Você já percebeu como há momentos que nunca esquecemos? Um acontecimento marcante em nossa infância, um dia que vivemos intensamente ou até mesmo um tipo de comida que ao recordarmos já nos dá água na boca. Por que nunca nos esquecemos? Em contrapartida, vivemos milhares de dias em nossas vidas que pouca coisa deles – para não dizer nada – nos resta em nossa memória. Dormimos e acordamos sem ter uma clara noção do que nos marcou naquela jornada diária e, com o tempo, os dias tornam-se semanas, meses e, sem se dar conta, tudo segue mais ou menos igual. O que, portanto, define o que nossa memória preservará e o que será descartado, renegado ao esquecimento?
Um dos fatores que certamente contribui para a retenção das memórias é a consciência. Quando vivemos intensamente o momento presente, ou seja, com foco e atenção no que estamos fazendo, é mais fácil conseguirmos lembrar o que aconteceu por mais tempo. Não trata-se, porém, somente de estar observando o que se passa, mas realmente participar ativamente desse processo, gerando imagens e experiências vívidas. Quando nos conectamos verdadeiramente com o que passa ao nosso redor, nosso cérebro interpreta que aquilo é importante e deve ser preservado. Por outro lado, em um mundo que estimula nossa atenção cada vez mais é um desafio tornar-se atento, uma vez que somos expostos a uma gama infindável de sensações ao longo de somente um dia. Desse modo, vivemos muitas experiências, mas pouco é guardado em nosso cofre interno, o qual chamamos memória.
Entretanto, dentre as diversas formas de reter memórias a longo prazo, nenhuma é superior à música. Basta pensarmos em quantas músicas sabemos “decorado” em nossa mente. Desde as infantis que escutamos em nossos primeiros anos até as músicas criadas por nossos professores para aprendermos a ordem dos planetas do sistema solar, fórmulas matemáticas ou mesmo eventos históricos. Além disso, há ainda músicas de que nem mesmo gostamos, mas que de alguma forma “grudam” em nossa mente e se perpetuam por gerações, mantendo-se não somente na mente de cada pessoa, mas também no imaginário coletivo de todo um povo. Graças a isso, sentimos, por vezes, a sensação de que determinada música já chegou “instalada” em nossa memória, pois sua melodia e letra nos vêm naturalmente à mente, mesmo que há décadas não a escutamos. Você já passou por isso?
Não por acaso, as primeiras civilizações humanas usavam a música para transmitir seu conhecimento. Em um mundo em que ainda não existia escrita, cantar versos e construir músicas eram meios eficazes de narrar mitos, histórias e grandes eventos de um povo. As canções ecoavam por gerações, porém, como a memória ainda é uma faculdade mental limitada, naturalmente algumas partes destas antigas narrativas eram esquecidas ou alteradas. Mesmo assim, a música se mostra um meio eficaz de memorização, inclusive muito mais efetivo do que a leitura convencional de um texto. Diante disso, fica o seguinte questionamento: será que a ciência consegue explicar as razões disso ocorrer?
De acordo com alguns estudos, sabe-se que a primeira forma de comunicação que decodificamos são as melodias. Assim, mesmo antes de um bebê conseguir traduzir palavras como “mamãe” ou “papai”, grava-se o tom de voz e a sonoridade de como os pais falam essa palavra. Dessa forma, podemos dizer que identificamos primeiro a música e somente depois a linguagem como a conhecemos. Do ponto de vista evolutivo, essa teoria se faz plausível, afinal, basta observarmos a comunicação dos animais e perceberemos que sua linguagem é, em certa medida, “musical”, ou seja, que se comunicam não por palavras, mas pela intensidade dos sons que produzem e pelos tipos específicos de vocalização. Por não possuírem um cérebro tão desenvolvido quanto o dos seres humanos, os animais, via de regra, não conseguem produzir uma fala, com palavras, pois para isto é preciso uma cognição mais robusta, capaz de transformar ideias abstratas em um conjunto de fonemas que formam uma palavra.
Nesse sentido, os estudos mostram que é muito mais fácil gravar melodias e músicas inteiras do que decorar textos. A nível neurológico, o esforço cognitivo para memorizar as músicas é bem menor, o que não significa dizer que é algo fácil ou simples. Se considerarmos, por exemplo, que grande parte das músicas possuem não somente uma melodia, mas também palavras com significados distintos, perceberemos que nossa cognição não estará voltada somente à repetição mecânica de uma sequência de versos, mas também poderemos interligá-las a um sentido ou uma ideia que sintetiza aquela música. Assim, cria-se um outro processo, mais complexo e que ajuda fortemente na fixação das músicas em nossa memória: a afetividade.
