Bem-vindos a mais um texto da nossa série “Clássicos da Literatura”, onde exploramos grandes obras da humanidade. Hoje, analisamos Hamlet, a mais emblemática tragédia de William Shakespeare, para compreender os dilemas existenciais que essa peça histórica continua a provocar até os dias de hoje.
Entretanto, antes de mergulharmos no reino da Dinamarca e conhecermos os motivos que levaram o príncipe Hamlet a desejar a vingança, deixamos um aviso ao leitor que ainda não conhece nossa série: leia o texto de introdução que produzimos. Nele abordamos as ideias gerais que guiam a nossa análise, assim como os objetivos que percorremos ao pensarmos na análise dessa série de obras.
Visto isso, falemos de literatura. Existem obras que atravessam séculos como se fossem correntes invisíveis, ligando a sensibilidade de épocas distantes a inquietações profundamente humanas. Hamlet, escrita por William Shakespeare por volta de 1600, é uma dessas raras criações que, mesmo inserida no contexto de uma Inglaterra do século XVI, fala diretamente ao homem e à mulher do século XXI. A cada geração, essa tragédia renasce, não como uma peça presa ao passado, mas como um organismo vivo, capaz de dialogar com as ansiedades, dúvidas e dilemas do presente.

A beleza das obras de Shakespeare estão aí. Devemos ressaltar que é quase impossível escolher uma obra-prima em meio aos seus textos, visto que muitas de suas peças se tornaram clássicos da literatura. E não se engane, tais narrativas não chegaram a esse patamar apenas por terem sido escritas pelo bardo inglês, mas porque dialogam profundamente com a alma humana. Ler as obras de Shakespeare é aprender filosofia e refletir sobre o que é demasiadamente humano. Não aprendemos sobre reis e rainhas, mas sobre ambição, egoísmo, ciúme, raiva, vingança, amor e tantas outras emoções profundamente enraizadas em nosso mundo.
Nesse sentido, Shakespeare foi capaz de traduzir diversos sentimentos humanos e suas mais distintas nuances a partir dos seus personagens e enredos. Isso torna sua obra atemporal, pois, apesar de não vivermos em cortes ou em meio à nobreza, possuímos as mesmas emoções que Hamlet, Rei Lear e Macbeth.
Quem foi William Shakespeare?
Considerando a relevância desse grande poeta para a humanidade, é impossível entender Hamlet sem falarmos de William Shakespeare. O grande escritor inglês nasceu em 1564, na pequena Stratford-upon-Avon, em um momento histórico em que a Inglaterra vivia um florescimento cultural sem precedentes. O reinado de Elizabeth I, marcado por estabilidade política relativa e pela expansão marítima, também foi o berço de uma intensa produção artística, conhecida como “Renascimento inglês”. Era o tempo dos grandes teatros ao ar livre, como o famoso The Globe, onde o povo se reunia não apenas para assistir a peças, mas também para viver uma experiência comunitária, onde arte e vida se confundiam.

O teatro elisabetano não era elitista. A mesma peça era vista por comerciantes, artesãos, marinheiros, nobres e até membros da corte. Shakespeare, por compreender profundamente essa diversidade de público, escrevia diálogos capazes de satisfazer a sede filosófica dos intelectuais e, ao mesmo tempo, despertar gargalhadas e emoções nos espectadores mais simples. Seu gênio estava em criar narrativas que se sustentavam tanto pela erudição quanto pelo apelo popular, agradando assim os diferentes públicos que frequentavam suas peças.
Apesar de ser uma figura histórica relevante, pouco se sabe com certeza sobre a juventude de Shakespeare. Há lacunas históricas que alimentam teorias sobre suas possíveis experiências antes de se tornar dramaturgo, inclusive a de que o nome “Shakespeare” não se refira a uma só pessoa, mas a um grupo de escritores. Porém, o fato é que, por volta de 1590, ele já estava em Londres, atuando e escrevendo para companhias teatrais. Suas primeiras obras eram peças históricas e comédias, como “A Comédia dos Erros” e “Romeu e Julieta”, que revelavam seu domínio sobre a linguagem e o ritmo teatral.
