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O Ramayana e a Jornada Humana

O Ramayana é um dos poemas mais antigos da humanidade e um dos mais extensos e profundos também. Com 24.000 versos, atravessou milhares de anos para chegar até nós, inicialmente por transmissão oral desde um período anterior ao que se conhece da Índia antiga, depois por manuscritos de papiro, depois por impressos e hoje em versões digitais em tablets e smartphones. Em linguagem simbólica, essa obra fala da grande jornada que todos nós trilhamos. A ilusão dos sentidos, a constatação de que tudo está passando, a intuição da eternidade e a certeza de que há uma inteligência manifesta na Ordem Cósmica e em toda a Natureza, tudo isso assume a forma de personagens neste épico. A narrativa se liberta dos limites da lógica cartesiana de nosso sistema de pensamento, e por isso permite voos simbólicos muito altos para uma dimensão em que Deuses, homens, demônios e seres dos mais diversos tipos travam grandes batalhas. Estas batalhas e estes personagens são símbolos que revelam muito sobre os nossos aspectos internos, de outra forma, dificilmente conseguiríamos torná-los conscientes.

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A história começa no reino de Ayodhya, onde habita o povo Kosala, e lá está sendo travada uma batalha mortal entre Deuses, homens e demônios. O jovem príncipe dos Kosalas, Dasharatha, luta ao lado dos Deuses, mas em um dos enfrentamentos ele é ferido e quase morre, quando a mais jovem de suas esposas, Kaikey, o salva. Em recompensa, ele promete atender qualquer pedido que ela lhe fizer, mas como ela já se sentia muito feliz e realizada, ela nega o presente. O príncipe diz, então, que ela deve guardar este pedido para o futuro.

Anos depois, o príncipe é coroado rei de toda a cidade de Ayodhya ofertando ao povo a esperança de uma longa dinastia. Mas o tempo vai passando e ele não consegue ter filhos. Isso o angustiava muito, até que resolveu recorrer aos Deuses.

Na dimensão dos Deuses a situação estava muito complexa, em razão de algo que havia acontecido há cerca de dez mil anos atrás: um demônio da raça dos Rakshasas chamado Ravana, que era um dos piores seres que existia, dotado de dez cabeças e de dez pares de braços, sentou-se no alto de uma montanha junto com seus dois irmãos, fez um pedido a Brahma e ficou por dez mil anos fazendo sacrifícios pessoais a fim de ser atendido pelo criador de todas as coisas. A cada mil anos, ele cortava uma de suas cabeças e colocava no altar sacrificial e continuava em meditação. Quando havia se passado nove mil anos, nem mesmo Brahma pôde ignorar tamanho sacrifício, insistência, e constância, foi então que resolveu atender ao pedido de Ravana e seus irmãos.

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Ravana pede a Brahma que nenhum Deus e nenhum demônio fosse capaz de matá-lo; já seu irmão Vibhishana, que apesar de também ser um Rakshasa, era um ser muito nobre, pede que nenhum de seus desejos se desvie da grande lei que rege todas coisas do Universo, o Dharma. Brahma atendeu o pedido de Ravana e o de Vibhishana, mas ao outro irmão, Kumbakarna, não lhe permitiu nem chegar a fazer o pedido, determinou que entrasse num sono profundo e que só acordasse um único dia a cada ano, quando poderia devorar tudo que estivesse diante dele.

De posse desses poderes, Ravana inicia uma batalha interminável contra os Deuses. Como nenhum deles poderia destruí-lo, a cada dia a guerra ficava pior para os Deuses. Até que eles decidiram enviar Narayana, o mais poderoso dos Deuses, até á Terra, para nascer como um homem, já que não sendo nem Deus e nem demônio, o ser humano seria o único capaz de vencer Ravana.

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Esse era o contexto em que o rei dos Kosalas, Dasharatha, implorava aos Deuses para ter filhos. Nesse momento, a necessidade da Terra se encontra com uma necessidade dos Céus, então Narayana, a divindade suprema e una, desce e encarna em quatro filhos do rei de Ayodhya. Da esposa mais velha nasce Rama e da mais nova, Bharata. A do meio dá à luz aos gêmeos Lakshmana, que se tornou muito ligado a Rama, e Shatrughna, que se tornou muito ligado a Bharata. Cada um dos irmãos encarna um aspecto de Narayana.

Os príncipes cresceram e se tornaram homens muitos virtuosos e admirados por todos, inclusive o respeito que existia entre eles garantia que todos vivessem em grande Harmonia. Desses filhos, o escolhido para a sucessão foi Rama, pois era o mais velho e o que mais apresentava condições de governar Ayodhya com justiça, e assim, garantir a felicidade do povo. Todos reconheciam isso, inclusive seus irmãos, porém, após tanto dar ouvidos a uma criada que dizia que Rama a expulsaria do reino quando assumisse o trono, Kaikey passa a pensar que seu filho, Bharata, havia sido preterido do trono e fica tomada pela inveja e pelo ciúme. Então ela decide fazer uso daquela antiga promessa que o rei lhe devia, ela pede que Rama seja exilado na floresta por quatorze anos e Bharata assuma o trono.

