Sejam bem-vindos a mais um texto da nossa série ‘Clássicos da Literatura’. Hoje falaremos sobre Moby Dick, a obra-prima de Herman Melville que atravessa gerações e continua a provocar reflexões profundas sobre a natureza humana e o destino.
Sabemos que contar histórias é uma arte, ainda mais quando feita de maneira a transpor o tempo e refletir a alma humana de maneira tão sublime que, mesmo após séculos, os dilemas narrados são praticamente os mesmos. Apesar da mudança de cenários, da diferença das formas, nos encontramos nos personagens e nos seus questionamentos, posições de vida, desejos, angústias e esperanças.
Nesse sentido, a literatura é muito mais do que uma mera maneira de entreter aqueles que apreciam histórias: é uma forma de transmitir ideias para o público sem precisar dar aulas e conceitos complexos. Em pequenas frases, analogias, metáforas e anedotas, chega-se a um ponto crucial da alma humana nas trincheiras da existência, e assim arrebatam-se milhões de leitores e formam-se novas gerações de seres humanos que buscam por respostas.
O poder da literatura na formação da mentalidade de uma época é sem igual. Porém, este não é o assunto que vamos abordar hoje. Para os leitores que ainda não conhecem a nossa série “Clássicos da Literatura”, indicamos que leia nosso texto de introdução, pois é nele que apresentamos as ideias gerais que ajudam na análise e reflexões das obras que estamos destrinchando a cada novo texto. Para acessá-lo, basta clicar aqui.

Agora podemos adentrar ao oceano literário que Herman Melville legou ao mundo. Estamos falando de Moby Dick, um dos grandes clássicos da literatura universal. Inicialmente, devemos entender que essa é uma narrativa marítima e, fazendo uma analogia, podemos afirmar que alguns livros são como pequenas embarcações: leves, rápidas, projetadas para passeios agradáveis. Outros, porém, são navios baleeiros, com casco robusto, mastros altos e velas que se estendem ao vento da imaginação. Moby Dick definitivamente pertence a essa segunda categoria.
Adentrar ao mundo dos navios baleeiros não é fácil, muito menos uma jornada tranquila. Melville não escreve para entreter de forma superficial, pois em nada Moby Dick sugere algo simples de ser vivido. No fundo, a jornada da qual o autor nos convida a participar revela como o mar e a natureza podem transformar o ser humano.
A habilidade descritiva de Melville nos faz sentir o cheiro acre do óleo de baleia, o estalar das velas e o impacto das ondas no casco dos navios. Entretanto, para além das descrições sobre o mar, o leitor se pergunta sobre o seu lugar no mundo, se há um destino inevitável para todos nós e até onde podemos ir para satisfazer nossos desejos.
Moby Dick é, portanto, mais do que um romance de aventuras. É uma meditação sobre obsessão, liberdade e a finitude humana. É a história de uma caça, mas também de um caçador que foi domado por suas próprias convicções. Ao se lançar nesta leitura, o leitor se torna parte da tripulação e não há garantias de retorno seguro ao porto.
Quem foi Herman Melville?
Para entendermos como Moby Dick se tornou um grande sucesso, é essencial conhecer quem o escreveu. Assim, falemos um pouco sobre Herman Melville. Nascido em 1º de agosto de 1819, na cidade de Nova York, Melville veio de uma família de comerciantes cuja prosperidade não resistiu ao tempo. Ainda jovem, viu o pai falir e morrer prematuramente, obrigando-o a abandonar os estudos formais para trabalhar e ajudar no sustento da família.

Entre empregos modestos e o desejo de viver verdadeiras aventuras, Melville descobriu no mar um meio de sobrevivência e um chamado para a aventura e o autoconhecimento. Foi assim que, aos 20 anos, embarcou em um navio mercante, iniciando uma trajetória que moldou sua visão de mundo e, mais tarde, sua literatura.
A experiência marítima de Melville foi intensa e variada. Ele trabalhou em navios baleeiros, viveu entre nativos nas Ilhas Marquesas, navegou pelo Pacífico e até serviu na Marinha americana. Essas vivências, somadas à observação aguda da natureza humana, deram-lhe matéria-prima para seus primeiros livros, Typee (1846) e Omoo (1847), que alcançaram certo sucesso comercial.
