Desde as civilizações mais antigas, já se desenvolvia a ideia de que morrer é um fenômeno natural da Vida, mas que isso não implica no fim. Ao contrário, o desfecho da vida que conhecemos seria apenas a abertura de um novo momento em que nossa evolução continuaria. Santo Agostinho, filósofo cristão do século V, escreveu que “a morte não é o fim, mas sim a outra margem do caminho”.
Ao longo da nossa história, diversas civilizações desenvolveram meios para auxiliar a caminhada do Ser Humano nessa travessia misteriosa do pós-morte. Com esse intuito, os ritos funerários foram criados. Estes rituais seriam fórmulas, cerimônias e protocolos a serem feitos para garantir a chegada do espírito do morto até o outro mundo. Segundo achados arqueológicos, desde a pré-história o Ser Humano já realizava esses ritos, sendo o sepultamento um dos ritos mais conhecidos.
Ainda hoje, se pararmos para pensar, ao realizarmos velórios se atribui, mesmo que inconscientemente, essa ideia. Velamos pelo morto, que agora jaz como um corpo inerte, mas seu espírito busca acessar uma nova realidade. Assim, nos despedimos, fazemos homenagens e realizamos o enterro como símbolo do descanso para essa vida, mas o início de uma nova jornada.
Considerando essa ideia, talvez a civilização que mais tenha vivido com profundidade o mistério da morte tenha sido os antigos egípcios. Como bem sabemos, seus ritos continham fórmulas mágicas e diversos momentos para purificação e preparação para a Alma do morto na jornada até a Duat, o mundo dos mortos egípcios. Tão complexos e dinâmicos eram esses rituais que existia o “livro dos mortos”, que não era, a bem da verdade, um livro, mas uma espécie de “manual” do que seria necessário realizar para garantir a entrada dessa Alma no novo mundo.
Assim, ainda no Antigo Egito, desenvolveu-se um dos métodos mais eficientes de preservação do corpo, a mumificação. Envolto em mistério, o Deus Anúbis era o responsável por essa prática, sendo o Deus tutelar dos sacerdotes que preparavam o corpo dos mortos através dessa técnica. Para tanto, retirava-se os órgãos para evitar a putrefação, deixando apenas o coração, que seria pesado no tribunal de Maat, a Deusa da Justiça. Os outros órgãos, porém, não eram descartados, pois também cumpriam um papel dentro dessa complexa cerimônia.
Após retirados, os principais órgãos eram depositados em vasos, os chamados vasos canópicos. Estes recipientes ficavam ao lado do sarcófago e eram tutelados por quatro Deuses, os filhos de Hórus. Cada um deles era responsável por um órgão e sua função era a de selar cada um deles para que a Alma do morto pudesse desprender-se mais facilmente do seu aspecto material. Assim, além da purificação do corpo com a retirada das suas partes internas, era fundamental a presença dessas deidades para garantir a caminhada da Alma até o mundo dos mortos. Mas quem eram os filhos de Hórus e por que estavam diretamente ligados aos ritos funerários?
Conta o mito que os filhos de Hórus, apesar de carregar esse nome, não descendem do Deus-Falcão. Eles teriam nascido a partir de uma flor de lótus, que teria brotado das águas primordiais da criação. Vendo-os de cima, o Deus Rá, o Deus dos Deus para os egípcios, mandou que eles fossem resgatados. Assim, Sobek (Deus crocodilo) os salvou do afogamento e lhes foram concedidas diversas tarefas. Uma delas, além de protegerem o “corpo de Osíris”, simbolizando o morto, seria espalhar para as quatro direções a vitória de Hórus sobre Seth. Por causa disso, cada um ficou conhecido por um dos pontos cardeais. Segundo o livro dos mortos egípcio, os filhos de Hórus ainda auxiliam Anúbis em alguns ritos de passagem do morto.
