Todos nós sabemos o que é um herói, mas o filme Sully: O Herói do Rio Hudson nos lembra que o verdadeiro heroísmo vai muito além dos superpoderes das histórias em quadrinhos, revelando-se também em pessoas comuns diante de escolhas extraordinárias. Porém, esses heróis que acompanhamos na TV desde pequeno são, na verdade, fruto de uma ideia tão antiga quanto a própria humanidade.
Em todas as civilizações antigas, a figura do herói ocupou um lugar central nos mitos, lendas e memórias coletivas. Desde os mitos da Grécia antiga até os super-heróis das telas de cinema, o herói representa não apenas alguém que realiza feitos grandiosos, mas um espelho de nossas próprias aspirações de coragem, altruísmo e humanidade.

No entanto, em um mundo marcado por crises, desconfianças e mudanças, a ideia de heroísmo parece ter perdido força. Hoje vivemos um grau de inversão de valores profunda e muitas vezes percebemos que o “modelo” a ser copiado passa a ser o do antagonista, o do vilão e o daquele que, via de regra, não está preocupado em ajudar a humanidade, mas apenas a si mesmo. Todos os dias somos bombardeados por mensagens deste tipo, no qual reafirma o valor individual e egoísta do ser humano.
Frente a este cenário, em que líderes são esquecidos, instituições são desafiadas e referências se dissolvem diante da velocidade das informações, surge um caso que abrilhanta a alma humana e que renova nossa fé na humanidade. Estamos falando da história de Chesley “Sully” Sullenberger, um piloto que conseguiu salvar centenas de pessoas ao pousar seu avião no rio Hudson.
O filme “Sully”: uma obra de arte que homenageia a vida
A história de Sully é, de fato, digna de um roteiro de cinema, e por isso Hollywood decidiu levar sua narrativa para as grandes telas do mundo. Assim nascia o filme “Sully: O herói do rio Hudson”, dirigido por Clint Eastwood e protagonizado por Tom Hanks. O longa resgata o momento em que o piloto, diante de um desastre iminente, fez uma escolha que salvou 155 vidas. Não apenas isso: fez essa escolha em segundos, sob pressão, em um contexto onde qualquer erro seria fatal.
Apesar do ato de heroísmo, o filme tem também um tom investigativo e burocrático. A questão central é saber se a decisão de Sully foi a mais acertada ou se, no calor do momento, tal decisão foi fruto de uma temeridade. Assim, mesmo como um herói, o piloto enfrenta investigações rigorosas que questionavam se sua decisão havia sido correta. Simuladores indicavam que talvez fosse possível voltar ao LaGuardia, o aeroporto mais próximo. Porém, o grande mérito do filme está em nos fazer refletir: será que números e cálculos podem substituir a intuição e a experiência humana em momentos de vida ou morte?
Tom Hanks, um ator frequentemente associado a personagens éticos e compassivos, encarna Sully com uma profundidade que vai além da reprodução do fato histórico. Seu olhar carregado de dúvidas, sua postura calma e sua voz firme transmitem não apenas a imagem de um piloto, mas também a de um homem que, apesar de ser considerado herói pelo mundo, se vê assombrado pela possibilidade de ter falhado.
Esse aspecto é fundamental para entendermos bem o que queremos falar sobre heroísmo neste caso: o herói, antes de tudo, é humano. Isso significa, em poucas palavras, que sempre haverá dúvidas, medos, incertezas e outra série de fatores que colocam em dúvida nossa ação no mundo. É nesse momento que pode nascer um herói do cotidiano que, apesar de todos esses fatores, decide atuar com seus valores e em benefício do Todo.
A história real por trás do filme
Entretanto, antes de refletirmos sobre o que é ser um herói nos tempos modernos, devemos conhecer os fatos desta história. Assim, voltemos para 15 de janeiro de 2009. Um Airbus A320 da US Airways decolou do aeroporto LaGuardia, em Nova York, com destino a Charlotte, na Carolina do Norte, porém, poucos minutos após a decolagem, a aeronave colidiu com um bando de gansos canadenses, provocando uma falha dupla nos motores. Devido a esse problema, o avião perdeu altitude rapidamente e parecia condenado a um desastre.
