Bem-vindos a mais um texto da série “Clássicos da Literatura”, onde exploramos obras atemporais que moldaram o pensamento humano, hoje, vamos mergulhar em A Divina Comédia, de Dante Alighieri, uma das maiores criações da literatura ocidental, que nos conduz do Inferno ao Paraíso em uma jornada única pela alma humana.
Entretanto, antes de entrarmos profundamente no nosso assunto, recomendamos fortemente aos leitores que ainda não conhecem a série que leiam nosso texto de introdução. Nele falamos sobre as ideias principais que guiam nossa análise e nossos objetivos nesse conjunto de textos. Para acessá-lo, clique aqui. Dito isso, agora vamos entender um pouco mais sobre uma das obras mais significativas da humanidade, que influencia gerações de escritores há mais de 7 séculos.

A Divina Comédia de Dante Alighieri é, sem dúvida, uma das maiores realizações da literatura ocidental. Escrita entre 1308 e 1321, esta obra transcende seu tempo e espaço, oferecendo uma profunda reflexão sobre a natureza humana, a justiça divina, o pecado, a redenção e a busca pela verdade. É, sem sombra de dúvidas, um livro de várias camadas e percepções, por isso desde já chamamos a atenção dos leitores para o fato de que não seria possível – nem é nossa pretensão – esgotar o tema e explicar os profundos detalhes contidos no livro. A bem da verdade, nosso grande objetivo é apresentar a narrativa aos leitores que, porventura, ainda não a conhecem, a fim de busquem mergulhar em suas páginas posteriormente.
Sendo assim, A Divina Comédia narra a jornada de um homem através do Inferno, Purgatório e Paraíso. Dante não apenas expõe a estrutura moral do universo medieval em que vivia, mas também projeta uma cosmovisão que ainda hoje desafia e inspira leitores ao redor do mundo.
Quem foi Dante Alighieri?
Não podemos, entretanto, entender uma obra sem antes conhecermos o seu autor. Dante Alighieri nasceu em Florença em 1265, numa Itália fragmentada por conflitos políticos, guerras entre cidades-estado e lutas internas entre facções rivais. Era uma época marcada pela disputa entre Guelfos e Gibelinos, partidos que apoiavam, respectivamente, o Papa e o Imperador. Dante inicialmente era um Guelfo, mas logo se alinhou aos Guelfos Brancos, mais moderados, e acabou sendo exilado de sua cidade natal por razões políticas.

Esse exílio foi uma das experiências mais traumáticas de sua vida e influenciou decisivamente sua obra. Sem jamais retornar a Florença, Dante escreveu A Divina Comédia longe de sua terra, mas com o olhar fixo nela: criticando seus líderes, lembrando seus cidadãos e lamentando sua decadência. Ao mesmo tempo, ele viajou por várias cortes italianas, onde encontrou patronos, estudiosos e a inspiração necessária para concluir sua obra-prima.
A vida de Dante foi também profundamente marcada por sua relação com Beatriz Portinari, mulher que morreu prematuramente, tendo ele a conhecido ainda jovem. Sua figura idealizada torna-se central na obra como símbolo de amor divino e guia espiritual.
Não por acaso, a obra de Dante não é apenas um tratado filosófico, muito menos apenas um livro de literatura, mas também uma obra inserida em aspectos políticos e que buscava, mesmo em sua época, influenciar as pessoas ao seu redor. Assim, se tornou uma obra viva e que transcendeu o aspecto literário, servindo ainda hoje como fonte histórica para entender as cidades-estado na península itálica do século XIV e a política medieval de sua época. Além disso, também é uma fonte interessante para conhecermos o imaginário cristão acerca da vida pós-morte.
O que é a “Divina Comédia”?
Dante bebeu de inúmeras fontes ao compor a Comédia, como as obras filosóficas de Aristóteles, os textos teológicos de Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, além da poesia de Virgílio e Ovídio. Isso nos mostra que, apesar de extremamente católico e devoto ao cristianismo, na sua formação intelectual houve uma forte influência da cultura e filosofia greco-romana. Não por acaso, a literatura de Dante é um marco para o início do renascimento cultural ocorrido na Europa, que usaria como elemento base e norteador o legado de gregos e romanos para compor uma nova cultura.