O caminho até Hamlet foi marcado por um crescente aprofundamento temático. Shakespeare passou das intrigas palacianas e histórias de amor à exploração mais intensa da condição humana. Se em Romeu e Julieta ele retrata o amor e a tragédia juvenil, mostrando os perigos de uma paixão avassaladora, em Hamlet ele mergulha na psique humana, abordando dilemas existenciais e questões morais com uma profundidade inédita, sendo assim uma das obras mais influentes da história da literatura.

É evidente, porém, que para chegar ao ápice em Hamlet, Shakespeare escreveu sobre a mesma temática em outras peças. Obras como “Ricardo III” e “Júlio César”, apesar do fundo histórico que compõem o seu enredo, foram peças que ajudaram a desenvolver ideias que em Hamlet se tornaram evidentes, como a corrupção, a ambição e a disputa pelo poder. Assim, ao analisar cada um dos seus escritos podemos entender como o gênio literário de Shakespeare foi uma construção pautada no esforço e em novas percepções, até chegar a maturidade intelectual.
A diferença é que Hamlet, em comparação a essas outras obras, portanto, não se limita a uma intriga política ou a um estudo moral: é também uma viagem ao interior da mente humana. Se Ricardo III nos mostra um vilão que age sem hesitar, Hamlet nos apresenta um protagonista dilacerado pela indecisão, e é justamente essa indecisão que o torna tão humano. Além disso, o grande ponto de virada – e nisso mostra-se a genialidade de Shakespeare – foi transformar esse enredo simples em uma reflexão filosófica profunda. Ele acrescentou monólogos de introspecção, desenvolveu personagens femininos com mais complexidade e inseriu camadas de metalinguagem, como a famosa peça encenada dentro da peça, que serve de armadilha psicológica para o rei.
Assim, Hamlet vai além de tratar de temas profundos da psique humana: enquanto estilo dramatúrgico, inova com outras possibilidades de narrativa que são imitadas até hoje. Talvez por quebrar esse padrão e acrescentar novos elementos na maneira de fazer teatro ela seja vista como a grande obra de Shakespeare, apesar de, como já salientamos, ser uma difícil escolha em um roll de tantas obras geniais.
O que é Hamlet?
Uma vez que entendemos o valor desta grande obra, devemos nos debruçar sobre ela. Falar de Hamlet é falar, acima de tudo, de um labirinto narrativo em que cada corredor leva a uma nova questão moral. A trama, à primeira vista, é simples: um príncipe busca vingar o assassinato do pai. Mas o que Shakespeare constrói a partir dessa premissa é um tratado sobre a alma humana e até que ponto devemos trair nossos valores para realizar nossos desejos.
A peça começa em uma noite gelada nas muralhas de Elsinore, o castelo real da Dinamarca. Guardas avistam uma figura espectral: o fantasma do falecido rei Hamlet. A atmosfera aqui é de tensão e incerteza, pois não sabemos se o que vemos é real ou fruto da imaginação dos personagens. É uma abertura que já coloca o espectador em estado de vigilância: no mundo de Hamlet, a verdade está sempre encoberta com alguma névoa, nada é como pensa-se ser.
Quando o príncipe Hamlet encontra o fantasma, a revelação é devastadora: seu tio Cláudio assassinou o rei, vertendo veneno em seu ouvido enquanto dormia. O fantasma exige, então, a vingança, que deve ser realizada pelo príncipe em nome da honra da família, para restabelecer o trono. Não se trata apenas de matar Cláudio: Hamlet deve punir o tio sem manchar sua própria alma. Essa exigência impossível será o motor de toda a peça.
Hamlet precisa refletir como fará sua vingança, uma vez que não pode correr imediatamente para o ato. Sua dúvida não está no que deve ou não ser feito, mas, sim, em como extrair a verdade do tio para comprovar o regicídio. Ele sabe que matar Cláudio sem provas concretas pode ser um erro; e que agir no impulso pode condenar não apenas seu inimigo, mas também sua própria consciência, mergulhando o reino em uma guerra civil.

Para confirmar a culpa do tio, Hamlet planeja uma armadilha: manda encenar uma peça que reproduz o assassinato descrito pelo fantasma. Aqui, Shakespeare cria um dos momentos mais célebres da literatura: o teatro dentro do teatro. É um jogo metalinguístico em que a ficção expõe a realidade. Quando Cláudio assiste à encenação e reage perturbado, Hamlet vê confirmada sua culpa.
