“Eu me levanto, entro no chuveiro, tomo o café da manhã. Leio o jornal, escovo os dentes. Se tiver telefonemas a dar, telefono. Pego uma caneca de café. Calço minhas botas da sorte que uso para trabalhar e amarro os cadarços da sorte que minha sobrinha Meredith me deu. Dirijo-me ao meu escritório, ligo o computador. Meu moletom da sorte, de capuz, está dobrado sobre a cadeira, com o talismã da sorte que comprei de uma cigana em Saintes Maries de la Mer pelo equivalente a apenas oito dólares, e minha etiqueta da sorte com o nome LARGO, que veio de um sonho que tive uma vez. Coloco tudo. Faço minha oração, que é a ‘Invocação da Musa’, da Odisseia de Homero, tradução de T.E. Lawrence. São aproximadamente dez e meia agora. Sento-me e mergulho no trabalho. Quando começo a cometer erros de digitação, sei que estou ficando cansado. Passaram-se cerca de quatro horas. Cheguei ao ponto em que as respostas do corpo e da mente vão se reduzindo. Encerro o dia de trabalho. Quantas páginas produzi? Não importa. Serão boas? Nem sequer penso nisso. Tudo que conta é que cumpri minhas horas de trabalho e o fiz com toda a concentração. Tudo que importa é que, para este dia, eu superei a Resistência[…] O difícil não é escrever, o difícil é sentar-se para escrever.”
Este trecho foi extraído do livro “A guerra da arte”, do autor americano Steven Pressfield. Nesse livro Pressfield relata a guerra diária que ele tem que travar consigo mesmo para conseguir produzir como escritor. E o mais interessante é que a dificuldade não é contra a imaginação, a falta de ideias ou de criatividade, a luta é contra romper a inércia de ir trabalhar. Ou seja, uma luta em nome da disciplina, também chamada pelo autor de resistência.
Costumamos pensar que uma pessoa disciplinada é aquela que em todos os momentos está ganhando e conquistando algo, mas, na verdade, a disciplina vem da nossa capacidade de se manter fiel ao que nos comprometemos.
Por exemplo: Todo início de ano fazemos uma série de compromissos, não é verdade? Nos comprometemos com nossos familiares em prol de uma convivência mais harmônica, nos comprometemos com nossos amigos e sócios para aumentar nossas aventuras e lucros e também nos comprometemos com nós mesmos. Pagamos a academia, iniciamos uma nova dieta, começamos a cultivar novos e bons hábitos, correto? Mas por que todos os anos fazemos essas mesmas promessas? A resposta é simples: porque não a cumprimos ao longo do ano. De fato, quando nossa motivação acaba – geralmente após a primeira quinzena do mês – também abrimos mão dos nossos compromissos e voltamos ao velho estilo de vida que levamos ao longo de toda a existência.
Como podemos mudar isso? A chave está na disciplina. Diferente da motivação, que usamos como um motor para fazer aquilo que gostamos ou que no momento estamos desejando, a disciplina está intimamente ligada com o dever. Uma pessoa disciplinada não faz apenas o que gosta, mas faz aquilo que se comprometeu a fazer, independente das circunstâncias. A disciplina, nesse aspecto, guarda uma relação com tudo que se repete, mas que não necessariamente tem a ver com a nossa rotina. Quando falamos em rotina, é comum entendê-la como um processo mecânico, sem vida, que geralmente nos tira o ânimo só de pensar. A disciplina, por outro lado, tem como característica a realização de uma atividade repetitivamente, mas com consciência de finalidade. Ou seja, somos disciplinados porque queremos atingir um objetivo.
No caso da academia, por exemplo, nosso objetivo pode ser cultivar uma boa saúde, ganhar músculos e ter mais potência física. Por não perder esse objetivo de vista é que conseguimos, através da disciplina, realizá-lo. Portanto, é preciso deixar claro que a motivação é um excelente início, mas somente a disciplina nos levará ao topo. Como apontado por Steven Pressfield no trecho que destacamos, é importante que mesmo nos dias ruins, faça chuva ou faça sol, que façamos aquilo com que nos comprometemos. A disciplina é filha da constância e não tem como obter uma sem a outra.
Outro ponto de destaque é que só realizaremos grandes feitos a partir da realização dos pequenos feitos. Ir um dia na academia não condicionará o seu corpo, assim como realizar corretamente a dieta apenas uma vez não ajudará na sua saúde. Para conquistar essas grandes metas, é fundamental nos mantermos disciplinados. Essa mesma lógica serve para outros aspectos da vida, seja no seu trabalho, nas suas relações e até mesmo na sua vida espiritual. Se não cultivarmos com disciplina os valores que almejamos no mundo e na nossa própria experiência, eles jamais serão vistos.
Dito isso, por que ainda é tão difícil sermos disciplinados? E quando encontramos com alguém que possui essa virtude, por que não conseguimos aceitar que ela realmente tem essa característica? Vamos pensar em mais um exemplo. Em geral, o que falamos quando vemos alguém no “topo” que é bem-sucedido em uma carreira, ou que foi promovido a um cargo-chave dentro do trabalho, ou que é um amigo que persegue há anos um sonho? É comum que o nosso primeiro pensamento seja algo como “foi questão de sorte”, ou “é porque ele é querido pelo chefe”, ou outras “desculpas” que usamos para justificar o sucesso alheio. Mas será mesmo que as conquistas dessas pessoas são frutos do acaso ou do gosto pessoal de um chefe? Sabemos que não. Costumamos, quando fazemos esses julgamentos rápidos, esquecer o esforço e dedicação, muitas vezes ao cabo de anos, que essas pessoas tiveram que realizar para chegar no patamar que estão hoje. Fazemos esse mesmo tipo de julgamento com atletas que, de forma quase arbitrária, julgamos que “qualquer um poderia fazer o que ele faz”. Esquecemos, porém, dos anos de treinamento, da dedicação diária com o esporte e demais fatores, físicos e psicológicos, que o levaram a conquistar o reconhecimento como um grande atleta.
O que queremos dizer, em poucas palavras, é que não associamos a quantidade de vezes que essas pessoas tiveram que persistir – com resultados ou não – com o alcance de seus objetivos.
A disciplina não é simplesmente plantar a semente e esperar ela florescer, mas sim regá-la todos os dias. Por isso, a disciplina é uma virtude, e manter essa forma de ação, com ritmo, persistência, em nome daquilo com que você se comprometeu, lhe ajuda a se tornar um ser humano melhor. Resumindo, a disciplina tem o poder de transformar o caráter de uma pessoa, pois caráter, em sua definição mais ampla, nada mais é do que “aprender a fazer o que deve ser feito, independente dos benefícios e gostos pessoais”. Uma pessoa disciplinada provavelmente não fica feliz ao acordar cedo todos os dias, ao se alimentar de forma restrita e realizar uma série de compromissos; porém, sabe de sua importância e o faz. O seu gosto pessoal, os seus caprichos não são capazes de tirar o seu foco.
Por fim, deixamos como indicação o vídeo abaixo. Nele, observe como a disciplina transformou a postura do personagem. O exercício de uma virtude favorece que outras virtudes também floresçam, nos tornando cada vez melhores. Por isso, nosso jovenzinho passa de uma vida despreocupada e irresponsável à vida de um homem maduro, com conquistas e visão mais profunda da vida.