Os Índios Desana e o Mito da Criação

Você conhece algum Mito de Criação? Essa expressão é utilizada para compreender a maneira que diversas Culturas explicam a formação do Universo e do Ser Humano. As Religiões, de modo geral, são ótimos exemplos de como um Mito de Criação é fundamental para a base de uma Cultura. Mas, o que há de tão fascinante nesses Mitos?

Além do caráter Cultural, que nos possibilita entender a lógica social e religiosa de alguns grupos, os Mitos de Criação carregam em si Símbolos e Ideias importantes que podemos enxergar em nossas vidas. Como são Símbolos, não podemos interpretá-los à risca. Logo, necessitamos enxergar profundamente as Ideias que eles buscam nos revelar. Assim, por exemplo, quando os Hindus contam que Brahma tudo criou e o Universo é apenas um momento de sua respiração, não devemos imaginar que isso ocorre de forma literal, mas que por trás desse Mito há a ideia de que o Divino está em todas as coisas, sendo a causa primeira de tudo.

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De igual modo, na Bíblia, quando se diz que Deus criou o mundo em sete dias, é apenas, uma forma simbólica de explicar que o Divino deu forma a tudo o que existe. Assim, ambos os Mitos carregam a mesma Ideia, mas com formas diferentes. Quando estudamos mais a fundo sobre Mitologia, vamos perceber, invariavelmente, que existem infinitas formas de  expressar um Mito e ele irá representar não apenas Ideias, mas aspectos geográficos e sociais de um grupo. Apesar destes últimos serem variados devido à complexa geografia do nosso planeta, as Ideias que permeiam essas Culturas geralmente se repetem. Dessa forma, não é incomum ao estudarmos diversos Mitos reconhecer aspectos e Ideias similares.

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Partindo dessa perspectiva, iremos conhecer um Mito de Criação que poucos ouviram falar, advindos da tribo Indígena Desana, localizada no noroeste da floresta Amazônica. Essa tribo, que encontra-se na fronteira entre o Brasil e a Colômbia, conseguiu preservar seus costumes mesmo após centenas de anos em contato com a Cultura Europeia e, graças a isso, ainda hoje podemos conhecer um pouco mais de suas tradições.

De acordo com os Desana, antes de tudo só existia uma grande escuridão e as trevas dominavam todo o Universo. Tudo começou a mudar, porém, quando uma Mulher chamada Yebá Bëló criou a si mesma. Para isso, ela utilizou seis objetos invisíveis que eram, em sua maioria, plantas e ferramentas de cozinha, como panelas e cestos. A partir desses componentes, essa Mulher passou a vagar na escuridão, até construir uma morada de quartzo, o primeiro local a ter luz em todo o Universo. Em sua nova construção, Yebá Bëló passou dias mascando ipadu – uma espécie de folha de coca – e fumando cigarro, até que do seu pensamento se originou uma grande esfera. Essa misteriosa esfera,  que mais tarde seria a Terra, rapidamente foi lançada à escuridão, mas, para que não se perdesse em meio às trevas, foram criados cinco trovões e esses foram armazenados na esfera, para que a iluminasse. Os trovões eram imortais e, ordenados por Yebá Bëló, deveriam criar a Luz, os elementos da Terra e a Humanidade.

Ilustracao de Brisa

Antes de prosseguirmos com o Mito, é interessante refletirmos sobre algumas Ideias iniciais. A primeira delas é a semelhança desse Mito com o de outras Civilizações. A Ideia, por exemplo, de que nada existia e tudo era apenas escuridão encontra-se na Tradição Grega. Nela, diz-se que, antes do Universo existir, tudo era Caos; já no Cristianismo, também se fala que o Universo era um espaço de trevas e escuridão antes de Deus fazer a Luz. É interessante observarmos que, por mais distintas que sejam as Culturas, parece-nos que, ao tratar de Ideias, todas se aproximam de uma mesma essência, mesmo que inconscientemente. 

Outro ponto similar está no fato de existir uma Divindade criadora. Apesar de não criar tudo, uma vez que ela usa os trovões como “auxiliares”, digamos assim, mostra-se como tudo nasce do Espiritual até chegar à camada material do mundo. Nesse aspecto, a similaridade do Mito está próxima a de culturas como a Egípcia e a Grega, na qual existem gerações de Deuses que vão, cada um a seu modo, contribuindo para a criação de todo o Universo.

