O mundo ocidental tem suas raízes culturais na Roma Antiga, profundamente influenciadas pela Eneida de Virgílio, a maior epopeia romana que moldou ideias e valores até os dias atuais. Não por acaso, a cidade de Roma é um dos principais destinos turísticos do mundo, atraindo milhões de pessoas para conhecer sua história e legado. Porém, o verdadeiro apogeu cultural que influenciou – e ainda influencia – os nossos tempos não estão nas paredes e na arquitetura da cidade eterna, mas sim nas ideias que foram difundidas a partir desta civilização.

Para exemplificar um pouco do legado romano, basta pensarmos no idioma no qual estamos nos comunicando agora: o português, assim como o espanhol e francês, é uma língua latina, ou seja, que foi derivada do latim; a base do direito que usamos advém do direito romano; o cristianismo, uma das maiores religiões do mundo, teve o Império Romano como grande ponto de difusão. Esses são apenas alguns exemplos de como, indiretamente, ainda vivemos sob a égide cultural desta grande civilização que marcou a humanidade.
Do ponto de vista literário isso também foi uma realidade. Roma teve grandes poetas e artistas, desde Horácio, com sua famosa expressão “Carpe Diem”, até as sátiras de Petrônio e Plauto. Entretanto, não falaremos destes grandes expoentes da arte romana no texto de hoje. Iremos nos debruçar sobre a maior epopeia escrita na Roma Antiga, capaz de educar gerações de romanos e criar uma identidade cultural tão poderosa que permaneceu inalterada por séculos. Estamos falando da Eneida, escrita por Públio Virgílio Maro no século I a.C. Vamos conhecê-la?
A Eneida nasceu em uma Roma turbulenta. De fato, o século I a.C. foi um período marcado por guerras civis, conflitos políticos e a transição da República para o Império, de tal modo que todo o sistema civilizatório romano quase foi destruído. Entretanto, são das ruínas de um sistema falido que nascem novas formas de governo e personagens que marcam a história. Após décadas de instabilidade, Otaviano Augusto, filho adotivo de Júlio César, finalmente consolidou o poder e estabeleceu uma nova ordem.

Assim nascia o Império Romano, que em sua época foi chamado de principado, pois o próprio Augusto preferia o título de “Príncipes”, ou seja, o primeiro dos romanos. Como todo novo sistema de governo a ser implantado, era fundamental resgatar as origens romanas, afinal, após séculos, o povo já não lembrava como toda aquela população havia se reunido e começado uma nova expressão de sociedade. Foi com esse desejo que Otávio Augusto pediu uma das mais nobres missões ao poeta Virgílio: Escrever uma epopeia que relembrasse as origens do povo romano, que mostrasse a sua gênese, ou seja, de onde todos vieram.
É nesse momento que surge a Eneida, uma obra que conecta o mundo romano com origens míticas, advindas de um herói troiano que escapa da destruição de Troia e tem como grande missão fundar uma nova cidade, mas com o espírito e virtudes dos antigos troianos. Desse modo, além de relembrar aos romanos suas origens, a Eneida também se converte em uma literatura com características propriamente romanas, mesmo que sob uma grande influência de Homero e do estilo literário grego. A história de Eneias tornou-se, portanto, o elo entre o passado heroico e o futuro imperial da cidade eterna.
Quem foi Virgílio?
Antes de adentrarmos ao mundo da Eneida e as viagens de Eneias, se faz fundamental entendermos quem foi seu autor. Públio Virgílio Marão nasceu em 70 a.C., em Andes, na região de Mântua. Era um homem de formação refinada, educado em filosofia, retórica e literatura. Seu temperamento introspectivo contrastava com os grandes oradores de sua época, e seus biógrafos contam que sua educação foi voltada, inicialmente, para que exercesse o ofício de advogado. Porém, na pouca vivência que teve ao exercer a profissão, Virgílio percebeu que não tinha vocação para a oratória e muito menos estar diante do público. Assim, preferiu se dedicar às palavras e aos livros, vivendo de maneira quase reclusa e dedicado às suas pesquisas.

Antes de se debruçar acerca da escrita da Eneida, ele já havia alcançado notoriedade com as Éclogas, poemas bucólicos influenciados por Teócrito, e com as Geórgicas, uma obra que exaltava a vida rural e o trabalho agrícola. Esses dois livros formavam sua obra e tinham um caráter reflexivo e filosófico, e não mítico e narrativo como se construiu a partir da epopeia de Eneias. Nesse aspecto, foi com a Eneida que ele alcançou o auge de sua carreira e ganhou a notoriedade como um dos grandes poetas da humanidade.