Foi nesse instante que a experiência e a frieza do comandante Chesley “Sully” Sullenberger entraram em cena. Em apenas 208 segundos, ele avaliou a situação, descartou a possibilidade de retornar ao LaGuardia, ou alcançar outro aeroporto, e tomou a decisão mais ousada dentre todas: pousar o avião nas águas geladas do rio Hudson.

O impacto poderia ter sido devastador, visto a velocidade com que a aeronave estava. Porém, graças à perícia do piloto e ao trabalho coordenado da tripulação, os 155 passageiros e tripulantes sobreviveram e o que poderia ter sido uma tragédia se transformou em um verdadeiro milagre. Não por acaso, os noticiários da época chamavam o episódio de o “Milagre do Hudson”.
Não é preciso explicar o porquê de Sully ser visto como um herói neste momento da vida, afinal, o fato de conseguir proteger a vida de tantas pessoas em uma situação crítica é, por si só, o atestado do seu heroísmo. Devemos, entretanto, entender como ele foi capaz disso. O primeiro e mais óbvio motivo é o fato dele ter sido alguém dedicado à sua profissão desde sempre, tornando-o mais do que um profissional, mas um verdadeiro amante da aviação. Sua vida inteira foi dedicada a isso, desde o estudo objetivo até a preparação para situações de risco como a que viveu. Com décadas de experiência, ele incorporava valores de disciplina, responsabilidade e dedicação que se revelaram cruciais naquele dia fatídico.
É importante destacarmos esse fato, pois não podemos confundir heroísmo com temeridade. Agir sem ter competência para proteger a si mesmo ou aos outros pode, na verdade, colocar mais pessoas em risco e prejudicar ainda mais uma situação que já é complicada por si só. Assim, Sully só foi capaz de salvar seus passageiros devido a anos de experiência e treinamento, tal como um médico ou agente de segurança pública é capaz de salvar vidas graças aos seus conhecimentos e treinamentos. Um herói, portanto, não nasce “do nada”, não é apenas colocar-se na frente do perigo, mas também ter as ferramentas e o saber necessário para ajudar o todo.
Dito isso, podemos entender que heróis não nascem de um instante isolado. Eles se constroem ao longo da vida, cultivando virtudes e práticas que, no momento certo, permitem agir de maneira extraordinária.
O heroísmo em questão: como ser herói nos dias atuais?
Um dos aspectos mais impressionantes do episódio do voo 1549 é a rapidez com que Sully precisou tomar sua decisão: pouco mais de três minutos entre a perda de potência dos motores e o pouso no rio Hudson. Nesse intervalo, cada segundo contava, cada avaliação poderia significar a diferença entre a vida e a morte. Ao contrário das imagens que temos do herói em narrativas clássicas, que é o guerreiro que luta em batalhas épicas ou o super-herói que derrota vilões, Sully não tinha tempo para grandes gestos ou discursos. Seu heroísmo se manifestou na forma de raciocínio rápido, sangue frio e confiança em sua própria experiência.

Esse é o ponto central acerca deste tema: o heroísmo não se resume a atos de bravura física, mas também à capacidade de agir corretamente sob pressão, mesmo quando tudo parece perdido. Para ser herói, não precisamos enfrentar exércitos ou destruir um reino, mas sim ser capaz de ajudar, da maneira que for necessária, aos outros com eficácia. Muitas vezes, uma série de fatores internos nos impede de viver essa saga heroica no cotidiano: o medo, as travas sociais e até mesmo a insegurança de ser capaz ou não de realizar pequenos gestos heroicos.
Uma das cenas mais marcantes do filme deixa muito claro o que queremos explicar. A cena mostra o contraste entre o pânico natural dos passageiros, que estão naquele momento se deparando com o risco de perderem suas vidas, e a calma de Sully. Enquanto dentro da cabine as pessoas choravam, rezavam e se preparavam para o pior, o comandante mantinha a voz firme, dando instruções claras e precisas para a sua equipe.
Essa serenidade é, muitas vezes, o que garante ao herói clareza em suas ações. É preciso destacar que isso não implica dizer que não há medo naquele momento, mas sim que o herói é aquele capaz de, apesar do medo, manter-se centrado em seu objetivo. Sully sabia que, ao manter a calma, transmitia confiança não apenas à tripulação, mas também a si mesmo. Esse autocontrole é uma forma de liderança que inspira e mostra que heróis não são apenas aqueles que se destacam em grandes feitos, mas aqueles que se mantêm firmes quando todos ao redor estão prestes a desmoronar.