Nesse sentido, cada elemento da narrativa, figura mítica ou histórica cumpre uma função alegórica em sua cosmovisão profundamente cristã e humanista. A nível estrutural, a Divina Comédia está dividida em três grandes partes: Inferno, Purgatório e Paraíso. Cada uma composta por 33 cantos, com um canto introdutório, totalizando assim 100 cantos. Essa divisão não é arbitrária: o número 3 é central na obra, refletindo a Trindade Cristã. A estrutura reforça o simbolismo espiritual e filosófico que permeia toda a narrativa.
O movimento da narrativa é ascendente: parte-se das trevas do Inferno, passa-se pela purificação do Purgatório e chega-se à luz do Paraíso. Essa progressão é tanto geográfica quanto simbólica, refletindo a jornada da alma humana em busca de redenção. É importante entender que a escolha pela estrutura do livro feita por Dante não é aleatória, ela reflete uma ideia profunda na filosofia grega e, posteriormente, cristã: a da redenção humana. Ao descermos a nossa vida terrena, precisamos nos purificar para ganhar novamente nossa ascensão aos céus, ao paraíso. Assim, no mundo pós-vida, isso também ocorre e esses três estágios são uma forma de purificação da alma para entrar nos mistérios divinos.
Dito isso, o Inferno é, talvez, a parte mais conhecida de A Divina Comédia. Nele, Dante descreve nove círculos concêntricos, cada um reservado a diferentes tipos de pecado. Os círculos inferiores abrigam os pecadores mais graves, como os traidores, enquanto os círculos superiores recebem aqueles culpados de pecados de incontinência, como a luxúria e a gula. O local é sombrio, opressivo e marcado por castigos criativamente terríveis, cada um simbolicamente adequado ao pecado cometido. Por exemplo, os adivinhos, que tentam ver o futuro, são condenados a caminhar com a cabeça virada para trás.

Dentre os personagens que Dante encontra no Inferno estão figuras históricas e mitológicas, como Ulisses, Bruto, Júlio César, e o próprio Lúcifer, que jaz imóvel no centro gelado da Terra. É nesta parte da obra que Dante denuncia com mais veemência a corrupção da Igreja, a decadência moral da nobreza e o oportunismo político de seus contemporâneos. Assim, une o mito com a história e passa a usar seu livro como arma política para denunciar os abusos de sua época. Ainda assim, o Inferno mostra-se como um local diverso e organizado, no qual cada pecador pagará sua sentença de maneira justa, para que, após o esgotamento de suas energias, possa-se ascender para o próximo passo, o purgatório.
Virgílio, o grande poeta romano, é seu guia nessa etapa da jornada. Ele representa a razão e a sabedoria clássica que guia a alma daqueles perdidos neste mundo sombrio. Vale ressaltar que Virgílio, assim como outros grandes personagens do mundo clássico, vivem em um ponto chamado de “limbo”, em que vagam pelas sombras, sem sofrimentos ou castigos. Suas almas são puras, porém, segundo o próprio Dante, por não serem cristãos (afinal, viveram antes da vinda de Jesus Cristo), não podem entrar no paraíso, mas também não merecem ser castigados, pois viveram de maneira justa suas vidas.
Por conta de sua condição especial e de não estar ligado a nenhum dos círculos do Inferno, Virgílio pode guiar Dante pela escuridão do pecado, oferecendo explicações racionais e poéticas sobre o funcionamento da justiça divina.
Passado os círculos infernais, Dante chega ao Purgatório, que é representado como uma montanha em forma de cone, localizada do outro lado do mundo, sobre cujos patamares os penitentes sobem em direção ao Paraíso. A jornada aqui é marcada pelo esforço, arrependimento e desejo de purificação. A montanha é dividida em sete cornijas, cada uma correspondente a um dos sete pecados capitais: orgulho, inveja, ira, preguiça, avareza, gula e luxúria. Em cada nível, as almas cumprem penitências que purificam suas falhas morais.

