O ser humano é um ser social. Isso significa que precisamos nos associar para sobrevivermos e conseguir despertar o máximo do nosso potencial. Porém, muitas vezes, essas relações caminham entre dois impulsos opostos, que é o desejo de pertencimento e a necessidade de liberdade. De um lado, buscamos grupos que nos acolham, que reforcem nossas certezas e que deem sentido às nossas inquietações. De outro, carregamos a responsabilidade de pensar por conta própria, de questionar aquilo que parece óbvio e de manter viva a consciência que nos torna indivíduos.

É dentro dessa dinâmica universal que obras como “A Onda” ganham relevância. O filme não nasce apenas para narrar um experimento escolar ou dramatizar a ascensão de um movimento totalitário; ele existe para revelar, com precisão quase cirúrgica, as forças internas que atuam nas nossas escolhas diárias. Ao observarmos a facilidade com que pessoas comuns podem ser seduzidas por ideologias rígidas e promessas de unidade, somos obrigados a encarar uma verdade incômoda: qualquer um de nós, em determinadas circunstâncias, pode aderir a ideias que ferem a liberdade, a empatia e a ética. É sobre isso que falaremos hoje.
Uma breve sinopse sobre “A Onda”
O filme “A Onda” é uma obra cinematográfica que provoca incômodo desde seu início. Ele apresenta a história de um professor que, tentando demonstrar as origens do totalitarismo para sua turma, acaba construindo uma experiência que foge ao controle e se transforma em um retrato perturbador de como grupos autoritários nascem. O que deveria ser apenas um exercício pedagógico se converte em um experimento que mostra o quão nocivo pode ser a manipulação, a obediência cega e a perda da consciência crítica. Assim, a obra se converte em um verdadeiro alerta para o espectador e nos faz questionar as ideias que cultivamos.

Ao observar o rápido crescimento daquele grupo, percebemos que o enredo não é apenas uma ficção, mas também uma metáfora clara para fenômenos reais que marcaram a história. Sociedades educadas, modernas e aparentemente protegidas de radicalismos podem, em poucos passos, mergulhar em estruturas autoritárias quando deixam de questionar suas próprias crenças. É essa universalidade que faz o filme permanecer atual, pois nos obriga a encarar até que ponto acreditamos que somos imunes ao dogmatismo. Será que, de fato, nunca mais poderá existir novos regimes tão perversos quanto os que a História nos conta?
Frente a isso, o filme ressalta um ponto crucial: ideias que parecem, no começo, inofensivas podem se transformar em raízes de comportamentos destrutivos quando são aceitas sem reflexão. Quando deixamos de pensar por nós mesmos e de exercer a crítica, abrimos espaço para que qualquer voz, desde que firme e convincente, conduza nossos passos. “A Onda” retrata exatamente esse processo de destruição da autonomia e de entrega ao pensamento coletivo, mostrando como o desejo de pertencimento pode ser mais forte do que a razão.
O perigo do dogmatismo em nossas ideias
Visto isso, devemos refletir sobre o dogmatismo. Este é um dos grandes temas explorados no filme e um dos pilares da reflexão que ele deseja provocar, pois trata-se, a grosso modo, da atitude de acreditar de maneira rígida, absoluta e inquestionável em uma ideia, teoria ou líder. O dogmático não busca compreender, refletir ou mesmo dialogar; ele apenas obedece, repete e defende aquilo que acredita ser correto, mesmo que não consiga justificar racionalmente sua posição. Esse tipo de postura mental é um terreno fértil para a formação de movimentos autoritários e, no filme, é o que permite que a experiência do professor se transforme em algo assustador.
No início, os estudantes aderem às regras do experimento por curiosidade. Em seguida, passa a existir um sentimento de orgulho a pertencer ao grupo, criando assim uma cisão entre aqueles que fazem parte do experimento e quem não o faz. Logo, a disciplina é interpretada como prova de superioridade e não demora para que a simples aceitação do método se transforme na crença absoluta que aquela forma de organização é melhor do que qualquer outra e que aqueles que vivem naquele regime de organização são, consequentemente, superiores aos demais. Este é o momento exato em que o dogmatismo floresce: quando uma ideia deixa de ser apenas uma possibilidade e passa a ser vista como a única verdade aceitável.