Para além dessa questão, o que Sully fez foi extraordinário, isso é inegável. Entretanto, a essência de seu gesto pode ser encontrada também em pessoas comuns e em situações do cotidiano. Por exemplo: Enfermeiros que enfrentam epidemias, bombeiros que arriscam a própria vida para salvar desconhecidos, professores que se dedicam além do esperado para transformar vidas, ajudar alguém em uma dificuldade. Todos eles representam o mesmo espírito heroico, pois o herói, em última instância, tem uma grande virtude chamada “Sacrifício”.
Ao contrário do que o senso comum nos faz imaginar, sacrifício é, de maneira objetiva, um “trabalho dedicado ao sagrado”, ou seja, um sacro ofício. Não pensemos apenas no sentido vulgar do termo, que muitas vezes associa sacrifício ao fato de termos que doar nossa energia para algo. De fato, quando exercitamos o sacrifício, estamos depositando nossa energia, tempo e demais atributos em benefício do Todo, da humanidade, do coletivo. Assim, todo herói tem, em sua essência, essa virtude.
Nesse sentido, ao destacar a história de Sully, não queremos somente enfatizar um acontecimento singular, mas também propagar a ideia de que existem heróis invisíveis ao nosso redor, pessoas que, sem holofotes, fazem escolhas corajosas e altruístas. Esse tipo de heroísmo, muitas vezes sem reconhecimento ou aplausos, é ainda mais necessário em um mundo onde o individualismo parece prevalecer. Ser herói nos dias atuais não é, necessariamente, salvar 155 pessoas em um único ato. É, muitas vezes, salvar uma única pessoa todos os dias.
Sendo assim, no trabalho, o heroísmo pode estar em quem denuncia injustiças, em quem age com integridade mesmo quando é mais fácil se omitir, em quem escolhe a colaboração em vez da competição. Já na vida comunitária, o herói é aquele que organiza campanhas de solidariedade, que doa tempo, energia e recursos para causas sociais, atos que, mesmo sem reconhecimento público, demonstram como a coragem e a empatia, quando vividos corretamente, são princípios norteadores da vida.
Sully e a filosofia do dever
Saindo um pouco do campo do heroísmo e adentrando a filosofia, podemos analisar o gesto de Sully sob a ótica filosófica e aproximá-lo do pensamento de Immanuel Kant. Para o filósofo alemão, a moralidade de uma ação não depende apenas do resultado, mas da intenção guiada pelo dever. Isso significa dizer, de forma sintética, que não vale apenas o que foi feito, mas também a intenção pela qual foi feita.
Colocando em exemplos práticos: quando realizamos nossas tarefas comuns, estamos imbuídos do sentimento de dever ou simplesmente fazemos as atividades “por obrigação”? Ao trabalhar, fazemos nosso serviço pensando no valor das nossas ações ou simplesmente cumprimos tarefas em troca de um salário? Tais perguntas são importantes para compreender a noção de dever, que muitas vezes é confundida com a ideia de “obrigação”.

Dever é, no fundo, aquilo que nos comprometemos a fazer e ser. Assim, ao entrar em uma sala de aula, por exemplo, temos o dever de sermos alunos ou professores, a depender de nossa posição naquele momento. Nossa moral estará alinhada quando conseguirmos viver a ideia do aluno ou do professor da melhor maneira possível, representando seus valores e ações em harmonia e não fazendo apenas “por fazer”.
Nesse sentido, Sully não pensou em fama, reconhecimento ou glória. Sua decisão foi guiada pelo dever de proteger vidas humanas, ainda que isso significasse arriscar a própria vida. Essa postura é um exemplo prático do imperativo categórico kantiano: agir de tal forma que a ação possa ser universalizada como um princípio moral. Isso nos mostra que o heroísmo genuíno não busca aplausos, mas é consequência natural de uma consciência ética sólida.
O legado de Sully como inspiração
Voltando ao aspecto histórico, o pouso no rio Hudson é lembrado como um dos maiores feitos de pilotagem da história, mas também como uma prova de que a humanidade ainda é capaz de atos grandiosos em meio ao caos. Mais do que celebrar um homem, o filme e a história de Sully nos convidam a celebrar valores humanos que parecem escassos, mas que permanecem vivos quando alguém tem a coragem de colocá-los em prática.
