreza, violência e alegria; Está marcado a ferro e fogo no peito de pernambucanos palmarinos, que continuam pegando em armas, se necessário, para conquistar o reconhecimento de sua humanidade; Está estampado no sorriso de cada candango, cada lanceiro negro no Rio Grande do Sul, no resistir dos quilombos de Valongo, Paredão, Curiaú, Sitio Velho e tantos outros, nas estátuas da Lagoa do Abaeté.
Se hoje nos reconhecemos como aqueles que não desistem nunca, é aceitável pensar que devemos a nossas avós que suportaram sendo sinhás que foram perseguidas só pela sua beleza. E também a nossos pretos velhos, que dançavam com os pés para defender aquilo que traziam em seus corações. E, como nos ensinou Darcy Ribeiro, esse filho cafuzo e mulato da violência e da rejeição, que nem era índio, nem era africano, nem era europeu, não era de lugar de nenhum. Um apátrida que na falta de uma nação para chamar de sua, teve que inventar o Brasil. E se ainda ouvimos um banzo triste nos tumbeiros de hoje em dia, se ainda gritamos com Zumbi pela liberdade dolorida, também sorrimos ampliando os entrudos populares (os entrudos eram festas populares que estão na origem do nosso carnaval).
Continuamos uma miscigenação quase feita e, portanto, imperfeita. Uma união que, pelo menos no nível do DNA nos faz a todos nós irmãos, porque somos filhos dos mesmos povos. Até aqui, se olhássemos para dentro, se conhecêssemos a nós mesmos, obteríamos todas as respostas para vivermos conosco e uns com os outros.
Não é interessante perceber que nossas terras estiveram perfeitamente unidas na Pangeia original? Não notou como a costa brasileira se encaixa perfeitamente na costa africana? Essa separação foi feita de erupções vulcânicas, maremotos, furacões, terremotos e cataclismas de todas as espécies. Se a terra sofreu para nos separar, coube aos homens sofrerem para nos reunirmos.
Se você estivesse aqui na separação e fosse um negro, teria vivido um apocalipse, um holocausto de fim dos tempos. Agora talvez, tenha chegado o tempo do “Juízo Final”. Queremos, então o de Nelson Cavaquinho, que olha para toda essa escuridão e encontra uma nação fraterna, tolerante, onde o Sol brilha mais uma vez, onde a luz chega a todos os corações, onde o bem vence o mal, onde o Amor é eterno novamente. Que tenhamos olhos para ver este dia!