O Ser Humano Excelente de Platão

Originalmente publicado em Ano Zero

Rodolfo Dall’Agno

Quais as características de um ser humano que é “excelente”?

Podemos dar milhões de respostas a essa pergunta, de citar adjetivos para qualificar tal pessoa até problematizar a pergunta em relativizações e desconstruções do que seria um “ser humano excelente”.

O pensamento de nossos ancestrais, entretanto, ousava sintetizar a resposta no domínio de duas virtudes ou conjuntos de virtudes. Trata-se, como sempre, da dualidade a que estamos sujeitos neste mundo, e do convite a superá-la alcançando um terceiro ponto, acima e mais luminoso que as polaridades. Na China, por exemplo, essas duas virtudes foram chamadas de Yin e Yang (embora esses termos possuam um significado bem mais abrangente do que interessa à nossa conversa).

Mas é Platão quem talvez ofereça uma chave mais promissora sobre o assunto, quando defende, na sua obra A República, que a educação dos jovens da cidade ideal (Kallipolis) deve incluir a música e a ginástica. São esses, segundo Platão, os dois pilares fundamentais para garantir a formação de um adulto que poderá agir e viver com excelência (aretê).

É claro que tanto a “música” quanto a “ginástica” de Platão não se confundem com aquilo que entendemos hoje por esses nomes. Assim como tudo o que chegou da Antiguidade até nós, conhecemos os dois conceitos através de um filtro histórico e descontextualizado.

O conceito de “música” na Grécia Arcaica estava ligado diretamente às musas. Essas, por sua vez, não são apenas as nove deusas correspondentes às nove formas de arte. Entendia-se, no pensamento antigo, que quando um artista, um religioso ou um líder realizavam seus ofícios, não eram exatamente eles quem trabalhavam, mas sim algo superior, divino, que usava seu corpo e alma como um canal de expressão.

Para os gregos, toda sensibilidade às artes, às ideologias, às teorias e as emoções são virtudes próprias daquele que desenvolveu a música em si. Trata-se, portanto, de uma abertura às ideias, um estado de receptividade e sensibilidade. Segundo os gregos, uma atitude própria do princípio feminino da natureza, assim como o Yin chinês.

Não se trata, entretanto, da mesma ideia de “incorporação” de um espírito ou qualquer coisa semelhante, algo tão presente nas religiões contemporâneas. É possível entender esse fenômeno como atuando no artista durante a realização de um obra de arte e mesmo quando temos uma conversa mais profunda com alguém.

Eu mesmo, conforme vou escrevendo este texto, estou exercitando minha capacidade musical, pois em certo grau as palavras e frases vão surgindo intuitivamente, a ponto de chegar à impressão de que não faço outro esforço intelectual senão manter essa atitude receptiva. Eu poderia dizer, como os gregos, que não sou exatamente eu quem está escrevendo, mas uma ideia, uma força da natureza, que escreve através de mim.

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Para Platão, entretanto, a música não basta. O outro pilar, a ginástica, também deve estar presente na formação do homem excelente.

Como era de se esperar, a palavra ginástica não possui o mesmo significado de hoje em dia. Ginástica vem de gymnos, ou seja, nudez. A nudez também do corpo (já que a prática de exercícios físicos na Grécia antiga, inclusive nas Olimpíadas, era realizada com nudez) mas essencialmente da alma.

A ginástica consiste fundamentalmente na educação moral. Não teórica, pois isso seria mais próprio da educação musical, mas principalmente prática. Nisso inclui exercícios físicos, mas fundamentalmente provas, enfrentamento de perigos, medos e angústias, desenvolvendo a coragem ante os desafios da vida.

Deixar a alma nua, limpa, desnuda de qualquer capricho inferior. Trata-se do conjunto de virtudes Yang, estoicas, próprias do princípio masculino da natureza, que tem a sua força na ação, na coragem e na iniciativa.

Ao contrário da música, a ginástica é uma atitude não receptiva, mas ativa, perante a vida. O desenvolvimento moral limpa a alma e o corpo, livrando-os de empecilhos e imperfeições e dignificando a manifestação de ideias em um ser humano – ou seja, deixando o canal musical mais estruturado para receber melhores ideias.