Apesar da tristeza do rei, dos príncipes e de todo o povo de Ayodhya, Rama aceita o seu destino de forma muito serena, pois entendia que havia uma Lei, uma promessa, e isso teria que ser cumprido. Ele entendia que cada vez que uma promessa era rompida, isso gerava uma desarmonia em todo o Universo, e se os homens não cumprem com suas promessas, as marés, a terra e os astros também podem abandonar o seu papel no equilíbrio cósmico. Essa humildade de Rama de se curvar ao Dharma, a essa Lei Universal que rege tudo o que existe, é onde está o segredo de seu poder, assim como a relva que se dobra aos ventos e não é levada por eles.

Dessa forma, Rama, sua esposa Sita e Lakshmana, seu irmão mais novo, vão para a floresta em exílio. Nesse momento, Dasharatha morre e Bharata assume o trono. Durante os 14 anos do exílio, Lakshmana não dorme, para poder servir ao seu irmão, velando pelo seu sono.

No último ano do exílio, Rama estava passando perto de uma ilha chamada Lanka e nesse lugar paradisíaco, morava Ravana, o demônio que lutava numa batalha interminável com os Deuses. A irmã de Ravana, ao ver Rama nos arredores, apaixona-se por ele, mas sua fidelidade à Sita, sua esposa, é muito sólida. Vendo que não conseguiria nada com Rama, a demônia tenta uma aproximação com Lakshmana que também a rejeita. Enfurecida e enciumada, chama o exército de Ravana para destruí-los. Mas Rama vence a todos.

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A demônia volta para casa, enfurecida, e conta tudo a Ravana, e ainda diz que a mulher desse homem que derrotou seu exército era muito bonita, e que Ravana deveria possuí-la. Sentindo-se desafiado e cheio de más intenções, Ravana manda que um de seus demônios vá até eles numa forma de corsa dourada. Quando o animal passa correndo diante deles, Sita admira a beleza da corsa, então Rama decide ir em busca do animal para presentear a sua amada. Porém, quando o captura, a presa se transforma em um demônio. Rama mata o demônio, que antes de morrer imita sua voz gritando por socorro. Sita, ouvindo a voz do marido toma a iniciativa de ir socorrê-lo, mas Lakshmana lhe diz que é perigoso e traça um círculo mágico no chão ao seu entorno e lhe dá ordem para não ultrapassar a linha protetiva, enquanto ele mesmo iria em socorro de Rama.

Ravana assume uma forma de ancião e vai até Sita. Pede um pouco de água de modo bondoso, como um brâmane, e acaba por convencê-la a sair dos limites do círculo. Desprotegida, Sita é imediatamente capturada e levada em um carro voador para Lanka. Ao presenciar o sequestro, o abutre Jatayu tenta deter o demônio, mas não consegue e acaba ficando muito ferido. Ao retornar para o local do círculo, Rama ouve do abutre tudo o que aconteceu, e sai com seu irmão, imediatamente, em busca de pistas para encontrar Sita.

Durante essa jornada para resgatar Sita, sendo coerentes com suas naturezas divinas, Rama e Lakshmana ajudaram vários seres que sofriam injustiças. E um desses que foram ajudados pelos príncipes foi Hanuman, o macaco filho de Vayú, o Deus do vento. Hanuman combatia numa guerra para recuperar o trono do Rei Macaco, Sugriva. Após vencer as batalhas com a ajuda de Rama, Hanuman se torna seu fiel companheiro e convence o Rei Macaco a colocar o seu exército contra Ravana, se unindo a Rama no resgate de Sita.

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Hanuman possuía muitos poderes, possuía muita força e era capaz de saltar longas distâncias, dessa forma ele consegue chegar à ilha de Lanka e encontra Sita. Mas ela se nega a ser resgatada sozinha por Hanuman, pois ela percebeu que várias outras pessoas sofriam naquela ilha, e ela não poderia abandoná-las. Então ela pede que Hanuman transmita a mensagem de que só voltaria se Rama viesse libertar a todos da ilha. Então Rama resolve reunir todos os exércitos de animais e ir até Lanka. Porém, como ele poderia levar todos esses exércitos até essa ilha?

Em conversa com a divindade do “Oceano”, Rama ouve que entre eles havia um macaco chamado Nala, que tinha um poder de lançar coisas concretas na água e essas peças passavam a flutuar. Então eles resolvem usar o poder de Nala e vão jogando pedras, que vão formando uma ponte que flutua sobre as águas. E assim todos os exércitos conseguem chegar até Lanka, e lá começa a guerra.

Ravana, diferente de Rama, não assumia a frente da batalha, ele mandava seus guerreiros, e cada um deles era a encarnação de um vício. O general Prahasta, encarnação da cólera com toda intensidade, avançou contra os exércitos em um carro composto de mal humor, ressentimentos e maus pensamentos de toda sorte, essa era a energia que movia seu carro de guerra.