Infelizmente, Virgílio morreu em 19 a.C., antes de revisar completamente o poema finalizado. De certo modo, a Eneida é uma obra incompleta, e seus leitores sentem um pouco disso ao lê-la, porque o final se torna ‘abrupto”. Diz-se que em seu leito de morte o poeta pediu para que a obra fosse destruída, pois não aceitava que ela fosse algo inacabado. Felizmente, Otávio Augusto não permitiu a destruição das páginas, e hoje podemos desfrutar de uma bela obra literária que moldou gerações de escritores ao longo dos últimos dois mil anos.
Virgílio tornou-se, após sua morte, o poeta nacional de Roma e, mais tarde, uma figura reverenciada durante a Idade Média e o Renascimento. Dante Alighieri o escolheu como guia na Divina Comédia, símbolo da razão e da poesia clássica. Caso você deseje conhecer mais sobre esse poeta romano, em nosso portal possuímos um texto contando mais detalhes sobre sua biografia. Para acessá-lo, basta clicar aqui.
A Eneida de Virgílio e suas as influências
A estrutura da Eneida é dividida em doze cantos, com uma clara inspiração nos dois poemas homéricos: os seis primeiros cantos lembram a Odisseia (as viagens), enquanto os seis últimos se assemelham à Ilíada (as batalhas). Nesse sentido, Virgílio construiu uma narrativa épica que servisse tanto ao orgulho romano quanto a uma reflexão sobre o dever, o destino e o sacrifício, tendo como principal influência Homero. Alguns críticos literários entendiam a Eneida como uma “cópia” da narrativa homérica, visto que utiliza a mesma estrutura literária e o próprio enredo, e Eneias é um personagem presente também na Ilíada.
O fato, porém, é que a Eneida é uma obra mais completa e Virgílio cria seu próprio universo com base na tradição literária de sua época, notadamente com referências gregas, mas que não se limita a ser uma cópia. Ao lê-la, podemos perceber como Eneias é o herói moldado não apenas pela glória pessoal, mas também pelo senso de missão, algo essencial à mentalidade romana e que escapa à cultura grega tradicional.
Dito isso, vamos conhecer agora um pouco sobre este herói troiano, que se torna o primeiro romano da história. O mito nos conta que Eneias é Filho da deusa do amor, Vênus (Afrodite para os gregos), e do troiano Anquises, o que o torna um semideus. Durante a guerra de Troia, Odisseu, o mais inteligente herói grego, cria o plano do cavalo de Troia e acaba por invadir a cidade e destruí-la.
Nesse momento, enquanto a cidade é destruída pelos gregos, Eneias se encontra com sua mãe, que o avisa do destino de Troia: a cidade não pode ser salva, então se torna obrigação de Eneias reunir as pessoas e ajudá-las a fugir, pois serão elas que farão surgir uma nova Troia, capaz de dominar todo o mundo.
Assim, em meio ao furor da batalha final, Eneias não se lança a um destino glorioso de batalha como Heitor ou Aquiles, que acabam perdendo suas vidas na guerra. Ao contrário, ele precisa fugir e garantir que haja um novo destino para aquela população. A fuga de Eneias, carregando nos ombros seu pai idoso e guiando seu filho Ascânio pela mão, torna-se um dos momentos mais simbólicos da Eneida. Essa imagem representa a continuidade das gerações, o elo entre o passado e o futuro, a transmissão de valores e da linhagem.
A partida de Eneias, porém, não pode ser vista como um ato de covardia. A bem da verdade, ela carrega um simbolismo profundo sobre a necessidade de mudança, de renovação e busca por uma nova jornada.. Em vez de ser derrotado, Eneias torna-se um portador de esperança. Ele não é um herói da destruição, mas da reconstrução. Sua missão é dada pelos deuses, e ele a segue com obediência e sofrimento, ciente de que sua vida pessoal será sacrificada em nome de um ideal coletivo.
Esse é o início de sua jornada. Essa epopeia o levará por mares perigosos, cidades estrangeiras, confrontos com monstros e deuses, até alcançar finalmente as terras do Lácio, onde sua missão encontrará realização. Como veremos, a jornada de Eneias é exterior e interior: é uma odisseia pelo mundo e pela alma. À medida que avança sobre as ilhas e enfrenta novos desafios, Eneias conhece mais sobre si mesmo e converte-se em um verdadeiro herói, dedicado a realizar os desígnios dos deuses e não somente as suas vontades.
A segunda parte da jornada de Eneias lembra os caminhos de Odisseu. Ele enfrenta naufrágios, tempestades provocadas por Juno (a deusa Hera, para os gregos) e recebe ajuda de deuses que o ajudam em sua jornada. Todas as provas direcionam Eneias a aprender a renunciar ao conforto, ao amor, à glória pessoal em prol de algo maior, que está para além da sua própria vida. Assim, o herói que começa a jornada tentando salvar seu filho, seu pai e as pessoas ao seu lado começa a se transformar em um instrumento do destino.