O clima do Purgatório é de esperança e superação. Diferentemente do Inferno, onde os condenados precisam passar por uma série de castigos, aqui há luz, canto, oração e solidariedade entre as almas. É também nesta parte que a narrativa ganha profundidade filosófica e mística, explorando o livre-arbítrio e a graça divina. Virgílio continua como guia, mas sua jornada termina ao fim do Purgatório. Ele não pode conduzir Dante ao Paraíso, pois, como pagão, não conheceu a verdade cristã. A despedida de Virgílio é uma das cenas mais emocionantes da obra.
A última parte de A Divina Comédia é a mais complexa e elevada, tanto em estilo quanto em conteúdo. Aqui, Dante é guiado por Beatriz, símbolo da fé, da sabedoria divina e do amor puro. Juntos, eles atravessam os nove céus planetários da cosmologia medieval: Lua, Mercúrio, Vênus, Sol, Marte, Júpiter, Saturno, Firmamento das Estrelas Fixas e o Primeiro Motor. Cada céu é habitado por almas que brilharam em virtudes específicas: castidade, justiça, sabedoria, coragem. Há também diálogos profundos com santos, como Tomás de Aquino, São Pedro, São João e Bernardo de Claraval, que ajudam Dante a compreender os mistérios da fé e da salvação.
Um fato curioso e importante a ser destacado é que Beatriz o guia pelo Paraíso. Em um mundo medieval, em que as mulheres não ganhavam protagonismo e eram vistas como cidadãs de segunda classe, o fato de Dante colocá-la em uma posição de destaque, com mais pureza e bondade do que muitos outros personagens históricos do seu tempo, demonstra um tipo de afronta ao padrão social estabelecido, além de uma homenagem clara à sua amada.

Ao fim do percurso, Dante atinge o Empíreo, o reino imaterial onde habita Deus. Lá, ele contempla a rosa celeste, símbolo da perfeição divina e da comunhão dos santos. Sua visão culmina com a contemplação da Trindade, representada como três círculos de luz. Nesse momento, sua alma é plenamente unida ao divino, encerrando a jornada espiritual. Assim chega ao fim sua caminhada.
Simbolismo e alegorias de “A Divina Comédia”
Uma das características mais marcantes de A Divina Comédia é seu profundo simbolismo. Cada figura, paisagem e evento carrega múltiplos sentidos — literal, alegórico, moral e anagógico — conforme os métodos de interpretação da época. Dante constrói um universo onde cada detalhe é intencional, e cada imagem é um reflexo de uma verdade maior.
Por exemplo, os três animais que Dante encontra no início do poema, a pantera, o leão e a loba, representam, respectivamente, a luxúria, o orgulho e a avareza, impedindo-o de prosseguir em sua jornada até que Virgílio apareça. A selva escura simboliza o afastamento de Deus e o estado de confusão espiritual no qual o protagonista se encontra. Essa mesma confusão não é somente no aspecto individual, mas uma forma de Dante representar a sociedade em que vivia, cada vez mais afastada do ideal cristão e mergulhada nos problemas do mundo.

A própria estrutura tripartida da obra reflete a Santíssima Trindade. O número três se repete em todos os níveis da narrativa: três reinos, três guias principais (Virgílio, Beatriz e São Bernardo), três formas de amor, entre outros. O número dez (3 x 3 + 1) também é recorrente, simbolizando a perfeição numérica. É impossível deixarmos de notar essa relação da numerologia com a busca de Dante em retratar o divino, ficando explícito para o leitor que o seu texto não apenas faz uma crítica ao mundo em que vivia, mas também representa uma forma de alcançar esse aspecto sublime, que chamamos de Deus.
As figuras históricas encontradas pelo caminho são sempre mais do que personagens: são encarnações de ideias. Ulisses, por exemplo, representa o espírito da razão que busca conhecimento, mas que cai por ultrapassar os limites do permitido. Francesca da Rimini encarna a paixão descontrolada, enquanto Farinata representa o orgulho político.
Como podemos perceber, o simbolismo da obra não se limita ao conteúdo religioso, mas abrange também aspectos políticos, sociais e psicológicos. O próprio Dante, ao incluir-se na narrativa, transforma sua jornada em um espelho do leitor, convidando-o a refletir sobre suas próprias escolhas e destinos.
A influência de Dante na cultura e na arte
Um dos grandes méritos de A Divina Comédia está na sua forma poética revolucionária. Dante escolheu escrever na Vulgata, uma forma coloquial e popular da língua italiana. Se num primeiro momento essa forma de escrita parecia uma afronta ao vasto conhecimento do autor, na verdade, sua ideia era difundir, de fato, a obra para toda a população letrada. Com essa decisão, ele inaugurou uma nova era na literatura europeia, tornando-se o “pai” da língua italiana moderna.