Entretanto, nenhum desses romances pode ser comparado com Moby Dick, a sua obra-prima. Publicado em 1851, Melville ousou romper as convenções da época e criou um romance que mesclava ficção, filosofia, ciência e poesia. A ousadia, porém, teve um preço: o público não compreendeu a magnitude da obra em seu tempo e o autor mergulhou em um longo período de obscuridade literária. Para os versados no campo da literatura, isso não é uma novidade, afinal, muitas vezes os próprios escritores deixam a existência sem receber o devido reconhecimento. Assim, partem deste mundo sem ver o legado que deixaram para a humanidade e terem os louros de sua vitória sobre o tempo.
Esse foi o caso de Melville, que morreu em 28 de setembro de 1891, em Nova York, praticamente esquecido como escritor. Apenas décadas depois, críticos e leitores redescobriram a genialidade de sua prosa e elevaram-no ao panteão dos grandes autores da literatura mundial. Hoje, ele é reconhecido não apenas como o criador de Moby Dick, mas como um mestre na arte de transformar experiências vividas em narrativas que sondam o mais profundo da alma humana. Essa forma de escrever a partir de experiências pessoais moldou gerações de escritores como Jack London, Hemingway, Jack Kerouac e Bukowski. Tais autores, dentro de suas realidades, colocaram suas experiências no papel e transformaram a realidade em ficção.
A beleza literária de Moby Dick
Herman Melville construiu Moby Dick como quem constrói um grande navio: cada capítulo é como uma peça cuidadosamente encaixada, com função própria, mas parte de um todo monumental. A narrativa, embora centrada na caça à baleia branca, se expande em direções inesperadas: ora é ficção dramática, ora é ensaio filosófico, ora é tratado enciclopédico sobre baleias e navegação. É por isso que para um leitor iniciante essa narrativa pode parecer um tanto quanto arrastada, demasiadamente longa, e uma história que, por vezes, fala de tudo, menos da trama principal.

Entretanto, não nos deixemos enganar, Melville desenha o enredo de Moby Dick para nos fazer entender a complexidade de estar no mar, de ser um homem dentro de um navio, desde os aspecto técnicos até a complexidade dos dilemas vividos na psique de alguém que adentra ao oceano e pode não voltar. Nesse sentido, Melville sabia que a caça à Moby Dick não poderia ser contada apenas com a tensão de uma aventura. Era preciso dar ao leitor a sensação de que o mar é um mundo completo, com sua ciência, sua história e sua própria filosofia.
Ao contrário de narrativas lineares e previsíveis, Moby Dick exige que o leitor aceite navegar em águas inconstantes. Há calmarias em que o enredo parece repousar, apenas para ser seguido por tempestades narrativas que abalam tudo. Os momentos de espera, de descanso, têm como contrapartida a narração dinâmica e intensa de uma caça, do confronto. Essa alternância é deliberada: no mar, como na vida, não há um fluxo contínuo de ação, não há absolutos. Existe esperas, ansiedades e explosões súbitas.
Frente a isso, o narrador, Ishmael, é mais do que uma simples voz que relata os acontecimentos. Ele é o filtro pelo qual vemos e sentimos a história. Ele estabelece um tom íntimo, como se estivesse nos contando uma história ao redor de uma fogueira, com o barulho das ondas ao fundo. A posição em que Melville coloca o narrador é estratégica, pois Ishmael é, ao mesmo tempo, parte da tripulação e alguém um tanto quanto distante da problemática principal. Ele participa da jornada, mas também medita sobre ela.
Isso confere ao texto um caráter duplo: vivemos a tensão imediata da caça, mas também refletimos sobre seu significado maior. É como se Ishmael fosse a consciência que paira acima do convés, capaz de enxergar a beleza e a tragédia que escapam aos olhos dos outros marinheiros. Assim, mesmo entendendo as razões e os desejos do capitão Ahab, por exemplo, percebemos a contrapartida, o reflexo desse desejo de vingança e suas consequências a partir da perspectiva do narrador.
É nesse grande “jogo” entre as diferentes perspectivas e anseios de cada personagem que Moby Dick se apoia, tornando-se uma narrativa sobre o ser humano. Cada personagem é mais do que uma pessoa: é um arquétipo, uma encarnação de uma força ou ideia universal. Melville cria figuras tão vívidas que elas transcendem o enredo e se tornam símbolos duradouros na literatura. Ahab, por exemplo, é o coração febril de Moby Dick. Sua figura domina o romance, mesmo quando não está fisicamente presente na cena. Amputado de uma perna após um encontro anterior com a baleia branca, Ahab vive possuído por um único objetivo: destruir Moby Dick.