Seguindo com o Mito, cada trovão tinha a sua morada, de acordo com os pontos cardeais. Assim, existiam o trovão do sul, norte, leste e oeste e um ao alto, nos Céus. Isso, porém, ainda não foi suficiente para a criação do Universo que conhecemos. Yebá Beló criou então Ëmëko Sulãn Palãmin, um Ser invisível tão poderoso quanto os trovões. A ele foi incumbida a missão de criar as diversas camadas do Universo, porém a criação desse Ser deixou os trovões enciumados. Apesar das desavenças, ambos os lados acabaram em paz. Emeko criou o Sol e demais Estrelas, enquanto Yeba foi a responsável por semear o planeta e nutri-lo com seu próprio leite, fazendo com que as primeiras plantas e formas de vida começassem a florescer na terra.

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Após a vida vegetal estar bem estabelecida, Emeko juntou-se ao trovão do alto, que guardava as riquezas e itens mágicos, para formarem a futura Humanidade. A partir desses elementos e folhas de ipadu, formaram-se os primeiros Seres Humanos, um Homem e uma Mulher. A eles foram entregues não apenas as riquezas que o trovão do alto possuía, mas também o conhecimento de medicina e como plantar. O trovão do alto desceu até as terras dos Desana para acompanhar de perto a formação desses novos Seres, os ajudando sempre que possível.

Como podemos perceber, mais uma vez elementos parecidos com os de outros Mitos de Criação misturam-se na narrativa dos Índios Desana. Um deles é a formação do Universo a partir de cada componente e, naturalmente, de Divindades. Quanto a isso, o aspecto materno de Yeba ligado à terra – similar à Gaia na Tradição Grega – também reflete-se num antigo Símbolo da Mãe Terra, tão presente em Culturas Indígenas em geral, mas também em outros povos ao redor do mundo. A Ideia que está por trás desse Símbolo é a da fertilidade, da terra que gera os frutos para os seus Filhos, que, no caso, seriam todos os Seres vivos do planeta. Não por acaso, é muito recorrente nesses Mitos a associação da Terra com uma figura feminina, como já citamos.

Outro ponto interessante acerca desse Mito de Criação é a formação da Humanidade a partir de uma relação Divina. Ela aponta para um caráter Divino que habita em cada Ser Humano, sendo nós “filhos” dos Deuses. Estes, representando a figura Paterna, nos ajudariam a caminhar pelo mundo, nos orientando em nossos dilemas e fazendo com que possamos desenvolver nossas potencialidades. Se o trovão do alto acompanhou os Índios Desana em sua jornada, no Antigo Egito, como conta a Mitologia, o primeiro Faraó fora Osíris, a Divindade que posteriormente habitaria o mundo dos mortos.

O que nos cabe destacar e refletir é como esses Mitos, de maneiras distintas, acabam relacionando elementos e Ideias tão próximas. Além disso, também é importante pensarmos na razão pela qual, geralmente, achamos que os Mitos Indígenas têm menos valor do que os de outras Civilizações mais consolidadas em nosso imaginário e história. Se os Mitos de Criação dessas Culturas apresentam Ideias tão similares, por que conhecemos tanto sobre a Mitologia Greco-Romana, por exemplo, e tão pouco das Culturas Indígenas do nosso continente ou mesmo do nosso país? 

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Poderíamos afirmar, frente a isso, que a Cultura Greco-Romana deixou como legado no Ocidente diversos elementos Culturais e isso é verdade. Entretanto, nossa Cultura também é formada por uma série de elementos advindos dos nativos Americanos, mas pouco sabemos sobre sua História, Mitos e Lendas.

 Assim, é fundamental compreendermos um pouco mais dessas Culturas, pois poderemos, naturalmente, integrar mais elementos dos povos que ajudaram a nos constituir e que, querendo ou não, participam da nossa realidade étnica. Por fim, é fundamental, ao conhecermos mais profundamente essas Mitologias, tirarmos a pecha de povos “primitivos” ou “atrasados”. Basta perceber como as Ideias que regiam esses Homens e Mulheres do passado, integrados com a Natureza e marcando com Símbolos seus ideais, como viveram Ideias tão profundas quanto nossos antepassados Europeus. Portanto, que, ao mergulharmos nessa rica Mitologia, possamos olhar de maneira mais autêntica para os seus ensinamentos, sem Ideias preconcebidas. Quem sabe não descubramos em nós uma conexão singela com essas histórias que há tanto tempo são contadas pelos índios Desana.

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