Ao passo que a trama principal se desenvolve, há ainda histórias e personagens que permeiam a narrativa. É o caso de Ofélia, a jovem nobre que ama Hamlet, mas é manipulada pelo pai Polônio e pelo irmão Laertes. Hamlet, tomado por sua missão e desejo de vingança, a afasta com palavras cruéis, pois sabe que o caminho que está percorrendo é muito perigoso para manter por perto alguém tão amável como Ofélia. A jovem, sem compreender a rejeição do príncipe e esmagada pelo luto ao ver que seu pai morreu, perde-se na loucura e joga-se em um rio para morrer afogada.
A morte de Ofélia marca um ponto de não retorno na jornada de Hamlet. O fim da amada é um símbolo de como a busca desenfreada por vingança faz com que morra tudo ao nosso redor: as amizades, o amor, a fidelidade e nós mesmos. Com isso, o último ato da peça é um redemoinho de mortes. Hamlet e Laertes se enfrentam em um duelo armado, mas as espadas estão envenenadas.
A rainha Gertrudes bebe acidentalmente o vinho preparado para matar Hamlet e morre. Laertes e Hamlet são feridos e têm suas mortes decretadas. Porém, antes de morrer, Laertes revela a conspiração de Cláudio. Hamlet, num último ato de força, mata o tio e finalmente cumpre a vingança, mas perde a si mesmo.
Não há vitória: o príncipe cai morto, e o reino fica sem herdeiro. A Dinamarca é tomada por Fortimbrás, o príncipe da Noruega. Com isso, Shakespeare deixa uma mensagem amarga como conclusão da peça: no jogo do poder, mesmo a justiça pode chegar tarde demais.
Para além do enredo: o que Hamlet nos ensina?
Uma das razões pelas quais Hamlet é uma obra que vence o tempo é a riqueza psicológica de seus personagens. Shakespeare cria figuras que não cabem em categorias simplistas de “herói” ou “vilão”, pois o desenvolvimento dos personagens mostra como podem transitar por esses dois polos.
O príncipe Hamlet é o retrato do indivíduo que vive uma encruzilhada: de um lado estão os seus valores, recheados de nobreza, e do outro, o seu desejo de vingança. É nesse ponto que nasce a frase mais icônica de Shakespeare, que representa a grande dúvida do personagem: “ser ou não ser, eis a questão?”. Esse questionamento é extremamente profundo e humano, pois revela a dúvida entre viver os seus valores ou entregar-se aos seus desejos. Todos nós, em nossas vidas cotidianas, passamos por esse mesmo dilema.
Isso é o que chamamos de um dilema existencial e que ultrapassa a trama da vingança. Ele se pergunta se viver, diante de tanto sofrimento, é uma escolha corajosa ou covarde. Essa dimensão filosófica faz de Hamlet um personagem que dialoga com pensadores, como Kierkegaard, Nietzsche e Sartre. Se Hamlet fosse apenas a história de um príncipe que busca vingança, provavelmente teria sido esquecida com o tempo. O que faz dessa tragédia um marco na história da literatura é a forma como Shakespeare transforma uma trama linear em um mosaico de reflexões sobre a existência, a moralidade, a política e a fragilidade humana.
Outra reflexão importante dentro da peça está na figura do tio de Hamlet, Cláudio, cuja busca pelo poder o leva a tramar e matar o próprio irmão para tomar-lhe o trono e a esposa. Seu ato é o ápice da ambição desmedida, e, naturalmente, o leitor o enxerga como um canalha. Porém, Shakespeare não o constrói como um vilão comum: Cláudio é capaz de reconhecer sua culpa, mas escolhe mantê-la em segredo para preservar seu poder. O usurpador é perseguido pelos seus próprios fantasmas, que é a culpa de assumir o trono sem merecê-lo.
Essa tensão moral dentro da obra nos mostra como ninguém está imune ao julgamento da sua própria alma. Sabemos que, ao tomarmos decisões que vão de encontro aos nossos valores, nosso coração mantém-se pesado. No cotidiano, a ambição pode ser uma força para o nosso crescimento, mas, quando vivida sem freios éticos, torna-se destrutiva. Basta olhar para escândalos políticos, fraudes empresariais ou disputas familiares por herança: o desejo de ascensão pode facilmente esmagar valores e relações.