Quem combate e vence Prahasta é o macaco Nala, aquele que tinha o poder de jogar as coisas concretas no mar, fazendo-as flutuar. Nas tradições, o mar representa o mundo material, o mundo dos instintos. Ou seja, aquele que tem o poder de não ser tragado pelos vícios da matéria, é capaz de vencer a cólera.

Quando Ravana presencia a derrota de seu mais poderoso general, resolve acordar seu irmão Kumbhakarna, que dormia 364 dias e só um dia acordava para comer e destruir tudo. É o símbolo da preguiça e da gula. Mas contra ele, Rama usa flechas que lhe foram dadas por um brâmane da floresta. Essas flechas tinham o corpo formado por ervas e a cabeça de prata, isso é representativo da união entre o céu (prata) e terra (ervas). Com essa arma Rama vence Kumbhakarna. Esta vitória é símbolo da virtude da mística, que é a união entre espírito e matéria, ou seja, a união de um grande sonho com a ação prática. Esta é a arma que nos ajuda a vencer a preguiça e a gula.

A próxima investida de Ravana é mandar seu filho Indrajit, o senhor das ilusões, que podia tomar a forma que quisesse, inclusive podia ficar invisível. Nessa altura, o irmão de Ravana que era justo, Vibhishana escolhe o lado de Rama e luta contra Ravana, ajudando a identificar Indrajit. Mas esse guerreiro das ilusões é muito poderoso e consegue matar a todos, até mesmo Rama. Somente o macaco Hanuman e o rei dos ursos, Jambavan, ficam vivos.

A batalha já estava totalmente perdida, quando Jambavan lembra a Hanuman da Montanha da Vida, lugar especial onde nasciam plantas capazes de trazer os mortos de volta à vida. Hanuman vai saltando até lá, e traz toda a montanha até o campo de batalha em Lanka, e assim, Rama e todo o seu exército voltam à vida.

No último embate, Ravana desce as escadas diante do seu trono a fim de duelar contra Rama, nesse entremeio, encontra Kala, o Deus do tempo que destrói todas as coisas. Kala o provoca, lembrando ao demônio que por muito tempo ele conseguiu escapar de seu poder, mas a sua hora havia chegado, já que era impossível vencer o Deus Narayana que estava encarnado como o homem Rama. Havia chegado o momento do invencível Ravana ser devorado pelo tempo. Ravana surpreende com sua resposta, dizendo que o tempo só consome as coisas da moda e as coisas da matéria, por isso Kala nunca teria poder sobre ele, pois “Eu morrerei pelo Amor, e o Amor supera todas as coisas”. Com isso, Kala se envergonha e vai embora.

Então a batalha se inicia, e é muito difícil, mas finalmente Rama consegue decapitar todas as cabeças de Ravana e consegue matá-lo com uma flecha no peito. Com isso, a guerra estava acabada, mas Ravana surpreende mais uma vez. Antes da batalha final, sabendo que ele morreria, ele havia escrito uma carta para Rama. Nela, ele dizia que não havia sido descuidado ao não pedir proteção contra os homens, na verdade, desde o início Ravana buscou aquele momento. Ele sabia, que o grande Narayana nasceria como um homem, e precisaria de algo para que ele se lembrasse da sua natureza Divina. Por isso, há mais de 10 mil anos ele havia começado uma guerra. Tudo o que Ravana queria, era poder participar da história de Narayana, e agora que Rama, após vencer a guerra, se recordava que era um Deus encarnado, o Rei Demônio pôde morrer em paz, pois a sua missão também estava cumprida.

Terminada a guerra, Rama toma a sua Sita e volta para Ayodhya e reina por 11 mil anos.

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Neste épico, como é comum ver nos mais diversos mitos,o protagonista Rama representa o Ser Humano em busca de sua alma, representada por Sita. Assim como Rama, todos nós encarnamos uma essência Divina, mas não somos conscientes dela. Na maior parte do tempo, nos identificamos com nossa parte mortal, com coisas superficiais que não nos mostram nossos verdadeiros potenciais. Por isso, em nossas vidas, todos encontramos “Ravanas”, que são os desafios, as adversidades que surgem. E por mais que eles pareçam com “demônios”, de tanto medo que nos causam, quando tudo passa, percebemos como essas provas foram importantes para que pudéssemos crescer e conhecer melhor a nós mesmos. É por isso que Ravana vence o tempo e se eterniza sobre a terra. Sempre haverá um Ravana enquanto existir um homem lutando por Sita, que representa a sua Alma.

Todo o simbolismo presente nesta história prepara um ambiente útil para compreensão profunda de aspectos muito internos de nosso Ser. Ler essa história com um espírito aberto é um exercício de autoconhecimento. Cada ser, cada combate, cada atitude são representativos da nossa jornada. A sabedoria milenar da humanidade nos apresenta um caminho para lidar com uma realidade tão adversa, tão incompreensível e ao mesmo tempo tão rica e promissora, como é este mundo em que vivemos.

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