Assim, da mesma forma que necessito estar em uma atitude interior aberta ao escrever este texto, também necessito de moral para sustentar minha atitude de autor. No caso, preciso saber um mínimo da língua portuguesa, preciso conhecer o assunto que escrevo, preciso organizar meu tempo para fazê-lo – enfim, tudo o que envolve minha estrutura interior e circunstancial para poder ser um bom canal musical e escrever um bom texto.

A visão grega, ao identificar a ginástica com a nudez, acaba por entendê-la, na verdade, não como acréscimo de coisas que não possuímos, mas sim como limpeza dos defeitos que impedem que nossa ética natural se manifeste.

Nesse contexto, é útil falar do mito de Glauco, cujas principais versões foram compiladas por Ateneo de Naucratis em Banquete dos Eruditos. O mito foi utilizado como alegoria por Platão na República. Glauco, que é um deus (portanto imortal, belo, nobre, bom e divino por natureza), em certo momento cai no fundo do oceano e adormece por um tempo longo para seres humanos, mas correspondente ao sono de um deus. Devido à duração de seu sono, algas, corais e outros elementos marinhos se fixaram em seu corpo. Então, quando acorda, ainda meio adormecido e confuso sobre quem era, Glauco concluiu que era um monstro coberto de algas, esquecido e desconhecido de sua real natureza divina.

O processo de ginástica diz respeito a despir-se das algas e corais que não nos pertencem, mas a que muitas vezes estamos apegados. Essa é a nudez própria dos verdadeiros atletas, heróis e deuses, que, segundo Viktor D. Salis, eram os únicos aptos a serem representados nus em estátuas e outras obras de arte, pois eram descobertos de algas, os de alma nua. Eram os únicos capazes de olhar-se no espelho e reconhecer quem realmente eram.

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Quando há uma boa conexão com as melhores ideias (música) e o canal de recepção está limpo, apto para receber, sem distorções, essas ideias (ginástica), então, segundo Platão, teremos finalmente um ser humano pronto para entrar em contato com as disciplinas superiores, que são as ciências e a dialética. É a união de dois aparente opostos, que garantem uma estrutura adequada para o exercício da razão e do intelecto.

Faz parte do senso comum o preconceito de que artistas, intelectuais e idealistas, apesar de suas nobres aspirações, possuem grandes dificuldades de concretizar, organizar e estruturar suas ações no mundo, permanecendo reféns de coisas como transtornos mentais, enfermidades físicas, endividamento e desorganização em geral. Em contrapartida, acredita-se que grandes gestores, empresários e políticos, apesar da grande capacidade de ação, eventualmente são norteados por fins egoístas, mesquinhos e, até mesmo, criminosos. Na generalização e superficialidade própria do senso comum, outras categorias também vêm à mente: teóricos e práticos, humanas e exatas, esquerdistas e liberais, idealistas e empíricos, hemisfério direito do cérebro e hemisfério esquerdo.

Independente do grau de veracidade ou imprecisão dessas suposições, podemos inferir que o modelo educacional platônico procura desenvolver no jovem educado o que há de melhor nesses dois supostos polos: do primeiro grupo, a capacidade de inspiração em grandes ideais (música) e do segundo grupo, a capacidade de força e ação no mundo (ginástica).

Acima da música e da ginástica, está a busca pela verdade, representada pelas ciências e depois pela dialética. Platão argumenta que é necessário que haja essa preparação inicial nos dois pilares. Caso contrário, há o perigo da formação de relativistas morais que se servem da dialética como um jogo de argumentos ao invés de a utilizarem para investigar a verdade.

A educação moderna excluiu de seu aparato essa preparação, julgando suficiente a educação dada em casa pelos pais. O jovem, desde cedo, entra em contato com as ciências (em um momento que deveria estar inspirando-se (música) e desnudando sua alma (ginástica)) e é incentivado a ter opinião própria sobre assuntos sérios quando mal sabe amarrar seu tênis ou lavar a louça.

Mas, de tudo o que foi dito, creio que o que podemos tirar de mais importante é a mensagem da união entre coisas que parecem tão opostas. É somente a partir dessa ideia de unidade que podemos pensar em um ser humano excelente.

No modelo grego, essa fraternidade deve existir tanto na sociedade, na sadia convivência entre os cidadãos, quanto no interior de cada um, nos seus aspectos mais contraditórios e opostos. Deve haver a percepção de que, para além de qualquer diferença (que existe, não podemos negar), está a verdade brilhando alto.

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