O idioma é uma das marcas mais profundas de uma identidade nacional. Esse é um assunto sobre o qual normalmente não paramos para refletir; afinal, a língua que falamos desde que nascemos é tão usual que não percebemos sua riqueza e origem. Vamos começar com um fato curioso: sabia que São Paulo, com mais de 12 milhões de habitantes, é a cidade com a maior concentração de pessoas falando língua portuguesa por metro quadrado no mundo? Nessa grande cidade estão não apenas os falantes da língua portuguesa, mas também um dos museus mais importantes do Brasil, patrimônio nacional que homenageia nosso belo idioma: o Museu da Língua Portuguesa.
Inaugurado em 2006, o Museu da Língua Portuguesa é uma obra super moderna, com o acervo todo virtual, representando bem o início de um novo milênio. Entretanto, em 2015 aconteceu uma tragédia durante uma exposição chamada “O Tempo e Eu”, quando um curto-circuito lançou uma faísca de fogo no ambiente e, gradativamente, as chamas começaram a avançar, até se tornar um enorme incêndio que destruiu dois andares. O acervo virtual foi recuperado através dos sistemas de backups. Esse incidente foi muito mais que uma tragédia física, com a perda da estrutura e danos materiais, mas também um símbolo de como, aos poucos, o nosso belo idioma também está em perigo.

A origem da língua portuguesa
A língua portuguesa, a quinta mais falada de todo o planeta, hoje sofre uma perda de sentido em suas palavras. Sabemos que o idioma é vivo e naturalmente se modifica com o passar do tempo, com as novas gerações. Novas palavras são inventadas, outras caem no ostracismo, e assim nossa língua segue vivendo; porém, de forma distinta a de quando passou a existir. Não há problema nessa mudança, que, como falamos, ocorre naturalmente. No entanto, a mudança dos sentidos daquilo que queremos transmitir é um problema a ser pensado, uma vez que tais mudanças demonstram como vivemos.
A nível de exemplo peguemos a palavra “amor”. Hoje usamos essa palavra para designar tudo que gostamos. Usualmente falamos que “amamos” o nosso amigo(a), “amamos” nossos computadores, “amamos” a Deus, “amamos” viajar. Será, porém, que uma única palavra é capaz de expressar todos esses tipos de afeto, que, a bem da verdade, possuem naturezas e intensidades distintas? Em sua origem, há diferentes palavras para designar os diferentes tipos de amores, mas essa riqueza idiomática se perdeu por causa da simplificação e redução dos sentidos, o que nos faz usar uma mesma palavra para expressar diferentes sentimentos.
Para resgatar um pouco deste sentido de riqueza, é preciso conhecer a origem da língua portuguesa. Ela, que nasceu do latim há 2,3 mil anos, e foi sendo construída tal como um edifício histórico, viveu o seu apogeu de sentido durante o Renascimento e o Iluminismo portugueses, período em que a poesia, a literatura e os sermões eram como fontes de onde jorravam palavras que enchiam a vida de sentido, de tal modo que, até hoje, quando precisamos recorrer a ideias profundas, temos que lançar nossa caneca lá no fundo do poço da história para alcançar alguma coisa de Padre Antônio Vieira, Luís Vaz de Camões, João de Barros, Fernando Pessoa ou Gregório de Matos Guerra.
Já que falamos do amor como exemplo, pensemos na clássica frase de Camões: “O Amor é fogo que arde sem se ver”. Em uma única sentença o poeta português nos faz pensar com profundidade as nuances do amor, que muitas vezes parece ser contraditório, tal qual um fogo que apesar de queimar, não é visto. Em contrapartida, nos dias atuais, as poesias já não buscam refletir ideias profundas como as de Camões, o que é comprovado ao analisarmos as letras esvaziadas de sentido que predominam em nossas composições atuais. Isso é, antes de tudo, sinais de que estamos em meio a um incêndio linguístico. É como se estivéssemos apagando as luzes da estação e retornando a uma nova Idade Média.
O livro vem se tornando cada vez mais uma mercadoria de prateleira de supermercado. As mesmas regras de marketing aplicadas para vender uma margarina são utilizadas para promover as publicações em formato de livros, com capas chamativas, títulos apelativos, alguns até transformam pornografias em verbos para nomearem seus livros, apelando para a atratividade do público.
Todos esses aspectos demonstram, infelizmente, que a beleza empregada nos versos, nas narrativas e nas histórias que nossa língua produziu ao longo dos séculos está se perdendo. Hoje já não pensamos sobre as palavras, apenas as usamos ao nosso bel prazer; já não refletimos sobre o significado, sobre a beleza de suas pronúncias, apenas atropelamos as sílabas e inventamos nossa própria comunicação, com gírias e abreviações cada vez mais enigmáticas para os apreciadores do português. É possível, em um mundo que caminha para o esvaziamento linguístico, preencher mais uma vez nossa língua com todo arcabouço literário que possuímos?

Como podemos resgatar a riqueza do nosso idioma?
Assim como no incêndio que destruiu parte do museu, a nossa língua portuguesa será preservada, se tivermos combatentes que possam se sacrificar por ela, como o fez o bombeiro civil Ronaldo Pereira da Cruz, que morreu combatendo aquelas chamas. Precisamos lutar pela riqueza de sentido de nossa língua, resgatando o backup de ideias profundas, hoje cada vez mais esquecidas. Como, por exemplo, as profundas mensagens entranhadas nas entrelinhas dos 700 sermões e 200 cartas de Pe. Antônio Vieira, que ainda existem, embora estejam esquecidas.
Esse jesuíta do século XVII, que encontrou na língua portuguesa a via de acesso ao humanismo profundo, sem fazer distinção de etnia, sexo, nem classe social, usava a língua como arma para proteger ora os indígenas, ora os judeus, ora os europeus, ora os brasileiros. Seu compromisso era com a humanidade.
Pe. Antônio Vieira, em seus sermões, aplicava passagens da Bíblia ao contexto presente. Assim, conseguia transferir, para o momento em que vivia, uma carga de sentido tão profunda que só os textos sagrados possuem. Esse movimento somente é possível graças à linguagem, e é assim que conferimos carga de sentido à interpretação da história. É assim que a Alma humana se constrói. Sem linguagem não há cultura humana possível.

Dia 5 de novembro é o Dia Nacional da Língua Portuguesa, mas, infelizmente, no momento atual, estamos presenciando na nossa língua um incêndio que destrói o sentido das palavras e reduz a cultura a cinzas. Hoje vemos isso nas obras chulas, nas oratórias políticas demagógicas e nos livros-mercadorias, que são feitos apenas para vender e não dizem nada para a Alma. Lutar contra este incêndio é o mesmo que lutar pela humanidade. Dizemos isso porque os limites da nossa linguagem são os limites da nossa humanidade. Quanto mais estreitos na língua, mais minguados e raquíticos nos tornamos enquanto seres humanos.
Se quisermos expandir, evoluir, crescer e alcançar os cumes mais altos do conhecimento, teremos que lutar pela nossa língua, resgatar obras profundas, torná-las acessíveis aos mais jovens e preencher a vida de cultura e sentido. Ouça boas músicas, leia bons livros, escreva bons textos e propague isso enquanto viver, pois com isso você estará contribuindo, de alguma forma, para a evolução de toda a humanidade.
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