O filme nos leva a refletir sobre nossa própria tendência ao pensamento dogmático. Muitas vezes, acreditamos que estamos seguros contra esse tipo de forma mental, mas isso é um erro comum. Qualquer pessoa pode se tornar dogmática quando deixa de questionar suas próprias convicções e passa a defendê-las com unhas e dentes, mesmo que seja contrariada pela lógica de que tal posição está errada. Quando isso acontece, perdemos a capacidade de mudar, de aprender e de dialogar, visto que não aceitamos visões de mundo contrária a nossa.
Frente a isso, o filme mostra como essa rigidez pode ser perigosa não apenas em nível político, mas também pessoal e social. O dogmatismo destrói a autonomia de pensamento, e quando isso ocorre, abrimos espaço para que qualquer líder ou grupo tome decisões por nós. Nessa mesma linha, chegando a um nível extremo, podemos cometer até mesmo crimes e maldades e não entendê-los como algo errado ou mesmo fora da lei. Assim, inicia-se o que chamamos de “banalidade do mal”. Esse é um conceito proposto por Hannah Arendt e é particularmente útil para compreender a dinâmica apresentada no filme.
Para Arendt, o mal extremo não nasce necessariamente da crueldade consciente, mas da obediência cega e da incapacidade de pensar criticamente. Assim, o mal é praticado por pessoas comuns, que acreditam estar apenas cumprindo seu papel dentro de um sistema, e não por pessoas que são naturalmente perversas. O mal, portanto, alimenta-se da ignorância e da falta de criticidade nos atos e pensamentos de um indivíduo.
Em “A Onda”, essa banalidade se manifesta em pequenos gestos que, somados, constroem um cenário devastador. No início, os estudantes apenas seguem instruções simples, como sentar corretamente, falar de forma concisa e obedecer à hierarquia estabelecida pelo professor. Mais tarde, passam a vigiar uns aos outros, corrigir comportamentos considerados inadequados e até hostilizar quem não compartilha do entusiasmo pelo grupo. Nenhum desses atos surge da perversidade individual; eles emergem da lógica interna do sistema, uma lógica que eles aceitaram, muitas vezes sem perceber.
Nesse sentido, Arendt argumenta que o mal se torna possível quando as pessoas abdicam da responsabilidade moral e se escondem atrás das estruturas sociais. O filme mostra exatamente isso. Os estudantes não se veem como agentes de opressão, mas como membros de um projeto coletivo que julgam ser benéfico. A ideia de que “estamos fazendo isso pelo bem do grupo” se torna justificativa suficiente para comportamentos agressivos. Assim, a maldade se normaliza e se dilui dentro das decisões coletivas. O indivíduo, protegido pela sensação de anonimato moral, sente-se autorizado a fazer o que jamais faria sozinho.
Visto isso, deve-se pensar o que leva o ser humano a chegar até à banalidade do mal. Uma das respostas mais simples para essa questão está na sua necessidade de pertencimento. Como falamos, somos seres sociais, e grande parte de nossa identidade é construída a partir das relações que estabelecemos. Quando um grupo oferece acolhimento e reconhecimento, é natural que muitos se sintam atraídos. No filme, os alunos começam a experimentar uma sensação de união que antes não tinham. Essa coesão inicial, aparentemente positiva, logo se transforma em um vínculo emocional que ofusca a capacidade de questionamento.

Outro fator relevante é a busca por significado. Em uma fase da vida marcada por incertezas, como a adolescência, a existência de um grupo com regras claras e um discurso coeso parece oferecer estrutura e estabilidade. O professor, ao assumir a função de líder, dá aos estudantes algo que eles não tinham: direção.
Além disso, a adesão a grupos extremistas costuma ser facilitada pelo desejo de escapar da responsabilidade. Pensar por si mesmo é cansativo, e assumir a responsabilidade por nossas escolhas exige maturidade e coragem. Quando o grupo oferece respostas prontas, regras fixas e um líder para tomar decisões, a tentação de entregar essa responsabilidade é grande. No filme, ao se entregarem à dinâmica do grupo, os estudantes deixam de assumir controle sobre suas ações e passam a agir de acordo com normas externas, acreditando que estão fazendo o certo simplesmente porque todos ao redor fazem o mesmo.
Frente a essa realidade, um dos pontos mais importantes do filme é mostrar a necessidade de mantermos a criticidade em relação às nossas ideias e ações. Quando deixamos de questionar o que pensamos, abrimos espaço para sermos guiados por impulsos coletivos que nem sempre refletem nossos valores pessoais. Nesse contexto, a crítica funciona como um farol interno que nos impede de aceitar ideias prontas sem reflexão. Quando esse farol se apaga, nos tornamos vulneráveis a qualquer narrativa convincente, e é aí que a ausência de criticidade abre caminho para decisões perigosas, pois já não sabemos discernir o certo e o errado.
“A Onda” nos ensina, portanto, que a crítica não é apenas um instrumento intelectual, muito menos algo a ser deixado de lado quando se trata de nossa postura individual. No fundo, ela é uma ferramenta de proteção contra nós mesmos, pois não nos permite ficarmos cegos diante de nossas convicções que, vez por outra, devem ser repensadas. A crítica, nesse aspecto, nos impede de nos tornarmos massa de manobra, uma vez que nos faz questionar o que nos cerca. Vale ressaltar que isso não significa rejeitar tudo, mas sim testar as ideias antes de aceitá-las.
O que podemos aprender com “A Onda”
A força do filme se intensifica quando o relacionamos à vida atual que levamos, percebendo que, infelizmente, ainda no mundo de hoje é possível encontrar grupos que caem nas armadilhas do totalitarismo. Embora a narrativa ocorra em um ambiente escolar, sua lógica se repete diariamente em contextos sociais, políticos e digitais. Aliado a essa forma de pensar, a polarização extrema de discursos radicais e a manipulação de informações fazem com que a dinâmica representada em “A Onda” não seja apenas ficção, mas também ganhe contornos ainda mais alarmantes.