Além de tais questões, um dos pontos fundamentais dentro da obra é como Hamlet, à medida que avança em sua vingança, perde o controle de sua sanidade e vai enlouquecendo. A loucura, a princípio, é um “truque” do príncipe para conseguir movimentar as peças necessárias para realizar sua vingança; porém, ao final do último ato, podemos perceber que, de fato, o desejo de vingança o cegou de tal maneira que podemos caracterizá-la como um grau de insanidade.
Assim, a loucura em Hamlet é um elemento ambíguo. Enquanto Hamlet a usa para seu próprio benefício, Ofélia, por outro lado, sucumbe a um colapso emocional verdadeiro, e a insanidade a leva para a morte. Nesse sentido, fica claro que Shakespeare tenta mostrar ao leitor que a fronteira entre razão e delírio é tênue. Um trauma profundo, uma perda súbita ou um ambiente opressivo podem desestabilizar qualquer mente, por mais saudável que esta seja.

Hoje, num mundo em que discutimos saúde mental com mais abertura, é impossível não reconhecer em Ofélia o retrato de alguém tragado por uma rede de pressões sociais e familiares que não lhe permite existir como indivíduo; e, quando suas duas principais causas existenciais deixam de estar presentes, a jovem prefere tirar a própria vida do que viver sem seu amado e seu pai.
A influência de Hamlet na literatura universal e no cotidiano
O impacto de Hamlet transcende a história do teatro. Sua estrutura dramática, seu protagonista introspectivo e sua densidade filosófica moldaram não apenas a dramaturgia, mas também o romance, a poesia, o cinema e até a psicanálise. Personagens como Raskólnikov, em “Crime e Castigo”, de Dostoiévski, ou Stephen Dedalus, em “Retrato do Artista Quando Jovem”, de James Joyce, carregam esse legado. Ambos são protagonistas que se perdem em dilemas morais e existenciais, herdeiros diretos do príncipe dinamarquês.
Esse arquétipo do protagonista caído, ou seja, aquele que perde para si mesmo e seus desejos, faz com que Shakespeare inaugure uma nova forma de apresentar personagens que não sejam tão marcados como “bons” ou “maus”. A vida, em suas nuances, apresenta diversas maneiras de transitarmos nesses dois polos e, muitas vezes, ao buscar fazermos o bem, podemos acabar caindo em atitudes vis e que fogem dos nossos valores. Nesse aspecto, Hamlet é um grande alerta para o leitor, e a partir dele, outras tantas narrativas com tons de cinza surgiram para demonstrar a complexidade da vida humana.
Nietzsche, por exemplo, via em Shakespeare uma compreensão aguda do trágico; porém, não como algo a ser evitado, mas como parte inevitável da vida. A tragédia, em seu sentido clássico, não significa necessariamente um final ruim, mas era um tipo de dramaturgia que fazia os espectadores refletirem sobre a condição humana, seus defeitos, desejos, aspirações e angústias. Assim, viver tais dilemas é uma parte inexorável da vida, e nenhum ser humano passará incólume por ela.

Do ponto de vista artístico, Hamlet foi adaptado e reinterpretado em todas as formas artísticas possíveis. Desde versões cinematográficas clássicas, como a de Laurence Olivier, até releituras experimentais, como a de Robert Lepage, passando por referências indiretas em filmes como “O Rei Leão”, a peça prova que sua essência pode ser recriada infinitamente sem perder sua força.
Como podemos perceber, o impacto de Hamlet vai muito além das paredes do teatro. Ao longo dos séculos, a peça se infiltrou na literatura, no cinema, na música, na filosofia e até na cultura pop. É como se a figura do príncipe dinamarquês tivesse se tornado um arquétipo universal da dúvida e da introspecção. O famoso crânio segurado por Hamlet, embora apareça apenas na cena com o coveiro (e não no monólogo “ser ou não ser”, como muitos pensam), tornou-se símbolo visual do próprio ato de refletir sobre a mortalidade.
Por fim, não há como deixar essa obra passar por nossos olhos e não ser convidado a mergulhar no dilema de Hamlet. Ler essa história de vingança é, no fundo, muito mais do que apreciar uma narrativa marcante e clássica. Na verdade, é como estar diante de um espelho que reflete nossos próprios dilemas existenciais. Por isso, essa obra não sobreviveu por séculos por acaso. Ela continua a nos desafiar, a nos fazer perguntas que não podemos responder de maneira simples, e a nos mostrar que a literatura é, antes de tudo, uma forma de compreender a nós mesmos.
Comentários