Se você é alguém antenado no mundo dos games, já deve ter percebido que os jogos online vão muito além da diversão: eles moldam emoções, criam comunidades e transformam a forma como interagimos com o mundo. Eles são, para muitos, um verdadeiro refúgio, um ponto de encontro e até uma segunda vida. Em meio a uma realidade cada vez mais confusa, cheia de pressões escolares, familiares e sociais, é dentro das comunidades virtuais que muitos jovens encontram acolhimento e pertencimento, fazendo parte dos seus clãs e guildas, com pessoas que, em sua maioria, nunca se viram pessoalmente, mas que ainda assim têm um laço poderoso que as conecta.

Porém, essa história não é tão simples assim. Por um lado, os jogos nos ensinam sobre cooperação, estratégia e criatividade, isto é um fato. Por outro, eles também podem nos prender em uma rotina de competição, comparações tóxicas e frustrações emocionais. Quem nunca foi jogar para “desestressar” e saiu mais irritado do que quando começou? Quantas vezes sofremos e praticamos alguma forma de bullying em uma partida online? Por isso, não podemos escapar dessas duas visões que envolvem o mundo dos games.
Mais do que isso, é fundamental refletir sobre o que ocorre conosco quando algo que deveria ser um passatempo acaba tomando grande parte do nosso dia. Será que estamos alimentando um hobby ou um vício?
Jogos online: entre diversão e dependência
Primeiramente, é importante comentar que não queremos condenar os jogos que tanto estão presentes na vida de milhões de pessoas. Não se trata, portanto, de um ataque ou cruzada contra esse modo de entretenimento no mundo virtual. Os jogos online podem ser incríveis e uma forma poderosa de conectar milhões de pessoas ao redor do mundo, além de estimular a criatividade e imaginação em muitos casos.

Dito isto, é inegável que eles também podem se tornar uma armadilha viciante para os seus usuários. Tal como uma faca de dois gumes, seus benefícios, quando mal canalizados, podem gerar verdadeiras dependências que, uma vez sob esse efeito, tornam-se tão nocivos quanto às drogas e outros tipos de vício.
Sejamos sinceros: quem nunca ficou horas tentando conseguir uma skin rara, desbloquear um personagem lendário ou subir de nível só para ouvir aquele efeito sonoro de conquista? Os jogos são programados para ativar no nosso cérebro a sensação de recompensa imediata, e esse design é viciante: você joga, ganha uma conquista, libera algo novo, sente prazer e volta para repetir o ciclo. É quase como um “loop infinito” que nunca nos deixa satisfeitos.
O problema é que nem sempre dá pra ganhar. Cada derrota online pode gerar raiva, frustração e comparação. Quantas vezes você já não ouviu (ou disse) frases como: “Você é noob”; “Saiu porque não aguenta perder”; “Só ganhou por sorte”. Esses momentos, quando acumulados, acabam tornando o jogo mais estressante que divertido.

Por que isso ocorre? A questão é bem simples: devido à mentalidade de competição. Se existe uma palavra que define a cena dos jogos hoje é esta. Mas não sejamos injustos: a competição está em todos os campos da nossa vida atualmente. Na escola, competimos para quem tira a melhor nota; nos esportes, isso é uma condição básica. Por que não seria assim nos jogos?.
Seja no LoL, no Valorant, no CS2 ou até no Free Fire, tudo gira em torno de ranking, elo e pontuação. A diversão fica em segundo plano quando a única coisa que importa é subir de nível. O resultado? Um ambiente onde jogadores esquecem o prazer do jogo e passam a viver para a próxima vitória.
Essa cultura da competitividade faz com que muitos jovens se sintam pressionados o tempo todo. É como se estivessem em uma prova sem fim, competindo contra colegas, desconhecidos e até contra si mesmos. E aí surge uma pergunta importante: será que ainda jogamos por diversão, ou só para provar algo aos outros? Muitas vezes, nossa posição no jogo reflete em nosso ego, e falamos, orgulhosamente, que estamos jogando em alto nível. A busca por alcançar patamares mais elevados é natural em todos nós; no entanto, o problema mesmo nasce quando queremos alcançar isso a qualquer preço. Essa é a fronteira que divide a diversão da frustração nos jogos.