Dante também é inovador no uso de imagens visuais e sensoriais para criar uma narrativa viva e poderosa. Seus cenários são descritos com precisão e seus personagens têm voz, corpo e complexidades que demonstram aspectos da psique humana. Nesse sentido, Dante usa em seu estilo literário imagens extremas, saindo do sublime ao grotesco em poucos versos. Essa variedade estilística reflete a amplitude do universo que ele constrói, onde cada canto é uma peça de um mosaico maior.
Se por um lado o livro foi relativamente pouco valorizado em seu lançamento, nas gerações seguintes Dante foi um verdadeiro guia para artistas que buscavam desafiar a visão medieval do mundo e construir uma nova forma de pensar. Durante a Renascença, por exemplo, estudiosos como Cristoforo Landino e Alessandro Vellutello produziram comentários eruditos sobre a obra, reforçando seu status canônico. No século XIX, com o Romantismo e o ressurgimento do interesse pelas origens nacionais, Dante voltou ao centro do debate cultural, sendo visto como símbolo da identidade italiana e como gênio criativo universal.
No século XX, críticos como Benedetto Croce e T.S. Eliot reforçaram a importância estética e filosófica da obra. Mais recentemente, estudiosos têm explorado a Comédia por múltiplas lentes: psicanálise, estudos de gênero, teoria literária e intertextualidade. Já nos dias atuais, A Divina Comédia é estudada em universidades do mundo inteiro, traduzida para dezenas de idiomas e reinterpretada em múltiplas mídias.
Frente a isso, podemos perceber a grande influência de Dante na literatura, porém, o que faz essa obra ser um clássico é o fato dela transpor as páginas e influenciar outras formas de arte e até mesmo o pensamento ocidental. Como podemos perceber, A Divina Comédia não apenas moldou o pensamento teológico e literário do Ocidente, mas também exerceu uma influência imensa sobre as artes visuais, a música, o teatro, o cinema e a cultura popular em geral.
Na pintura, artistas como Sandro Botticelli criaram ilustrações detalhadas para os cantos de A Divina Comédia, retratando os círculos do Inferno e os céus do Paraíso com uma notável sensibilidade espiritual e dramática. Mais tarde, Gustave Doré, no século XIX, imortalizou a obra com suas famosas gravuras, que continuam sendo uma das representações visuais mais conhecidas da narrativa dantesca. As obras de Doré estampam edições de A Divina Comédia até hoje, sendo um verdadeiro marco na maneira de retratar a história de Dante.

No cinema, a obra inspirou filmes como Seven – Os Sete Pecados Capitais (1995), que baseia sua narrativa nos círculos infernais, e Inferno (2016), baseado no romance de Dan Brown, onde a simbologia dantesca guia toda a trama.
Poderíamos passar algumas dezenas de páginas citando outras obras que se baseiam na Divina Comédia, entretanto, devemos nos perguntar se nos debruçar sobre a jornada de Dante pelo submundo até o Paraíso é válida para os dias atuais.
Por que “A Divina Comédia” ainda é relevante hoje?
Em pleno século XXI, A Divina Comédia continua sendo uma leitura essencial para a formação humana. E ressaltamos que essa leitura não deve ser exclusiva para acadêmicos ou eruditos, mas sim para todos, uma vez que sua temática envolve questões existenciais profundas. Nessa obra podemos refletir sobre o bem e o mal, a liberdade e a responsabilidade, o amor e o sofrimento, o destino e o autoconhecimento, e também sobre como nossas decisões em vida nos aproximam ou nos afastam do divino. Ao retratar a jornada de Dante, o texto espelha o caminho de qualquer indivíduo que se veja perdido e deseje reencontrar o sentido da vida.

Além disso, a estrutura da obra serve como modelo de construção do pensamento. A clareza lógica, a divisão hierárquica dos mundos, a ordenação moral das ações humanas e o uso simbólico das imagens fazem da Comédia uma obra-prima de organização intelectual e um verdadeiro mapa da alma humana. Nela podemos perceber não apenas em qual etapa dessa jornada estamos, mas também o que devemos fazer para evitar cairmos em alguns dos círculos do Inferno a fim de viver de forma mais próxima de nossa essência humana. Assim, apesar de ser uma jornada pelo mundo dos mortos, A Divina Comédia nos dá chaves para enxergarmos a nossa própria vida e fazê-la seguir um caminho de nobreza e virtude.
Por fim, destacamos que A Divina Comédia permanece viva porque é, acima de tudo, uma ode à vida humana. É bela não somente em sua construção, mas principalmente na forma como nos projeta, para que possamos enxergar a nós mesmos. Mais de sete séculos depois, A Divina Comédia continua sendo um farol para quem busca sentido, beleza e transcendência.
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