Qualquer coisa que se leia hoje sobre Leonardo da Vinci, artigos, reportagens, livros, documentários, dissertações de mestrado, teses de doutorado, etc., de algum modo, traduz um olhar de espanto. Intrigante, misterioso, impressionante, fantástico, são alguns dos adjetivos atribuídos ao artista do alto Renascimento. Filósofo, cientista, matemático, engenheiro, inventor, anatomista, pintor, escultor, arquiteto, botânico, poeta, músico… Afinal de contas, quem foi Leonardo da Vinci? E por que o homem de hoje se assombra diante desse homem que viveu há quase seis séculos atrás?
A biografia de Da Vinci está atravessada entre dois séculos, ele nasceu em 1452 e morreu em 1519 – há 500 anos atrás. Viveu intensamente durante o início dos anos 1500. Este Século XVI foi um dos séculos mais significativos na História da civilização ocidental. Nesse período, Portugal e Espanha descobrem novas rotas marítimas para a expansão comercial e surge o que passou a se chamar de “Novo Mundo”, que daria origem a todo o atual continente americano.
Enquanto isso, a Europa revolvia-se em grandes movimentos religiosos, políticos, artísticos e científicos. Copérnico dá início a um despertar da humanidade para a perspectiva heliocêntrica; Maquiavel escreve O Príncipe; Michelangelo termina o teto da Capela Sistina e Martinho Lutero lança as teses da Reforma Protestante; Shakespeare escreve Hamlet, enfim, é nessa quadra da História marcada por movimentos, descobertas e produções que foram construídos os alicerces civilizatórios do que temos hoje, e é nesse contexto, que surge o homem-fenômeno sobre o qual pretendemos refletir.
A chave mais eficiente que encontramos para entendermos o vulcão que foi Leonardo da Vinci, é a chave da Filosofia da História. Da Vinci é uma ponte esticada entre os picos de duas montanhas da História, o velho e o novo mundo, ou entre o mundo clássico e o mundo moderno.
O movimento da História é parecido com um relevo montanhoso, há ciclos históricos que são verdadeiros picos de montanhas, e há ciclos de decadência em que a humanidade desliza para vales depressivos, para não dizer abismos profundos. Isso é muito perceptível no movimento entre a queda do mundo clássico, a Idade Média, e o Renascimento, com o surgimento da Era Moderna. Indiscutivelmente, esse movimento da História é análogo a um relevo montanhoso com picos e depressões.
O período clássico, marcado pelos apogeus gregos e romanos, destaca-se pela elevação do pensamento humano a picos muito altos. É nessa fase da História que a política, a religião, a arte e a introspecção humana dá grandes saltos a partir de grandes pensadores, como Sócrates, Platão, Aristóteles e suas grandes obras. As mitologias, o teatro e as artes são manifestações dessa elevação civilizatória nesse período.
Com a queda do mundo clássico, por volta do Século V da nossa era, é notável esse movimento de deslizamento da cultura humana do alto de uma montanha para uma depressão. Isso é o que os historiadores vão chamar de “Idade Média”, um período que se inicia com a queda do Império Romano, dura cerca de dez séculos, e é marcado por muita instabilidade política, religiosa, social e econômica, muitas superstições, fantasias, fanatismos excessivos, só começando a mudar a partir de um movimento de retomada do mundo clássico chamado de “Renascimento”.
Da Vinci está cravado historicamente no seio dessa renascença, ele nasce, vive e morre no período histórico, na localização geográfica e nas condições sociais e políticas do Renascimento. Nunca conseguiremos entender o que foi Da Vinci se não entendermos o que foi o Renascimento, porque ele é a encarnação do espírito de um movimento histórico em um homem.
O Renascimento recebe esse nome porque é um movimento de retomada, mas não é uma retomada no sentido de retornar, é no sentido de refazer o caminho de subida. É um momento muito sublime da nossa História, pois é quando vamos despertar de novo para grandes ideias, vamos reaprender o equilíbrio, a harmonia, e isso vai se expressando nas pinturas, nos afrescos, nas esculturas, na arquitetura, nos vitrais, nas catedrais.
É um revolver-se artístico, filosófico, humanista em torno dos arquétipos, aqueles mesmos arquétipos que podemos visualizar em todos os altos picos da História humana, desde o monumentalismo egípcio às grandes construções gregas, arquétipos como Sabedoria, Fortaleza, Temperança, Justiça, Beleza, Amor, o que se vê nas obras de Rafael Sanzio, de Botticelli, entre outros. Nada é mais encantador que o movimento ascendente da alma humana.
Nesse processo de retomada, o Ser Humano volta a ser o centro do pensamento e da cultura. E ele não é o centro porque é mais importante que a ordem que existe na Natureza, ele é o centro pois é o instrumento principal para a manifestação dessa ordem no mundo. Imagine uma orquestra executando uma sinfonia, o maestro é um “instrumento” central desse sistema, sem o qual a sinfonia não se faz. Da Vinci é um desses instrumentos. Quando olhamos para o fenômeno Da Vinci não devemos nos assombrar com a grandiosidade dele, devemos nos encantar com a força da História que se manifestou a partir dele.
O que é mais encantador: a sinfonia ou o instrumento que a manifesta? Leonardo é um exemplo de como devemos nos portar diante dessa ordem harmônica que queremos manifestar no mundo. Os biógrafos dizem que ele era uma pessoa de muita abstinência, recluso, silencioso, sempre concentrado em algo. Era um instrumento afinado. Para alcançar esta harmonia, só é preciso isso: afinar-se, negar-se as grosserias e os desejos que desequilibram a alma e se concentrar naquilo que realmente é válido. Quando se nega os seus próprios interesses pessoais, em nome de um Ideal que serve à Humanidade, a Vontade da História se canaliza.
É como se a História estivesse à procura de algum instrumento para se manifestar, e quando o encontra, ela se plasma e se torna “visível” para todos. Isso é uma lei inexorável. Quando o instrumento está pronto a sinfonia do destino histórico se manifesta.
Se hoje enfrentamos um momento histórico de decadência civilizatória, de tantos desequilíbrios na subjetividade humana, se deslizamos para a profundidade de um abismo, é porque nossos instrumentos estão desafinados. Vivemos no descompasso da ordem. É urgente refazermos o caminho de retomada. Então, que o exemplo de Da Vinci nos inspire neste desafio e que assim como ele, sejamos uma ponte esticada entre dois picos da História, de um lado o pico do período Renascentista, e de outro o pico de um Novo Mundo, mais Justo e Belo, que surgirá no futuro.