Sua obsessão é tão intensa que deixa de ser apenas vingança e se torna algo quase metafísico. A baleia não é mais apenas um animal, mas o símbolo de tudo o que resiste à vontade humana, de tudo o que não pode ser controlado. Ao tentar destruí-la, Ahab luta contra o próprio destino, contra o universo, contra a natureza em si. E, no fundo, essa é a grande e mais bela temática que Melville nos faz confrontar: o dilema entre a vontade humana e a natureza e sua força, que se transpõe frente a nossa pequenez.

O fato de toda a força da natureza ser refletida na figura de uma baleia branca é um dos toques mais geniais de Melville. Podemos falar isso porque a baleia, via de regra, é um animal um tanto quanto pacífico quando comparado com outros predadores do mar. Porém, sua imensidão o torna imponente e sua fúria, quando despertada, é avassaladora. O fato de o oceano ser o cenário o torna ainda mais épico, uma vez que até hoje suas proporções impactam profundamente. O mar é, acima de tudo, a certeza de que a humanidade é um pequeno grão de areia quando comparado com a natureza.
Assim, para além do desafio de ser um homem do mar, Melville coloca o leitor em uma caçada ao animal forte, o maior dos mares: A baleia branca. Apesar de Moby Dick quase nunca aparecer diretamente na narrativa, mas sempre ser relatada por outros como um mito, quase um leviatã do século XIX, quando finalmente surge, sua imagem é carregada de mistério e poder.
Como uma figura imponente, cada personagem da trama se relaciona de uma maneira distinta com Moby Dick: para Ahab, ela é o mal absoluto; para Ishmael, ela é um mistério insondável. Melville a mantém ambígua porque sabe que, como todo símbolo, ela precisa permanecer aberta a interpretações. Para alguns, no mundo atual, Moby Dick é apenas a fúria da natureza que responde à caça indiscriminada das baleias; entretanto, seu simbolismo pode ser ainda mais profundo ao entendermos que o ser humano, por mais determinado que seja, jamais poderá domar completamente as forças da Terra.
O que aprender com Moby Dick?
Para além de entendermos termos náuticos, algo que Herman Melville deixa muito claro em vários capítulos, o que podemos de fato aprender com Moby Dick? Apesar da crueza do mundo em que o autor coloca os leitores, lidando com a brutalidade do mundo, da sujeira dos portos e da vida em alto-mar, a profundidade de reflexões que Moby Dick nos faz pensar é digna de um verdadeiro clássico da literatura. A caçada à baleia branca é apenas o fio condutor para uma reflexão muito mais ampla sobre o destino, a liberdade, a natureza e o próprio sentido da existência.
O oceano, em Moby Dick, é mais do que cenário. Ele é a metáfora da própria natureza, infinita em suas formas: ela é vasta, insondável e impossível de ser totalmente compreendida. Melville deixa claro ao leitor que – e todos que puderam adentrar ao mar alguma vez também constataram isto – o mar é o mistério por excelência. Mesmo os mais bravos e aguerridos podem ser destruídos por sua força.
Assim, ao mesmo tempo que causa temor para quem o navega, também enche-os de uma contemplação sublime, capaz de nos fazer refletir sobre os mistérios de nossa existência. O Pequod, a embarcação na qual a trama se desenvolve, diante dessa imensidão, parece um grão de poeira, e seus tripulantes, frágeis marionetes diante das forças cósmicas.
A caçada à Moby Dick é, nesse sentido, o confronto do homem com o inatingível. Ahab não luta apenas contra um animal: ele luta contra a própria ideia de que existe algo que jamais será dominado. É uma rebelião contra a ordem natural das coisas. Não por acaso, encontramos nesse personagem um pouco de nós mesmos, pois quem nunca tentou subverter a ordem da vida? Quem nunca tentou, em seus momentos de tristeza e fúria, ir contra os desígnios da própria natureza? Esse conflito é eterno e Melville conseguiu traduzi-lo de forma sublime em seu romance.
