Todos nós temos Guardiões. Nossos pais, desde o nosso nascimento, são exemplos vivos disso. Proteger a nós, em grande medida, é uma das principais tarefas desses incríveis homens e mulheres que amamos tanto. Porém, em um nível simbólico, nossa Cultura está permeada de protetores invisíveis. Para o Catolicismo, por exemplo, há os Anjos da Guarda que, de acordo com a doutrina, nos protegem dos perigos e estão sempre ao nosso lado. Nas Culturas de Matrizes Africanas, por outro lado, existem os Orixás que protegem a nós, os seus filhos.
Desse modo, não nos é totalmente estranha a ideia de que em diversos planos existem sempre seres ou pessoas que nos ajudam em nossa caminhada. Esses silenciosos vigilantes nos mantêm a salvo dos perigos do Mundo, mesmo que em diversos casos não tenham como nos blindar do sofrimento ou da dor. Ainda que não possamos enxergar nossos Anjos da Guarda, muito menos outros seres que as Antigas Civilizações consideraram como protetores, devemos sempre lembrar que essas Divindades não representam, necessariamente, aspectos físicos do cosmos, mas sim ideias presentes na Natureza.
Partindo dessa perspectiva, hoje falaremos um pouco sobre alguns Guardiões da Cultura Japonesa, os Shitennos. Sempre vestidos com armaduras e com rostos pouco amigáveis, esses vigilantes do Monte Meru (a morada dos Deuses na Tradição Japonesa) estão associados a diferentes atributos e estações da Natureza, como elementos primordiais, e aos quatro pontos cardeais. sendo assim, esses místicos vigilantes representam forças do Universo e não apenas os Guardiões desse local sagrado. Os Shitennos também estão diretamente associados ao Buda, sendo sua Guarda pessoal.
Mas quem são, de fato, esses poderosos protetores? Vamos por partes para conhecer cada um. Comecemos pelo Guardião do leste. Seu nome é Jikokuten e ele está representado como um homem usando armadura e empunhando espadas e lanças. Sua cara é, definitivamente, intimidadora para que evite a entrada de maus espíritos. Ele também está associado à primavera e o seu elemento é a água. Apesar de feroz, Jikokuten também possui um alaúde e quando o toca, coloca a todos em um estado meditativo. Essa dualidade na postura do Guardião do leste é muito interessante e nos revela, de maneira sutil, uma característica não apenas da Cultura Japonesa, mas de uma ideia presente na Natureza. A postura agressiva de Jikokuten cumpre um propósito que é o de manter a ordem, porém, esse estado não se consegue apenas quando Você intimida o outro, mas também pode ser fruto de uma Harmonia interna entre todos os elementos da Natureza.
Assim, não é apenas através da violência que podemos manter o que não desejamos fora do nosso alcance, mas também por meios mais diplomáticos. Observando essa característica na Natureza, podemos perceber que no Mundo dos animais, por exemplo, os instintos os levam, naturalmente, a uma postura agressiva. Porém, há diversas situações em que os animais não precisam entrar em um combate físico, mantendo assim uma convivência Harmônica. A Biologia chama esse fenômeno de mutualismo.
Assim, Jikokuten é o Guardião capaz de afastar todos os males pelos mais diferentes meios. Mas ele não é o único nessa missão de manter os maus espíritos afastados do Monte Meru e de Buda. Falaremos agora de Zochoten, o Guardião do norte.
Conhecido como “O senhor do crescimento espiritual”, Zochoten está associado ao verão e ao elemento fogo. Ele, assim como Jikokuten, é representado como um homem vestindo armaduras pesadas e armas de guerra. Porém, seu aspecto mais simbólico está na sua capacidade de expansão. Essa característica envolve não apenas a função do Guardião do norte, mas também se relaciona com seus outros símbolos. O verão, como bem sabemos, é a estação do ano em que os dias são mais longos que as noites, sendo assim grande parte das 24h é banhada pela luz solar. O verão é associado com a Vida, com a expressão máxima da energia, tanto em relação ao planeta como a nós mesmos. Desse modo, Zochoten cresce não apenas fisicamente, mas também espiritualmente. E o seu crescimento proporciona a proteção de Buda.
Trazendo seu simbolismo para a Vida prática, uma maneira eficaz de nos protegermos, principalmente no campo emocional e mental, é expandirmos nossos horizontes e nos tornarmos maiores do que somos. Quando alguém nos ofende, por exemplo, o que fazemos? Em geral, a nossa tendência é retribuir a “Gentileza” de quem nos atacou. Ficamos com raiva, magoados e, gostemos ou não, acabamos revidando de forma desmedida tudo que nos foi lançado. Esse mecanismo de defesa é comum e natural, porém, não é a nossa única forma de nos protegermos. Quando conseguimos superar uma experiência que nos causa dor, somos capazes de suportá-la sem nos sentirmos magoados. Assim, aquela pessoa que tentou nos machucar percebe, com o tempo, que a estratégia já não mais funciona pois amadurecemos e expandimos nosso campo emocional.
