Vamos fazer um exercício de memória: lembra quando você estava no ensino fundamental e seu professor de matemática desenhava duas retas no quadro? Uma vertical e outra horizontal, interceptando-se em um ponto e formando entre si um ângulo de 90 graus? Nesse plano, é possível traçar o gráfico de uma reta de uma função de primeiro grau ou de uma parábola de uma função de segundo grau. Em geral, nos primeiros contatos com essas ideias, nos perguntamos: “quem inventou isso?”, “Por que foi criado?”, “Qual a necessidade de aprendermos isso?”
Quem primeiro formulou esse método foi o filósofo, físico e matemático francês René Descartes, que, há cerca de três séculos, escreveu um livro chamado o Discurso do Método. Em um de seus apêndices, apresentou um novo jeito de olhar para a geometria, que passou a ser chamado de plano cartesiano, em sua homenagem. Graças a isso, é possível visualizar em gráficos os padrões de batimentos cardíacos, a curva de mortes decorrentes de uma pandemia, a aproximação de um abalo sísmico, entre outras milhares de aplicações que alcançam fenômenos meteorológicos, populacionais, biofísicos, econômicos etc. Dizem que o sonho de Descartes era matematizar tudo o que existe, a ponto de tornar todos os eventos previsíveis. Inclusive esse é o paradigma da modernidade. A perspectiva da mentalidade moderna para a natureza é baseada na busca de certezas, de exatidão em relação à natureza a fim de dominá-la.
Curiosamente, a marcha do cartesianismo, apesar de ter avançado tanto nesses mais de 300 anos, permitindo o avanço das físicas newtoniana, relativística e quântica, não conseguiu esse tão sonhado nível de domínio da natureza. Conquanto as invenções tecnológicas tenham avançado tanto nos campos da comunicação, da informação, do transporte e da medicina, todos os dias a sociedade humana amarga grandes catástrofes climáticas, sanitárias, econômicas etc, sem que para isso se tenha a exata previsão de suas dimensões.
A explicação para esse aparente paradoxo tem a ver com uma área do conhecimento científico que começou a ser estudada de forma muito embrionária por um matemático chamado Henri Poincaré, por volta do ano 1850. Nesse período, ele começou a buscar solução para uns tipos de equações chamadas equações diferenciais não lineares, que tentavam resolver matematicamente problemas decorrentes de um distúrbio inicial que acabava provocando resultados inesperados.
O avanço dos estudos de Poincaré, pelos cientistas que o sucederam em vida, resultou no que passou a ser conhecido como “Teoria do Caos”. Tudo o que ocorre na realidade é afetado por distúrbios, mas tem situações em que os efeitos decorrentes são proporcionais ao distúrbio, ou seja, se o distúrbio for mínimo, o resultado sofre uma alteração mínima; se o distúrbio for grande, o resultado é afetado na mesma exatidão. Esses são chamados de sistemas lineares, onde as alterações guardam uma lógica, uma proporção em relação ao distúrbio. Entretanto, há determinados fenômenos que não são proporcionais ao distúrbio, assim, um pequeno distúrbio pode levar a alterações pequenas ou a alterações estrondosas, de forma imprevisível. Esses são chamados de sistemas dinâmicos não lineares. É desses sistemas que se ocupa a teoria do caos. Um exemplo: se você colocar uma pequena folha seca em frente a um ventilador e depois conseguir traçar em um plano cartesiano a curva construída pela trajetória dessa folha, afetada pela força da ventilação, e se repetir o experimento com outra folha e com outra folha, vai observar que as curvas das trajetórias são extremamente diferentes, pois os distúrbios que estão afetando cada folha desencadeiam efeitos muito difíceis de serem previstos ou padronizados. Esse é um sistema não linear. É daí que vem a expressão “efeito borboleta”.
A forma geométrica resultante da formação das nuvens no céu, por exemplo, depende de inúmeros fatores: calor, pressão, evaporação, ventos, tempo, clima, entre outros. Isso poderia levar alguém a afirmar, desavisadamente, que a forma das nuvens é aleatória, mas se todos os fatores incidentes fossem conhecidos, inclusive os distúrbios incidentes e a correlação dos efeitos instáveis decorrentes desses distúrbios, seria possível predeterminar a forma que ao final a nuvem chegaria. Assim, o que se chama de caos é, na verdade, resultados impossíveis de serem calculados, não por serem incalculáveis, mas por não conhecermos as variáveis envolvidas.
Se conhecemos o caos, podemos ordená-lo. As grandes tradições da humanidade apresentam a ordem como algo que surge de dentro do caos. No livro o Banquete, de Platão, em que os maiores sábios de Atenas discursam sobre o amor, o primeiro a discursar, Fedro, começa dizendo que, antes que houvesse o amor, existia o Caos e é da união entre o Caos e Gaia, ou a Terra, que surge Eros, o amor, como representação da ordem e da beleza. Já as narrativas da criação no Gênesis, do Velho Testamento da tradição judaico-cristã, mostra o início de tudo como o Caos: “(…) A Terra estava sem forma e vazia e havia trevas sobre a face do abismo; e o Espírito de Deus se movia sobre a face das águas.” No mesmo sentido, a cosmovisão das tradições africanas descrevem o começo do Ayé, ou do mundo manifesto, como um lugar desabitado, vazio, onde apenas os Orixás fluíam sobre a terra através da força dos ventos, do movimento das águas e do calor do fogo. O caos nas tradições aparecem como aquilo que antecede o cosmos, ou a ordem. O que a teoria do caos nos mostra é a grande complexidade que há no caminho do caos ao cosmos e não a impossibilidade da ordem.
Podemos olhar para o Universo e nesse movimento de caos e cosmos aprender lições profundas para o nosso exercício de vida. Quando as coisas estão muito caóticas no emaranhado da existência é porque há uma ordem em potencial que precisa ser extraída dali, como um escultor que diante de uma pedra extrai uma obra de arte, a exemplo de Michelangelo que de uma pedra bruta extraiu uma das mais belas esculturas da humanidade, o Davi. Mas, da mesma forma que as equações de sistemas dinâmicos não lineares guardam um cálculo penoso de resolução, a arte de transformar caos em ordem em nossas vidas também não é fácil. A ordenação do corpo, da psique e da mente demandam muito esforço, mas o plasmar da ordem não tem preço. Que possamos então, dentro do caos em nossas vidas, extrair a ordem, beleza e amor por detrás dele.