Frente a isso, um dos grandes debates que ecoam no romance é: estamos no comando de nossas vidas ou somos conduzidos por um destino inevitável? Ishmael, com sua postura contemplativa, parece acreditar na possibilidade de escolhas; Ahab, entretanto, vê o destino como um adversário a ser derrotado, mesmo que isso custe tudo.
A narrativa se constrói como um duelo entre essas visões de mundo. Por um lado, temos a racionalidade e a esperança de que decisões humanas importam; por outro, a força esmagadora dos acontecimentos que fogem ao nosso controle, como tempestades, acidentes, a própria aparição da baleia. Todos esses aspectos, que são próprios da natureza, parecem mostrar que o livre-arbítrio da humanidade é extremamente limitado e, via de regra, uma ilusão. Sendo assim, somos obrigados a nos perguntar: estamos no leme de nossas vidas ou apenas somos arrastados pelas correntes do destino?
Outro ponto que podemos refletir profundamente em Moby Dick é sobre a própria natureza. Melville não traz uma visão idílica da natureza, muito menos uma perspectiva de que ela é bondosa e generosa, mas, sim, de como o mundo natural é indiferente aos anseios humanos. O mar não odeia nem ama, ele simplesmente existe e sua existência é suficiente para desafiar o homem. A baleia branca, nesse contexto, não é um vilão que trama contra Ahab; ela é apenas um ser seguindo sua própria lógica, alheia às paixões do capitão.
Por que ler Moby Dick hoje?
Essa é uma pergunta extremamente válida para qualquer um que pense em ler a obra de Melville. Apesar de ser uma obra relativamente nova, com menos de 200 anos, Moby Dick fala de um mundo que não vivemos mais em nossa sociedade atual. As baleias não são caçadas pelo seu óleo para acender lamparinas; os navios não são feitos de madeira, hoje a tecnologia náutica tornou a navegação em alto mar muito mais segura. Entretanto, apesar do cenário em que vivemos ser completamente diferente, as angústias e dilemas vividos pelos personagens de Melville seguem os mesmos.
Assim, ler Moby Dick no século XXI é como receber uma carta engarrafada, lançada ao mar por alguém que viveu há mais de 170 anos, mas que, de alguma forma, conhece intimamente nossas inquietações mais modernas. Não se trata apenas de conhecer um “clássico” por obrigação cultural, mas de experimentar uma obra que ressoa profundamente com questões que continuam a nos assombrar.
Vivemos em um mundo de velocidade, de informação instantânea, de respostas rápidas e superficiais. Moby Dick é o oposto disso, e justamente por isso é tão necessário. Ele exige tempo, paciência, atenção. E, em troca, oferece algo que poucos livros oferecem: uma percepção profunda do ser humano e de como enxergamos a vida.

Dito isto, ao ler Moby Dick, você não está apenas acompanhando uma aventura em alto-mar, mas participando de uma travessia que envolve desejos, medos e dilemas próprios da natureza humana. É impossível sairmos os mesmos depois de lermos Moby Dick. Como um bom clássico, essa é uma leitura que deixa marcas em nossa alma, que nos toca profundamente pelo valor humano que está colocado em cada capítulo.
Portanto, ler Moby Dick é como adquirir uma lente nova para ver o mundo e enxergá-lo por uma nova ótica, com novas percepções e ideias. Para os dias atuais, este romance é, acima de tudo, um alerta. Ahab representa o homem que se deixa consumir por um único objetivo, a ponto de sacrificar tudo por ele. A bem da verdade, quantos de nós também não vivemos algo similar? Em um mundo em que somos incentivados a perseguir metas sem parar para questionar seu valor, torna-se urgente ser capaz de observar aonde, a longo prazo, esse tipo de ambição pode nos levar.
Por fim, ao chegarmos ao final da narrativa, podemos sentir que algo mudou em nós. Não se trata de endeusar a escrita de Melville, muito menos nos lançarmos ao mar e viver essas aventuras no mundo físico, mas sim de desejarmos mergulhar nas águas da nossa própria existência. Isso é o que um clássico faz com o seu leitor, sendo por isso capaz de transformar gerações inteiras com algumas páginas. Rapidamente, percebemos que nosso horizonte de ideias, antes limitado a algumas convicções, agora ganha mais profundidade. Esse é o verdadeiro e mais importante mar no qual devemos navegar. A única pergunta que resta é: você vai embarcar ou vai ficar no porto, vendo a aventura partir sem você?
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