Além disso, o mundo virtual substituiu grande parte da interação humana na vida real. Se antes o ponto de encontro era a praça da escola, a quadra ou a casa de um amigo, hoje o novo espaço social está nos servidores, nos grupos do Discord e nos chats dos jogos. Dentro dos jogos, surgem amizades que parecem tão reais quanto as do mundo físico. Em alguns casos, até mais fortes, porque ali você compartilha vitórias, derrotas, madrugadas inteiras jogando junto com alguém, memes internos e até segredos pessoais. A competitividade excessiva também pode atrapalhar tais relações, pois muitas vezes deixamos de jogar com uma pessoa por considerá-la “ruim” e não queremos ela em nosso time.
Esse clima de tensão que ocorre nos jogos gera outros problemas no médio e longo prazo. Muitas vezes, podemos ir nos excluindo e, cada vez mais, nos isolando por não aceitar erros ou falhas dos outros, criando assim uma forma de intolerância no mundo virtual que se expande para além dos jogos. Por isso, o mundo virtual, apesar de ser um ambiente com muito potencial, também tem seus perigos. Afinal, a internet é livre, e nem todo mundo que está ali está disposto a criar laços.
Em muitas comunidades online, por exemplo, basta uma partida ruim para receber xingamentos, ofensas e até ameaças. É como se os jogos revelassem o melhor e o pior das pessoas. De um lado: times que se ajudam, compartilham dicas e criam amizades duradouras; do outro: ambientes tóxicos, onde bullying digital e humilhação são rotinas. A grande questão é: como filtrar as experiências positivas sem cair nas armadilhas das negativas?
Essa não é uma tarefa simples, pois muitas vezes essas duas faces andam lado a lado. Para piorar nossa situação, o mundo atual, em diversas situações, inverte os valores de tal modo que aquele que vence, às vezes a qualquer preço, é reconhecido e premiado, enquanto que quem busca uma competição mais justa, cooperativa, é tido como “fracassado”. Isso é, em nossa perspectiva, muito preocupante; porém, entendemos que é apenas o reflexo da sociedade atual, onde muitas vezes o que importa não é ser feliz ou divertir-se somente, mas ser melhor que o outro.
Pergunte a qualquer jogador competitivo: o que vale mais, ganhar ou se divertir? A maioria, caso responda com sinceridade, falará que ganhar é mais importante, pois somente com a vitória se alcança as recompensas prometidas pelo jogo. Dessa forma, o grande problema está em colocar a vitória como o auge da experiência quando, na verdade, um jogo deveria focar apenas em divertir e ensinar, pois é, em última instância, uma forma de lazer e entretenimento. Os jogos, portanto, que deveriam ser espaço de lazer, se tornam arenas de pressão e cobrança. É como se, mesmo no momento de descanso, você ainda tivesse que provar o seu valor.
O impacto emocional e psicológico dos jogos
Consequentemente, o foco exagerado na vitória faz com que os jogos deixem de proporcionar lazer e diversão e se tornem uma batalha campal em nossas emoções. Da euforia da vitória para a frustração das derrotas, o jogador atual vive picos de adrenalina e ansiedade quase ao mesmo instante. É evidente que, do ponto de vista psicológico, lidar com tantas emoções de modo desenfreado pode causar alguns problemas a médio prazo. Por isso, precisamos tocar em um ponto delicado: o impacto dos jogos na saúde mental.
Alguns dos sintomas mais claros que jogadores sentem quando estão imersos nos games são ansiedade, frustração, excesso de comparação, acessos de raiva, apenas para citar os mais comuns. Tais emoções, que geralmente nos tiram do centro e acabam por nos descontrolar, são nocivas quando não percebemos o quão perigosas elas podem ser. Se a todo momento estimulo minha ansiedade, por exemplo, é provável que no decorrer da vida isso evolua para uma patologia, como alguma síndrome. Situação semelhante ocorre com a raiva, que passa a ser a resposta comum para os momentos em que não conseguimos o que desejamos. Essa emoção nos leva, consequentemente, para atos de violência.
Percebe como os jogos mexem conosco e possuem uma influência grande em nosso mundo psicológico? Por isso, não deveríamos estar mais atentos aos tipos de games que estamos jogando e o que eles nos causam?
Entretanto, nem tudo está perdido. Não precisamos olhar somente esse aspecto nocivo dos jogos pois, a bem da verdade, quando compreendemos bem o seu sentido, podemos encontrar grandes qualidades e habilidades a serem desenvolvidas pelos jogadores. O que precisamos, portanto, é saber filtrar e usar o melhor que cada jogo pode nos oferecer e reconhecer que os jogos também trazem aprendizados reais. Por exemplo: Jogos como Overwatch e Valorant nos ajudam a compreender o valor do trabalho em equipe; Minecraft e Roblox são excelentes ferramentas para desenvolver a criatividade.
Poderíamos continuar citando outros muitos exemplos de games que nos ajudam a desenvolver essas percepções. Isso significa, portanto, que o mesmo espaço que pode gerar estresse também pode ser um laboratório de habilidades para a vida real.
Cultura autônoma: como os jovens criam seus próprios mundos
Paralelo a questão dos jogos, que por si só já é um assunto interessante, também há as culturas autônomas que são criadas a partir dos games. Em síntese, podemos resumir a ideia de ‘cultura autônoma’ como uma comunidade criada dentro dos jogos e que continua a explorar e a desenvolver o jogo, mesmo que este já esteja pronto.