Com as concepções ocorre o mesmo. Quando precisamos defender com unhas e dentes nossos pontos de vista é um sinal de que, no fundo, não nos convencemos ainda totalmente disso. Dessa maneira, essa brecha em nossas convicções nos causa dolorosas crises. Por outro lado, quando refletimos bem sobre um assunto e vivenciamos com profundidade uma ideia é muito difícil nos sentirmos mal, pois a certeza, mesmo que parcial, nos dá a tranquilidade necessária para seguirmos investigando. Desse modo, Zochoten nos apresenta a interessante relação entre a expansão, em seus mais distintos níveis, e a proteção.
O próximo Guardião é responsável pela direção oeste e está relacionado com o outono, seu nome é Komokuten. Ele representa a consciência e possui um terceiro olho em sua testa, capaz de ver tudo que ocorre pelo Mundo, inclusive as intenções malignas de quem se aproxima do sagrado monte. Sua vestimenta é similar aos dos outros Guardiões, além disso, a sua boca se mantém fechada e se mostra com um semblante sério. Uma diferença fundamental entre Komokuten e seus “companheiros” é de que ele não possui armas de guerra em suas mãos, mas sim papiro e tinta. O símbolo do Guardião do Oeste se mostra de maneira clara, como uma referência ao Intelecto e à Razão como um meio de proteção.
Para além disso, Komokuten tem como estação o outono, que está diretamente ligado à maturidade. Assim, apresenta-se a ideia de que o desenvolvimento da Razão (e essa clareza de consciência) só pode ser atingida a partir de uma maturidade espiritual, ou seja, aquela que é adquirida quando vivemos de maneira consciente nossas experiências. Basta pensarmos em nossa Vida e nos dilemas que enfrentamos. Pensemos, por exemplo, sobre a nossa infância. Nossos maiores problemas, provavelmente, envolviam ficar de castigo ou ter que estudar para uma prova bastante difícil. Hoje, ao olharmos com maturidade para essas experiências, podemos perceber que, em geral, não eram verdadeiros problemas. Essa visão mais clara a respeito das experiências se deu, naturalmente, pelo nosso distanciamento e crescimento, possibilitando perceber o que estava por trás do castigo ou da preguiça em estudar para a prova.
Desse modo, quando adquirimos uma visão clara dessas experiências, desenvolvemos nossa consciência e o correto uso da Razão. Não por acaso, o terceiro olho de Komokuten pode enxergar através do mal, ou seja, ele é capaz de ver a essência de tudo e assim saber discernir o que é verdadeiramente Bom do que não é.
Seguindo com os nossos Guardiões, vamos conhecer o último deles: Tamonten, o senhor do sul. Um dos seus atributos é a riqueza e sua estação é o inverno. Como sabemos, o inverno é comumente relacionado com a morte, uma vez que toda a Natureza aparentemente suspende suas atividades e aguardam pacientemente a chegada da primavera, renovando assim seu ciclo. É no inverno, por exemplo, que ursos hibernam e muitos pássaros migram para regiões mais quentes. Porém, o inverno não traz apenas uma conotação negativa, mas também representa a morte da matéria para a ascensão na Vida Espiritual.
Em diversas Tradições, portanto, o Senhor da Morte também era dotado de todas as riquezas do Mundo, pois ao chegar à Vida espiritual ali já residia qualquer fortuna que pudessem ter. Seguindo essa mesma linha, Tamonten domina as riquezas pela sua alta espiritualidade e onisciência e se torna aquele que consegue ouvir tudo que ocorre no Mundo.
Sendo assim, o Shitenno não apresenta apenas Divindades Guardiãs, mas cada uma em si representa os ciclos da Natureza e, em cada etapa, suas manifestações. Estas, em última análise, são a chave e as verdadeiras protetoras do Mundo espiritual, afinal só se pode chegar ao Monte Meru passando por esses eternos vigilantes. Desse modo, acima de todas as qualidades apresentadas pelos quatro Guardiões, a conclusão que podemos chegar é que a entrada para a morada celestial é resultado de uma Vida de expansão espiritual e pureza, não podendo nenhum Ser do Universo fugir dessa lei.
Trazendo para um aspecto mais cotidiano, podemos levar conosco a ideia de que podemos sempre nos manter vigilantes para que nenhum mal externo possa nos contaminar. No fundo, o Shitenno fala menos de Deuses e suas proteções Divinas e se mostra, tal como o símbolo, que é uma alegoria para a nossa própria maneira de nos vigiarmos internamente. Devemos, portanto, sempre refletir sobre nossos pensamentos, sentimentos e ações, pois para superar nossas limitações precisaremos expandir nossas capacidades, sejam elas físicas, psicológicas ou espirituais.
Sejamos, então, a força viva e encarnada desses símbolos da Cultura Japonesa e que possamos, assim como eles, proteger nosso templo interior de todo o mal.