O divertido curta “O vendedor de fumaça”, que no original significa, “El vendedor de humo” em apenas 6 minutos nos faz lembrar o quanto nos é perigoso e ilusório o mundo das aparências. A premiada animação foi produzida e dirigida no ano de 2012 pelos alunos da Primerframe, uma escola espanhola de animação. O filme fala sobre a história de um vendedor autônomo que promete realizar os sonhos e os desejos das pessoas a partir de truques de ilusão e mágicas de fumaça. Ao que parece, o vendedor ganha o seu sustento passando de cidade em cidade ofertando soluções rápidas e práticas para os diversos problemas da população.
A história se inicia com a chegada do vendedor em um vilarejo, que se instala na praça central da comunidade para iniciar as suas atividades. Assim, o mesmo arma a sua carroça, se veste e passa a encenar vários números artísticos para chamar a atenção de toda a população. Porém, todos os moradores daquele vilarejo continuam naturalmente atentos às suas dinâmicas de vida e ignoram a presença do forasteiro, até que o vendedor transforma o cachorro vira-lata de um dos moradores em um animal forte e robusto que chega a impressionar não só ao dono, mas a todos os que estavam presentes.
Tal estratégia de marketing foi mais do que suficiente para que aos poucos toda a cidade ficasse sabendo do ocorrido e assim, cada morador foi formando uma fila na praça para a realização dos seus sonhos e desejos. Porém, todo o truque ilusório só podia durar enquanto os objetos transformados não entrassem em contato com a água. O tempo passa e aos poucos todos os moradores vão descobrindo que foram enganados e manipulados pelo vendedor e, ao perceber que estava em perigo, o charlatão se retira do vilarejo enquanto a cidade precisa lidar com a frustração da volta de sua rotina.
A animação nos permite fazer infinitas abordagens e leituras associando as ricas reflexões a várias áreas de nossas vidas. A amplitude do tema em questão, por exemplo, nos ajuda a pensar sobre os perigos das falsas promessas para um enriquecimento rápido através de aplicações financeiras um tanto quanto duvidosas, ou ainda os “passos milagrosos” para encontrar a felicidade nos vários cursos de autoajuda vendidos na internet. Tendo essas questões em vista, a animação nos permite refletir sobre Valores Morais, sobre os perigos das falsas promessas, sobre a comunicação e o falso marketing, o discurso da felicidade fácil, etc.
Entretanto, seja qual for a abordagem escolhida, a verdade é que o vendedor de fumaça acabou trazendo consigo importantes ideias de um debate bem antigo para a humanidade e já bastante conhecido para a filosofia, que é o tema sobre o mundo Real VS o mundo das fantasias, profundamente discutido por Platão no Mito da Caverna.
O Mito da Caverna é uma das obras mais lindas da nossa filosofia, ele faz parte do Livro 7 que compõe a República, escrita entre os anos 385-380 a. C, onde Platão faz uma homenagem ao seu mestre, Sócrates. Nela podemos encontrar profundos diálogos sobre a sociedade, a política, a justiça e o papel fundamental da educação na formação do indivíduo. Assim, segundo o filósofo, todos nós estamos presos num mundo de aparências, como numa espécie de caverna.
Imaginemos todos os Seres Humanos sentados de frente para uma parede, acorrentados e de costas para a saída da caverna. As únicas coisas que são permitidas serem vistas do mundo são as sombras de objetos refletidas através de uma fogueira, na qual alguns homens a utilizam para movimentar os objetos e entreter os acorrentados. Desse modo todos nascem, crescem e morrem. Entretanto, os homens que se encontram dentro da caverna pensam que vêem a realidade do mundo, mas mal conseguem enxergar as suas próprias sombras, tendo em vista que não conhecem a realidade do mundo exterior além das penumbras de sua caverna. Nessa alegoria, o filósofo compara a caverna ao mundo sensível no qual vivemos, que é o mundo das aparências.
Só se pode livrar-se dos grilhões e sair da caverna quem fizer o uso da razão. Por isso, a filosofia pode ser compreendida como um caminho que pode nos ajudar a romper com os ciclos de ilusões, uma vez que ela busca a Verdade ou a Essência por trás de cada coisa através do uso da razão. Ou seja, para Platão o caminho para sair da caverna é a filosofia, e o instrumento para conseguir isso é o bom uso da razão. É importante ressaltar que o conceito de razão compreendido aqui pode ser entendido como a forma com que um indivíduo pode organizar os seus pensamentos e os seus sentimentos de acordo com uma Virtude ou Lei Universal. E o que são Virtudes? Para essa tradição, Virtudes são compreendidas como o Amor, a Justiça, a Bondade, a Generosidade dentre outras.
Assim, quanto mais a organização do pensar e do sentir estiver identificada com Valores altruístas, maiores são as chances de se livrar das ilusões e apreender a realidade. Portanto, sob essa ótica, um indivíduo que faz uso de sua razão, necessariamente, é uma pessoa Virtuosa, Bondosa, Generosa e Fraterna, pois, as Virtudes são como chaves que nos abrem a visão e o discernimento e nos ajudam a separar o real do ilusório em todos os momentos de nossas vidas.
O curta em questão é muito interessante, principalmente, quando percebemos que todos os moradores acabam por ser enganados pelo vendedor de fumaça. Entretanto, o que impulsiona a população para a compra de ilusões do forasteiro são os desejos egoístas dos moradores: um quer um cachorro robusto, porque não aceita o seu vira-lata; a outra quer uma bolsa bonita; a idosa quer a beleza da juventude; o juiz uma grande estátua no centro da cidade que lembre o seu prestígio frente aos demais moradores. Com isso, o que levou a população ao desengano foi a ausência de Virtudes como o Bem para todos, a Justiça, a Fraternidade, ou mesmo, o mínimo senso de comunidade. Existe uma máxima antiga que diz que por trás de todos os nossos problemas há sempre uma ausência de Virtude e, ao analisar o perfil dos moradores da cidade, podemos chegar à conclusão que numa relação onde somos trapaceados, certamente, fomos nós quem legitimamos o trapaceador com as nossas ânsias por vantagens desmedidas.
Por fim, é interessante perceber como mitos tão antigos como o Mito da Caverna podem nos falar ao coração de forma tão viva. Através deles podemos ler os vários fatos simbólicos que a vida nos apresenta. Já a animação nos ajuda a refletir sobre a importância de estarmos atentos aos perigos que nos cercam o mundo das aparências. Tendo em vista que vivemos em uma sociedade, infelizmente, que tem como um de seus valores bases a aparência em detrimento da essência. Tal tônica acaba por nos esvaziar os sentidos das palavras, das relações, dos sentimentos e das ações, nos reduzindo apenas à sobrevivência, nos condicionando a ignorância. A nossa condição Humana reivindica Valores e Princípios transcendentes, acima da condição animal, pois, a nossa humanidade é alimentada e nutrida por Honra, Coragem, Lealdade, Altruísmo, Prudência e Senso de Coletividade, chaves imprescindíveis para enxergarmos o real dentro e fora de nós.