A cultura japonesa tem invadido o Ocidente nas últimas décadas. Seja através de jogos, animes (um tipo de desenho animado criado pelos japoneses) e mangás (a “revista em quadrinhos” do Japão), passamos a conhecer um pouco mais dos hábitos e do estilo de vida dessa população através destes contatos. Esse fenômeno, porém, não começou a ocorrer por acaso, visto que estamos em um momento histórico em que a globalização é uma realidade. Graças à alta tecnologia, conseguimos nos comunicar rapidamente com outras pessoas ao redor do planeta e, naturalmente, conhecemos o mundo através dos nossos celulares e computadores.
Nesse sentido, conceitos como “Ocidente” e “Oriente” aos poucos começarão a perder o seu sentido, visto que as fronteiras físicas já não podem delimitar nosso conhecimento de mundo. A integração destas duas grandes culturas — que evidentemente são construídas a partir de outras experiências e modos de vida — se dá aos poucos a partir da mistura entre elas e vai gerando, provavelmente, uma nova forma de viver, com suas particularidades. Neste processo, é possível que muitos símbolos importantes se percam, diluídos nessa grande “massa cultural” que o mundo globalizado tem formado.
Tendo em vista esse possível cenário, o que pode ocorrer com as tradições de cada local? É provável que deuses, mitos e lendas passem a ser somente um apêndice dessa nova cultura que está se formando, perdendo espaço para outros aspectos desse admirável mundo novo. Assim, se na antiguidade deuses eram cultuados em templos sagrados, hoje eles são personagens de filmes e jogos; os grandes mitos da criação — usados para explicar às pessoas ideias acerca do que seria o Universo —, a natureza e o próprio ser humano agora são a narrativa de novas marcas e produtos que surgem a todo momento.
Talvez um leitor mais cético possa considerar que estamos exagerando, mas a deusa que falaremos hoje é um ótimo exemplo de como esse processo de ressignificação dos mitos está ocorrendo. Conheceremos, portanto, Inari Okami, a deusa da prosperidade do Xintoísmo.
De início, é preciso entendermos o Xintoísmo. Desenvolvido no início da povoação das ilhas japonesas, o Xintoísmo não possui um livro sagrado, muito menos mandamentos para determinar uma forma de conduta, e ainda hoje é praticado no Japão e em diferentes partes da Ásia. Quanto às suas características, comumente, ao falarmos de uma religião, buscamos “encaixá-la” em definições como “monoteísta” ou “politeísta” — ou seja, se nessa religião possui a crença em um único Deus, como o Cristianismo e o Islamismo; ou na crença em várias divindades, como no caso do Antigo Egito e da Grécia clássica. O Xintoísmo, porém, entra em uma nova definição e o chamamos de “Panteísta”. Uma religião panteísta nada mais é do que a crença de que Deus não é um único ser ou vários seres, mas que toda a natureza é composta de deuses e que estes são responsáveis por diferentes aspectos desse grande corpo divino.
Portanto, podemos associá-la ao politeísmo, mas entendendo que a quantidade de divindades que pode existir nessa religião é tão grande quanto o número de estrelas que existem no cosmos. Dentro dessa perspectiva, Inari Okami estaria relacionada a aspectos tanto físicos, como as colheitas, mas também representa um símbolo de abundância e de prosperidade.
Entretanto, não pensemos que essa é uma definição aleatória e que os atributos dados a cada divindade são frutos do acaso. Os aspectos físicos e os simbólicos se complementam, fazendo com que Inari Okami não seja apenas uma ideia “solta” nesse imenso universo que compõe a religião xintoísta. Basta pensarmos um pouco para entender a razão de ela estar ligada à colheita e à prosperidade. A realidade do Japão Antigo, com uma cultura baseada na agricultura de subsistência, mostra que existe uma estreita ligação entre ser próspero e fazer uma excelente colheita. Isso garantia a sua sobrevivência, o estoque para as estações mais difíceis para produção de alimentos e a chance de comercializar o que sobraria.
Quanto a essa ideia, o mito de Inari Okami representa de forma sintética esta ideia. De acordo com escritos do século VIII d.C., um antigo senhor feudal japonês chamado Hata no Igoru, ao praticar arco e flecha em um alvo, fez com que o local atingido se transformasse em um imenso pássaro. Este voou até um monte e, quando pousou, transformou toda a região em uma grande plantação de arroz, que é tido como o alimento base de todo o Japão. Hata no Igoru, ao presenciar o fenômeno sobrenatural, resolveu tornar o local sagrado assim como a própria colheita do arroz. O aristocrata então montou um templo sagrado dedicado à deusa Inari Okami, associando a prosperidade da colheita à ela, que, a partir desse momento, ficou sendo a regente da agricultura.
Outro mito da deusa conta que ela, sempre no início do inverno, vai até sua montanha sagrada para abençoar as plantações. Marcado como o período de grandes chuvas, o inverno também é uma estação celebrada no Japão com diversos festivais em honra à deusa, criando assim uma maneira popular de culto à Inari Okami.
Um outro aspecto importante dessa deusa é o fato de que sua representação e seu gênero mudaram diversas vezes ao longo do tempo. Assim, por vezes Inari é tido como uma deusa, ora como um deus. Por vezes, também é representada como uma raposa, que é o animal sagrado desta divindade. Visto isso, diversos mitos japoneses em que essa divindade aparece podem tornar seu entendimento confuso, porém sempre seus principais atributos são preservados. Mas falemos de dois tão interessantes quanto que já citamos nesse texto: os da raposa.
Para a cultura japonesa, a raposa é um animal que simboliza a inteligência e a sabedoria. Existe uma outra divindade diretamente ligada a esse animal chamada de Kitsune. Considerando tais atributos, qual é a relação da inteligência e da sabedoria com a prosperidade? De maneira simplificada, podemos dizer que só pode ser próspero quem é capaz de desenvolver a inteligência. Não confundamos, portanto, inteligência com agudeza mental ou intelectualismo. Inteligência, de maneira prática, é a capacidade de discernir entre o bem e o mal e escolher o bem. Assim, as raposas andam junto com Inari Okami, tal qual a prosperidade anda lado a lado com a inteligência e a sabedoria.
Dessa maneira, Inari Okami nos lembra que não basta querer ser próspero, é preciso que a sabedoria nos acompanhe. É inegável o poder desta ideia se aplicarmos em nossa vida prática, porém, como falamos no começo desse texto, cada vez mais as tradições vão perdendo espaço na nova cultura que surge. Onde está Inari Okami na atualidade, então? Nos video games. Em 2006, lançou-se na plataforma Playstation “Okami”, um jogo de ação e aventura no qual o personagem principal não é Inari Okami, como esperado, mas sim Amaterasu, a deusa do Sol do Xintoísmo. Assim, as divindades antes celebradas em verdadeiros santuários e festivais vão sendo renegadas ao mundo virtual, com seus conceitos distorcidos e muitas vezes completamente diferentes do que o concebido em sua gênese. Será esse, por fim, o destino dessas milenares tradições?
Confiamos que não. Os ciclos são uma realidade da natureza e, por mais que as formas mudem, as ideias seguirão inspirando a humanidade. O que nos resta, portanto, é não deixar que tais ideias sejam apagadas do nosso tempo histórico, mesmo que busquemos preservá-las em textos, imagens, mitos ou mesmo no mundo virtual, sem se perder de sua origem.