Será que temos realmente algum poder sobre a nossa existência? Os fatos nos pegam e nos moldam ou somos autoprodutores de nós mesmos? Temos poderes sobre o que nos acontece? Se temos, então, em que medida dominamos esses poderes?
Dizem que é de Charlie Chaplin a ideia de que a vida é como uma peça de teatro que não permite ensaios, ou seja, tudo, absolutamente tudo que você escolhe fazer o tempo todo é causador da sua própria existência. Cada escolha, cada decisão, cada gesto, cada ato, o mais simplório que seja, desde uma garfada em um prato até a escolha de cursar tal ou qual faculdade é predeterminante de uma cadeia de efeitos existenciais, os quais repercutem em todo o seu futuro, escrevendo o seu enredo de vida, mas esse enredo é mais que um texto, é mais que um roteiro teatral é a sua própria vida acontecendo à medida que é escrita por você mesmo.
Essa perspectiva, de que a vida é uma cadeia de efeitos, está em todos os sistemas de pensamento da cultura humana, nas tradições, na filosofia antiga, oriental e ocidental, no pensamento moderno e na cinematografia de hoje.
Quem não lembra do filme “De Volta para o Futuro”, em que um adolescente dos anos oitenta usa uma máquina construída por um cientista maluco e volta para a década de cinquenta, mas começa a acontecer uma série de problemas, pois sua intervenção no tempo passado começa a alterar fatos desencadeadores de efeitos futuros que põe em risco até a sua própria existência? Quem não lembra também da ficção científica “Efeito Borboleta”, em que um estudante universitário volta no tempo para tentar ajustar alguns traumas da infância, mas começa a surgir uma série de consequências inesperadas em razão da alteração de fatos desencadeadores de uma cadeia de efeitos futuros?
Às vezes o cinema é o jeito que o homem de hoje encontra para expressar suas intuições mais profundas, como as tradições faziam nos textos sagrados. No Eclesiastes, por exemplo, que é um livro do Velho Testamento da Bíblia, tem uma parte que diz assim: “Tudo tem o seu tempo determinado, (…) há tempo de plantar, e tempo de arrancar o que se plantou”, daí vem a conhecida “lei da semeadura”, em que tudo o que se planta, colhe.
Essa lei misteriosa é enunciada nos escritos sagrados da cultura hindu, seja no Dhammapada, escritos de Buda, seja no Bhagavad Gita, texto sagrado da epopeia hindu Mahabharata, em que se fala da ação sempre como algo decorrente de causas anteriores e causadoras de efeitos subsequentes.
A mentalidade científica, inicialmente em Aristóteles e na modernidade embalada pela ideologia do racionalismo, agarrou essa lei invisível da causalidade, ou do “karma” para os orientais, ou da semeadura para os judeus e cristãos, com o desespero de dominá-la em seus aspectos mais densos.
Poderíamos arriscar dizer que o motor por trás de todo o avanço científico é o sonho de controlar a causalidade. Isso explica a revolução científica trazida no bojo do iluminismo com grandes saltos nas áreas da física, da matemática, da química, da biologia, da astrofísica, isso explica a revolução científica e o surgimento de uma psicologia científica quase exclusivamente mapeadora de patologias, isso também explica o surgimento da neurociência, da robótica, das ciências da computação, entre outros ramos.
A modernidade surge dentro de um paradigma de matematização da natureza para controlar, dominar, manejar e moldar o futuro. Isso surge do medo, do instinto de preservação da espécie e da intuição profunda de que a realidade é uma enorme cadeia de efeitos em que cada fato, natural ou humano é consequência de uma ação anterior e gerador de um efeito futuro.
Desse movimento do pensamento humano precipitam-se as mais variadas teorias a respeito do caos, da complexidade, das modelagens matemáticas para o estocástico, etc. Mas uma coisa curiosa é que à medida que avançam as descobertas científicas sobre a natureza e a produção de tecnologias impressionantes, a figura humana parece retroagir em humanidade.
Somos cada vez mais infelizes, todos os dias milhares de crianças morrem no planeta por falta de alimentação; países são devastados em guerras inexplicáveis; crianças morrem afogadas no mar em busca de um território para existirem; novas epidemias de doenças, inclusive psíquicas, surgem e se avassalam pelo mundo; a população mundial cresce a níveis incontroláveis e a escassez de recursos para a subsistência humana no planeta e a cegueira dos governantes prenunciam um colapso planetário. Na mesma proporção em que avançam as técnicas, avançamos em egoísmo, em ódio, em intolerâncias e desequilíbrios, vamos nos tornando estrangeiros de nós mesmos. Na medida em que a mentalidade científica avança, a dor humana se torna mais intensa.
O que está errado na modernidade? Por que a busca de domínio sobre o futuro parece desaguar na perda de controle sobre o futuro?
Talvez o caminho não seja esse, talvez não tenhamos que mapear e controlar a natureza, talvez tenhamos que ser apenas humanos e cada vez mais humanos. Não devemos querer controlar nada, devemos apenas querer cumprir o nosso papel de humanos e o resto vem por causalidade, por karma ou seja lá o que as tradições queiram chamar. Só devemos focar em ser humanos.
E o que é ser humano?
Saber ser humano é um saber simples, não precisa de teorias complexas para explicar isso, a compreensão do nosso papel no mundo não é uma compreensão intelectual é fruto de um discernimento que só existe nos lugares mais puros de nossas mentes. As crianças sabem o que é ser humano, pessoas simples sabem o que é ser humano.
Ser humano é ter a sensibilidade de se encantar com o mundo, de sentir a beleza em si; é desenvolver sentimentos; é ter autocontrole; é superar o egoísmo; é viver com simplicidade; é resignar-se diante do destino; é fazer o que aos animais, aos vegetais e aos minerais não é dado fazer; é cumprir seu papel exclusivo de humanos. Somente o homem tem o nível de psiquismo e de mentalidade que temos em toda a natureza, e se temos isso, em exclusividade em toda essa ordem de realidade é porque temos um papel específico de unir razão e sentimento.
Razão no sentido de buscar uma ordem na atividade mental como acontece em uma sinfonia sendo executada por uma orquestra, em que todas as diferenciações e especificidades se harmonizam em uma única melodia e sentimento no sentido de estabelecer essa mesma ordem nas emoções.
Esse é o sentido de sermos humanos neste plano, nesta experiência, neste momento da história, é traduzirmos a música do Universo através de nosso pensar, nosso sentir e por conseguinte nosso agir. Isso nos é estranho porque estamos mergulhados em outro paradigma, não queremos harmonia queremos desesperadamente o controle. É urgente reencontramos o nosso papel de humanos no esquema da natureza, sob pena de nos consumirmos dentro dessa grande cadeia de causas e efeitos.