Quem joga Minecraft ou GTA RP sabe: os jogos não são só sobre o que os desenvolvedores criaram, mas também sobre o que os jogadores inventam. Há Mods que transformam o jogo em algo completamente novo e assim está sempre sendo reinventado; existem servidores privados que seguem regras próprias, criando verdadeiros mundos paralelos e autônomos dentro do jogo, e isso leva, consequentemente, a fomentação de comunidades que criam narrativas e personagens que extrapolam o que foi inicialmente desenvolvido pelos criadores do jogo. Assim, dentro de cada jogo, subculturas e verdadeiras legiões de fãs são construídas, sendo uma rede de comunicação e interação intensa entre os jogadores.
Esse movimento mostra que a juventude atual não está satisfeita apenas em consumir. Eles querem criar, modificar e reinventar. Em muitos casos, essas narrativas comunitárias são até mais interessantes do que o jogo original. No GTA RP, por exemplo, jogadores criam personagens e histórias tão envolventes que o jogo parece uma série interativa. Isso mostra o lado mais poderoso da cultura autônoma, que dá a capacidade de transformar qualquer jogo em palco para expressão pessoal.

Visto isso, é interessante perceber o choque geracional que os jogos causam. Não é raro encontrar pessoas mais velhas comentando que games são ”perda de tempo” ou que deveríamos estar “concentrados no que é importante, como estudar”. Apesar de válida e, em algum grau, ter certa razão nessas frases, quem joga sabe que a realidade é bem diferente. Os jogos online são, na verdade, laboratórios de habilidades da vida real. Só que, às vezes, não paramos para perceber o quanto aprendemos enquanto jogamos e, assim, acabamos desperdiçando essas experiências.
Em qualquer jogo competitivo, por exemplo, não basta só ter reflexo rápido, saber mirar ou apertar botões com velocidade. Mais do que técnica, é preciso pensar estrategicamente. Planejar ataques, definir rotas, calcular riscos e até prever os movimentos do inimigo.