Eneias e Dido: o romance impossível
Em Cartago, Eneias conhece a rainha Dido. A paixão entre eles é fulminante, e por um tempo parece que o herói encontrou paz. Eneias se apaixona pela rainha e pensa que não precisa fundar uma nova cidade, afinal, já havia encontrado um novo território e os dois poderiam muito bem viver ali, sob a tutela dos cartagineses. Dido, naquele momento, não era apenas uma paixão, mas também tudo que Eneias necessitava para descansar, pausar sua jornada e viver um “final feliz”, como em qualquer romance. Ela lhe dá tudo: o afeto, a estabilidade, o prazer.

Porém, não são essas histórias que forjam heróis. Quando Júpiter envia Mercúrio para lembrá-lo de sua missão, Eneias abandona Dido, que, inconsolável, se suicida. Esse episódio é um dos mais poderosos e trágicos da literatura clássica, com a promessa de Dido de que Cartago e a nova cidade que Eneias fundará, Roma, nunca serão amigas. De fato, a história e as guerras púnicas provam que nunca houve laços de amizade entre essas duas cidades, sendo Cartago completamente destruída por Roma no século II a.C.
O lamento de Dido é um marco fundamental na história. Eneias percebe que é preciso deixar de lado suas paixões se quiser realmente realizar o desígnio dos deuses. É o primeiro passo para se transformar no verdadeiro herói romano, em que seu aspecto inclinado aos desejos não pode estar acima da vontade dos deuses ou do Estado.
Eneias chega ao Lácio
Chegando ao Lácio, Eneias encontra um novo desafio: os rútulos, que, liderados por Turno, rejeitam a união entre os troianos e os latinos, um outro povo que se alia a Eneias. A guerra é inevitável. Eneias precisa conquistar seu lugar, não pela diplomacia, e sim pela força das armas.
Essa guerra final remete diretamente à Ilíada, mas com motivações diferentes. Eneias não luta por glória pessoal, mas pela realização de um fado, ou seja, algo que lhe está destinado. Ele forma alianças, lidera tropas e assume até mesmo o papel de mestre ao ensinar a arte da guerra ao jovem Palante.

Porém, o grande adversário de Eneias nesse momento é Turno, um grande guerreiro rútulo. Diferente de Eneias, Turno tem motivações exclusivamente egoístas. Ao perder a mão da princesa Lavínia, o governante se revolta com Eneias e o povo latino e inicia a guerra. Motivado apenas pelo seu orgulho ferido, Turno mergulha toda região do Lácio em guerra e sangue. É ele quem ceifa a vida de Palante, o discípulo de Eneias, e rouba suas armas. Esse fato faz com que Eneias o busque no campo de batalha e comece um verdadeiro embate sobre o futuro de Roma.
Virgílio descreve com dramaticidade o combate final entre os dois. Quando Eneias vence Turno, hesita em matá-lo, mas ao ver o cinturão de Palante, decide consumar a vingança. A Eneida termina, portanto, com esse gesto ambíguo: é a vitória, mas não sem dor. É a fundação, mas manchada de sangue.
O que podemos aprender com a Eneida?
A jornada de Eneias pode nos ensinar sobre a dignidade ao recomeçar, sobre a fé de seguir para o futuro e sobre outra série de lições. Vamos refletir um pouco sobre alguns dos principais símbolos da obra. O primeiro deles está no papel dos deuses ao longo da jornada do herói troiano. Ao seu lado, Eneias sempre tem divindades que o ajudam e conta, assim, com uma assistência divina. Entretanto, há outros tantos deuses como Juno e Netuno, que buscam destruí-lo. Os deuses são símbolos da própria vida, que, em seus ciclos, às vezes, nos dão ventos favoráveis e, em outros momentos, nos colocam em verdadeiras tempestades.
Entretanto, é fundamental entendermos que até mesmo os piores momentos – aqueles em que sentimos que a vida está contra nós – nada mais são do que provas com as quais precisamos lidar. Se por um lado Eneias é tido como um mero instrumento dos desígnios divinos, por outro é belo perceber que o herói, ao compreender seu papel na existência, aceita a vida e atua com confiança, realizando as necessidades da própria existência. Já pensou como seria a nossa vida se tivéssemos a mesma fé que Eneias?