Nos filmes e na mitologia, estamos acostumados a ver heróis como figuras quase sobre-humanas. Super-homens que voam, guerreiros que vencem batalhas impossíveis, agentes secretos que sempre têm um plano infalível. Esses personagens fascinam porque despertam nossa imaginação, mas muitas vezes estão distantes da realidade. Olhamos para eles e pensamos: “se eu tivesse superpoderes, poderia ser também um herói, mas isso é só ficção. Heróis não existem”.
Sully, por outro lado, é um herói palpável. Ele não tinha superpoderes, não carregava armas sofisticadas, não possuía aliados místicos. O que tinha era preparo, experiência, disciplina e um valioso senso de humanidade. Seu feito nos lembra que a verdadeira grandeza não exige dons sobrenaturais, mas sim escolhas éticas e coragem no momento certo. Será que é tão difícil viver essas ideias no mundo atual? É evidente que não.
Diante disso, o que cabe a nós fazer? Apenas colocar o heroísmo de Sully como mais um exemplo de humanidade, ou fazer de nós mesmos heróis do cotidiano? Essa pode parecer uma resposta “fácil” num primeiro momento, porém a prática dessas atitudes é realmente desafiadora em nosso dia a dia. É preciso combater, antes de tudo, nossa tendência ao egoísmo e passar a preocupar-se com os outros, não apenas no seu aspecto físico, mas principalmente no psicológico. Isso significa, a rigor, aprender a tratar bem e ajudar a sanar as dores de quem está ao nosso redor, sendo um fator de soma na vida de todos que nos tocam.

Se assim o fizermos, perceberemos que ser um herói é mais comum do que se imagina. Trata-se, de fato, de colocarmos nossas virtudes no campo da vida e usá-las de modo irrestrito. Ao longo da história, os heróis sempre cumpriram uma função social essencial, que foi a de mostrar que a humanidade é capaz de ir além de si mesma. Nos dias atuais, cada um de nós pode continuar a cumprir com esse mesmo legado: de sermos exemplos para quem está ao nosso redor e mostrar que a humanidade é capaz de operar verdadeiras mudanças na sociedade.
Sully é o melhor exemplo de herói moderno que podemos imaginar, apesar de existirem tantos outros heróis anônimos pelas ruas de nossas cidades. Ele não foi perfeito, não deixou de ter dúvidas ou medos, mas justamente por isso é tão inspirador. Isso aconteceu porque ele provou que a grandeza está ao alcance de pessoas comuns, desde que cultivem valores sólidos e estejam dispostas a agir quando o momento exigir.
Ao terminar o filme “Sully: o herói do rio Hudson”, somos provocados a refletir sobre nossa própria vida. Quantas vezes temos a chance de ser heróis e não percebemos? Quantas vezes podemos escolher a coragem em vez da indiferença, a responsabilidade em vez da omissão, a solidariedade em vez do egoísmo?
Visto todos esses aspectos, recomendamos o filme “Sully” por ele ensinar que o heroísmo não é privilégio de poucos, mas uma possibilidade para todos. Somos capazes de vencer o cotidiano e derrotar nossos medos, não por vaidade ou ego, mas sim para poder apresentar ao mundo uma solução perante os desafios que vivemos. O longa, portanto, nos convida a olhar para nossos dias com mais consciência e a perceber que cada gesto importa, por menor e mais “insignificante” que seja, que cada decisão faz diferença na sua vida e na de tantas outras pessoas. Enfim, sempre precisamos decidir o que fazer com as possibilidades que temos, e essa escolha se resume, muitas vezes, em ajudar ou não a quem está ao nosso alcance.
Por fim, o herói não é apenas aquele que pousa um avião em um rio, mas também aquele que escolhe o certo quando é mais fácil escolher o errado. O herói é quem se levanta diante da adversidade, mesmo sentindo medo. O herói é, no fundo, quem acredita que a vida só tem sentido quando vivida com coragem, compaixão e humanidade. E talvez seja essa a maior lição de Sully: lembrar-nos que o herói que o mundo precisa pode estar dentro de cada um de nós.
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