Além disso, os games ensinam algo que muita gente só vai entender mais tarde: que ninguém vence sozinho. Em League of Legends, não adianta ser o melhor do time se os outros não colaborarem; no Valorant, uma partida se decide na comunicação; já no Fortnite, uma boa estratégia de equipe pode virar o jogo em segundos. Esse senso de colaboração ensina trabalho em grupo, algo que será exigido em qualquer profissão ou projeto de vida.
Quando a vida online substitui a vida real
Até aqui, falamos dos lados positivos e negativos. Mas há um perigo que não dá pra ignorar: quando a vida online começa a substituir a vida real. Quantos jovens hoje já não se sentem mais à vontade para conversar por voz no Discord do que cara a cara na escola? Quantos já não preferem passar o fim de semana no servidor em vez de sair de casa?
É importante ressaltar que o mundo online é uma forma de socialização, com suas próprias regras e formas; porém, a Vida – com “V” maiúsculo – ocorre no mundo real, quando precisamos lidar com dilemas reais. Isso é insubstituível. À medida em que o mundo virtual avança, não apenas no que compete aos jogos, e sim a tudo que está nas redes sociais, um grau de distanciamento se acumula entre a vida real e a que ocorre atrás das telas. Não podemos deixar isso ser ignorado, pois, uma hora ou outra, a vida nos obriga a socializar de maneira objetiva, e não podemos nos manter escondidos no conforto do mundo virtual.
Deixemos claro que não se trata de abandonar os jogos, mas de aprender a equilibrar a vida real e o mundo virtual. Para ajudar a manter uma boa rotina entre esses dois mundos é fundamental seguirmos algumas dicas valiosas:
- Definir horários para jogar e horários para descansar.
- Misturar a vida real com a digital (por exemplo, encontrar amigos que você conheceu no jogo).
- Não deixar que o desempenho no jogo determine o seu humor no dia a dia.
A mágica da vida está em aprender a harmonizar os diferentes elementos que estão ao nosso alcance. Assim, podemos aprender com esses dois mundos sem perder de vista quem somos. O segredo não é sair do digital, mas aprender a não se perder dentro dele.
Jogos online e educação
Pouca gente fala sobre isso, mas os jogos também podem ser uma ferramenta educacional poderosa. Existem uma gama de jogos que conseguem ensinar e entreter, ao mesmo tempo, sem perder sua qualidade. Um ótimo exemplo disto é o famoso “Civilization VI”, no qual você pode jogar com uma civilização da história e conquistar o mundo. Nesse jogo, você aprende história, geografia e estratégia tudo ao mesmo tempo. Para quem realmente gosta desse jogo, o conhecimento adquirido vai muito além da mecânica e da diversão, se tornando uma verdadeira ferramenta pedagógica.

Esse é apenas um exemplo, entre vários, de como os games, se usados com equilíbrio, podem ser muito mais do que diversão, tornando-se escolas interativas, usados como aliados de professores e educadores, de maneira geral. Foi pensando nisso que trouxemos abaixo alguns jogos que, quando bem canalizados, podem ajudar bastante os jogadores.
Minecraft – Criatividade sem limites
Não tem como falar de aprendizado nos games sem citar Minecraft. Ele é mais do que um jogo: é uma plataforma de criação. Através dele é possível ensinar sobre planejamento e organização, estimular a criatividade e o pensamento lógico do jogador. Além disso, pode ser jogado sozinho ou em comunidade, fortalecendo assim a cooperação.

Como podemos perceber, além de desenvolver ferramentas psicológicas, como a lógica e o planejamento, o jogo também possibilita melhorar habilidades sociais, como o trabalho em equipe, o que ajuda a desenvolver não apenas aspectos “técnicos”, mas também o trato social. Quando bem canalizado, esse é um dos jogos que podem ser muito bem utilizados como ferramenta pedagógica.
Journey – Uma jornada emocional e poética

Diferente da maioria dos jogos competitivos, Journey é uma experiência tranquila, reflexiva e emocionalmente tocante. Ele mostra que nem sempre é preciso lutar ou vencer, às vezes, o importante é aproveitar a jornada. De modo objetivo, o jogo tenta passar uma mensagem importante para uma geração que está cada vez mais focada na competição, por isso o deixamos como uma boa recomendação para ensinar alguns valores que, a cada dia, estão sendo deixados de lado.
Stardew Valley – Cooperar e cuidar
Nesse jogo, você cuida de uma fazenda, se conecta com personagens, ajuda vizinhos e constrói uma vida simples. Ele ensina sobre paciência, cuidado e responsabilidade, além de mostrar que há beleza nas coisas pequenas. Esses jogos provam que os games podem ser muito mais do que tiros e competição. Eles podem ser ferramentas de aprendizado e reflexão.

Dito tudo isto, se conseguirmos enxergar os games como espaços de aprendizado, diversão e criatividade, eles podem nos ensinar a cooperar, pensar estrategicamente, cuidar do que é importante e até entender melhor a nós mesmos. No fim, não se trata de escolher entre o mundo real e o mundo virtual, mas de aprender a equilibrar esses dois espaços, que até então parecem inconciliáveis. Ao fazermos isso, poderemos perceber que, com as escolhas certas, os jogos podem ser não só entretenimento, mas também ferramentas de crescimento pessoal.
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