O fatum (palavra em latim para falar sobre o destino) é inevitável. Eneias não escolhe seu destino: ele o aceita. E é exatamente essa aceitação, esse senso de pietas — a virtude romana da obediência ao dever — que o define como herói. Diferente de Aquiles ou Ulisses, Eneias não é movido por orgulho ou astúcia, mas por responsabilidade. Sua busca não é a glória eterna como Aquiles, nem mesmo a vaidade de se sentir melhor que os deuses como Ulisses, mas sim a de realizar aquilo que lhe cabe, levando em segurança sua família e seus subordinados para o destino que os aguarda.

Eneias não é um guerreiro impulsivo ou um aventureiro audacioso. Ele é o modelo ideal de cidadão romano: paciente, obediente aos deuses, firme diante da adversidade e devotado ao bem comum. Frente a isso, devemos falar das principais virtudes de Eneias: a pietas, o dignitas e o devotio.
Comecemos pela ideia de pietas. Essa é a virtude da piedade, retratada em toda a obra. Apesar de eliminar Turno, em um claro descontrole, Eneias tem piedade dos seus inimigos, seus aliados, familiares e até mesmo dos mortos. Esse é um dos valores centrais do poema e vai muito além de uma simples resignação ou pena perante um infortúnio. Pietas é, acima de tudo, a lealdade inquebrantável aos deuses, à família e à pátria. Nesse aspecto, Eneias é a personificação dessa virtude: sacrifica seus desejos pessoais, inclusive seu amor por Dido, para cumprir um desígnio superior.
Para realizar a pietas é preciso outras duas virtudes: a dignidade e a devoção. Eneias busca ao longo do poema se transformar em um ser humano digno de representar sua família e todos ao seu redor. A dignidade é sua grande arma perante os infortúnios, o tornando humilde frente aos deuses e confiante nas relações humanas. Mesmo no momento mais difícil de sua jornada, ao lidar com as próprias paixões, Eneias guarda em si a dignidade de ouvir seu destino e de não se render aos desejos de descansar. Dido não compreende suas motivações e, por isso, comete suicídio, pois não consegue imaginar uma vida sem Eneias.
Manter-se firme na dignidade, porém, só foi possível graças à devoção de Eneias aos deuses e ao próprio destino. Sem esse grau de confiança e amor perante a vida e seus desígnios, a decisão de se lançar mais uma vez ao mar e chegar até o Lácio seria impossível.
O legado da Eneida
Mesmo com o desejo de Virgílio de não apresentar sua obra ao mundo, a Eneida ganhou espaço em todo o globo. Na própria Roma Antiga, que chegou ao auge ocupando três continentes e tendo 25% da população mundial sob seu domínio, a Eneida foi usada como livro de educação para crianças e adolescentes, formando assim o imaginário de gerações ao longo dos séculos. Assim, dentro do próprio Império Romano, as aventuras de Eneias se tornaram não apenas conhecidas, mas também um verdadeiro modelo de ser humano a ser seguido.
Entretanto, o impacto da Eneida ultrapassou os limites de Roma. Durante a Idade Média, por exemplo, o poema foi lido como uma obra sagrada, quase profética. No Renascimento, foi redescoberto como exemplo máximo de estilo e profundidade.
Um dos maiores exemplos do impacto da Eneida nos escritores medievais é a Divina Comédia, de Dante Alighieri. Dante escolhe Virgílio como seu guia pelo inferno e purgatório, uma vez que na própria Eneida há passagens de Eneias pelo mundo dos mortos. Já Camões, o grande poeta português, em Os Lusíadas, estrutura sua epopeia nos moldes da Eneida, construindo uma narrativa ultramarina com desafios tal qual Eneias em suas viagens. A diferença é que ao invés de Eneias ser o grande protagonista, vemos a figura de Vasco da Gama.
Além disso, a obra moldou o ensino clássico por séculos. Durante muito tempo, aprender latim era sinônimo de estudar Virgílio. Sua influência permeia o vocabulário literário, o imaginário político e a simbologia ocidental até hoje. Logo, é impossível acharmos que a Eneida é apenas uma obra-prima da literatura, pois seus escritos navegaram por diversos campos, da política até a alta cultura. Assim como a Ilíada e a Odisseia estão na raiz da literatura grega, a Eneida está na fundação da tradição latina e, por extensão, da literatura europeia.
Dito isso, é possível afirmar que por meio da arte, Virgílio eternizou uma visão de mundo, uma cultura e uma identidade propriamente romana. Não é exagero dizer que muito do que conhecemos hoje como “Ocidente” foi moldado pelas imagens, símbolos e ideais contidos em suas páginas.Por fim, ler a Eneida hoje é muito mais do que visitar um museu literário. É mergulhar em questões humanas fundamentais como o destino, o dever, a perda, a identidade, entre tantos outros temas. São por todos esses motivos que a Eneida continua viva e sendo lida por tantas pessoas de nossa geração, pois fala de nós, de nossas escolhas, de nossos medos e esperanças.
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