Os algoritmos das plataformas digitais, por exemplo, são feitos para reforçar exatamente o mecanismo de separatividade retratado no filme, pois alimentam cada indivíduo apenas com as informações que esses desejam. Ao mostrar repetidamente conteúdos alinhados às nossas preferências, as redes criam câmaras de eco onde nossas opiniões são validadas e reforçadas constantemente, mesmo que sejam obtusas em suas finalidades. O resultado é um ambiente onde o pensamento crítico se enfraquece e o dogmatismo cresce a passos largos. A lógica do “Nós vs Eles” ganha força a cada conflito, a cada debate e a cada narrativa construída para criar inimigos e heróis.
Além disso, movimentos totalitários modernos utilizam técnicas semelhantes às mostradas no filme, desde a construção de símbolos até a idealização de um líder com promessas de ordem e combate a um suposto inimigo comum. Essas estratégias emocionais são eficazes porque acionam necessidades humanas básicas de pertencimento e propósito, como já comentamos. Assim, o filme se torna mais do que uma história: uma narrativa sobre a repetição cíclica de comportamentos autoritários ao longo da história.
A lição se torna ainda mais relevante quando percebemos que muitos grupos radicais se formam exatamente da mesma maneira que os estudantes do filme. Nenhum grupo nasce radical, já odiando e disseminando separatividade, mas por meio de pequenas concessões diárias, pela aceitação de ideias aparentemente inofensivas e pela ilusão de que “nunca se pode chegar tão longe”, acaba-se cometendo atrocidades.
O filme desmonta essa certeza do mundo atual de que jamais poderemos viver outro momento tão complexo quanto o vivido durante o século passado. Na verdade, torna-se frágil essa segurança ao percebermos o quão fácil e manipulável o ser humano pode ser. Ele mostra que, quando deixamos de questionar, quando aceitamos discursos simplistas e quando nos refugiamos emocionalmente em grupos fechados, o extremismo se torna uma possibilidade real.
Diante de tudo isso, naturalmente nos perguntamos: como podemos evitar cair em dinâmicas semelhantes? A resposta não é simples, mas passa por atitudes fundamentais, todas centradas no cultivo da consciência individual. Em primeiro lugar, é essencial preservar o pensamento crítico como ferramenta de defesa individual. Isso significa questionar nossas próprias crenças, identificar emoções que podem nos levar ao dogmatismo e evitar aderir cegamente a discursos que prometem soluções fáceis para problemas complexos.
Outra atitude importante é o fortalecimento da empatia. Em vez de interpretar o outro como inimigo, um fenômeno tão presente no mundo atual, devemos buscar compreender perspectivas diferentes da nossa. O diálogo é antídoto poderoso contra a separatividade. Conversar, escutar e reconhecer diferenças diminuem a polarização interna e enfraquecem estruturas autoritárias. A democracia, seja em escala social ou pessoal, se fortalece quando enfrentamos nossas contradições e aceitamos a pluralidade de ideias.
Também é essencial reconhecer sinais de manipulação. Muitos movimentos radicais se utilizam de discursos afetivos, carismáticos ou até mesmo aparentemente heroicos para capturar seguidores. Quando nos sentimos emocionalmente seduzidos por uma ideia, é importante fazer uma pausa e refletir sobre suas consequências. Perguntar-se: “por que essa ideia me atrai tanto?” ou “essa visão me torna mais livre ou mais dependente?” pode ser o primeiro passo para evitar adesões perigosas.
Por fim, devemos compreender que a liberdade não é algo confortável, mas que todos os dias deve ser buscada. Ela exige esforço, responsabilidade e coragem para vencer os desejos de conforto e a preguiça mental de aceitar sem esforço aquilo que nos é colocado. A tentação de entregar nossa autonomia aos líderes pode ser constante, porque alivia o peso da decisão. O filme mostra que essa entrega, ainda que reconfortante no início, tem consequências profundas.

No fim, “A Onda” permanece como um dos retratos mais contundentes da fragilidade humana diante do fascínio pela ordem, pela identidade coletiva e pela sensação de pertencimento absoluto. Mais do que uma obra cinematográfica, o filme funciona como um alerta sobre o perigo de nossas convicções. Essas podem se transformar em instrumentos de separação quando deixamos de questioná-las e não aceitamos pensamentos distintos. Ao final, somos convidados a refletir sobre quais ideias estamos cultivando verdadeiramente. Elas só podem existir quando usamos a crítica às nossas convicções, pois assim podemos nos manter alinhados com valores universais sem perder nossa individualidade.
Assim, “A Onda” não apenas conta uma história, mas também nos convoca à responsabilidade. Mostra que cada indivíduo, ao manter viva sua autonomia, sua sensibilidade e seu olhar crítico, impede que forças autoritárias ganhem espaço. O filme nos faz compreender que a verdadeira resistência começa dentro de cada um de nós e que o pensamento livre é a primeira e última defesa contra qualquer forma de totalitarismo, seja interno ou externo. Que possamos, portanto, preservar nossos ideais de maneira a criar cada vez um mundo melhor. Essa é uma tarefa contínua, delicada e profundamente humana.




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