Vamos detalhar esta ideia. É provável que você, meu caro leitor, tenha em mente músicas que você escutou no rádio – ou quando era criança – e, em algum grau, não tem nenhuma relação emocional ligada a elas, correto? Os grandes “hits” do momento, em geral, são aprendidos na base da repetição, mas não necessariamente através de uma afetividade com que nos relacionamos. Entretanto, há músicas que, quando tocadas automaticamente, nos lembram um momento específico, ou uma pessoa, ou ainda uma época do passado que gostamos de relembrar, correto? Assim, a música não é fixada na memória apenas pela sua facilidade cognitiva, mas também porque carrega junto a ela outra série de elementos que agregam um “peso” marcante em nossa seleção de memórias. Para comprovar a verdade desse fato, podemos dizer que quase todos nós temos uma música que nos lembre o nosso primeiro amor, ou uma música que nos faça lembrar da nossa infância. Mas quem de nós lembra o hit do verão de 2005? Provavelmente se as duas músicas forem tocadas, lembraremos automaticamente, tal como um reflexo de nossa memória, mas sem esse estímulo externo, qual das duas nos vêm mais facilmente?
Chegamos então a um outro componente importante sobre como as músicas conseguem, de uma maneira geral, ser impregnadas em nossa memória e lá permanecerem quase eternamente. Há, de fato, um componente cognitivo que facilita esse processo, mas são principalmente os sentimentos despertados com a música que nos faz fixar essas melodias. Do mesmo modo, em menor intensidade, ocorre com nossas memórias de forma geral. A nostalgia é um ótimo exemplo desse fenômeno. Acabamos mergulhados em lembranças do passado somente pela afetividade que estes momentos nos causam e, na maioria das vezes, lembramos mais das emoções que foram vividas naquela memória do que o acontecimento em si.
Há ainda outras explicações para o não esquecimento das músicas. Essa, talvez, seja a mais óbvia, mas que poucas vezes associamos: o fato de gostarmos de música. Sempre que gostamos de algo, tendemos a repetir esse prazer, correto? É por isso que voltamos em nossos restaurantes favoritos, que escolhemos um time de futebol e que sempre queremos um pedaço a mais de chocolate. Quando gostamos de algo, tendemos a repetir esse prazer; e a repetição, como sabemos, leva à memorização. Dificilmente esqueceremos de como fazer nossas tarefas diárias como escovar os dentes, tomar banho e realizar outras ações do nosso dia a dia. Isso não se dá pelo fato de serem tarefas simples, mas sim por repeti-las todos os dias. Quando levamos esse mesmo raciocínio para o campo da música, fica fácil entender o porquê de não esquecermos delas. Normalmente ao gostarmos de uma música, nós a escutamos diversas vezes, por vezes uma dezena de repetições por dia ao longo de alguns meses. Como esquecer de algo que foi tão estimulado, ainda mais quando está diretamente relacionado com o que gostamos e nos causa um prazer? Essa série de reforços positivos fazem com que nosso cérebro interprete a música em si como algo fundamental e, por isso, acabamos nunca esquecendo-a, mesmo que passemos décadas sem escutá-la.
Como podemos perceber, a música tem uma forte presença em nossa memória e entra em nossa mente por diversos caminhos. Seja pelo gosto pessoal, pela afetividade ou mesmo pela própria mecânica da cognição, ela mantém-se dentro do nosso cérebro por muito tempo. Talvez por isso diversos filósofos da antiguidade recomendavam um certo cuidado com as músicas que deveriam ser consumidas pelas pessoas. Já sabemos que certos tipos de música são capazes de nos colocar em estados emocionais mais eufóricos ou melancólicos, e isso, a depender da conjuntura formada em determinado momento, pode ser danoso à nossa saúde psíquica e até mesmo física. Se estamos tristes pelo fim de um relacionamento, por exemplo, e colocamos músicas que remetem à dor e solidão, como esperar que melhoremos desta condição emocional? De igual modo, se grande parte das músicas que consumimos fala sobre temas puramente instintivos, de cunho violento ou sexual, o que esperar dos nossos pensamentos quando levados para essas zonas mais baixas da consciência?
É fundamental lembrarmos que a arte – e naturalmente a música – é o alimento da alma. Devemos nos perguntar se estamos oferecendo os melhores nutrientes para nossa vida interior ou dando qualquer tipo de alimento e esperando que nossa alma se desenvolva com esplendor. Destacamos essa perspectiva, pois não basta apenas entender através de explicações racionais como a música afeta nossa psique e faz suas marcas na identidade pessoal de cada indivíduo, mas também perceber que devemos utilizar a música mais como uma ferramenta de evolução do que apenas um prazer. Ou seja, podemos utilizar a harmonia gerada em belas canções para observarmos a própria harmonia interna que pode ser despertada em nós e elevarmos nossa consciência para as mais altas zonas do nosso Ser.
Além disso, para finalizar, Platão, filósofo grego do século V a.C., expressava sua preocupação com a música ao dizer que ela deveria ser uma componente fundamental no processo educacional, pois educaria nossa alma a reconhecer os mais belos estados de consciência e expressões da natureza. Que façamos, portanto, da música um poderoso instrumento de formação individual, visto sua grande capacidade de acessar nossa memória e marcar profundamente nossas experiências.