Além desses aspectos, cada Divindade tem uma forma parecida, mudando apenas sua cabeça, sendo dos quatro apenas uma similar ao de um Ser Humano. Fazendo um paralelo, podemos compará-lo à Esfinge, que é composta por diversos animais, mas tem sua cabeça no formato Humano. Simbolicamente, a esfinge representa o Ser Humano que dominou suas partes animais e consegue canalizar sua potência para servir ao seu interesse. Assim, comecemos então a entender cada um deles.
O primeiro que falaremos é o Deus Quebeseuefe, responsável pela direção oeste e quem tutelava o intestino. Esse Deus tinha a cabeça de falcão, similar ao próprio Deus Hórus. Pouco sabemos sobre ele além disso, uma vez que sua função estava ligada somente à proteção dos órgãos do morto. Vale ressaltar, porém, que, para os antigos egípcios, havia uma série de relações entre o que chamamos de “corpo” e “alma”. Desse modo, quando falamos que o Deus protege o intestino, não estamos apenas falando do órgão em si, mas de um aspecto da vida material que já não compõe mais a vida daquela Alma. O Deus, portanto, muito mais evita um “apego” a esse aspecto material do que necessariamente o protege fisicamente.
O próximo filho de Hórus é a Divindade Duamutef, o Deus com cabeça de chacal. Similar ao Deus Anúbis, que também tem uma forte ligação com os ritos funerários, Duamutef protegia o estômago e representava o ponto cardeal leste. Além dessas características, ele também estava associado à Deusa Neit, que tinha como atributos a caça e a guerra. Já o Deus Hapi era o protetor dos pulmões e seu ponto cardeal era o norte. Para aqueles que conhecem um pouco da mitologia egípcia, não devemos confundir essa Divindade com outra, de mesmo nome, que representava o próprio rio Nilo. O Hapi a que nos referimos aqui tem uma cabeça de babuíno e era tutelado por Néftis, esposa de Seth e senhora do céu noturno.
Por último, temos o Deus Imset, Divindade que protegia o fígado e tinha como ponto cardeal o sul. Sua cabeça era Humana. Por vezes o Deus aparecia usando o toucado real, dando-lhe assim o status de nobre, outras vezes aparecia sem nenhuma indumentária. Porém, como já comentado, dentre os filhos de Hórus parece este ser o mais bem representado, tendo aspectos variados dentro da arte egípcia. Outro aspecto interessante é a relação desse Deus com o fígado. Segundo a cultura do antigo povo do Nilo, o fígado era um órgão diretamente ligado às emoções humanas, sendo essa uma das explicações da representação de Imset, uma vez que seria uma das distinções para com os animais. Sua Deusa tutelar era a mãe de Hórus, a grande mãe Ísis. Esse é, naturalmente, um fato que complementa o simbolismo deste Deus, pois Ísis é também a Deusa do Amor, símbolo máximo dos sentimentos humanos.
Por fim, devemos destacar a importância dada à morte para os egípcios. Como bem sabemos, esse não é um fenômeno que passa “em branco” em nenhuma cultura, mas certamente poucos povos se dedicaram tanto a compreender o mistério da morte quanto os egípcios. O reflexo disso é, naturalmente, a quantidade de fórmulas, ritos e Deuses envolvidos no processo. Não podemos considerar esses aspectos como uma simples “crença”, mas sim reconhecermos as ideias e valores colocados nesse momento tão intenso para o Ser Humano.
Visto isso, a função dos filhos de Hórus em todo o rito de passagem para o outro mundo era fundamental. Eles representavam, acima de qualquer proteção, a garantia que a alma do morto seguiria para sua nova jornada, sem apegar-se aos elementos que deixaria em vida. Assim, zelavam não apenas pelo “corpo de Osíris”, mas não permitiam o retorno da alma para a vida material de antes. Em último caso, podemos falar sobre a aceitação da morte como uma viagem para um outro plano.
Não há dúvidas de que os egípcios sofriam nesses momentos, assim como nós também sentimos uma grande dor ao perder um ente querido. Não achemos, portanto, que os ritos fúnebres dessa civilização lhes deixavam insensíveis a essas emoções, mas ajudavam a compreender melhor esse Mistério. De igual modo, podemos refletir sobre o que devemos desapegar para tornar essas situações mais leves, conscientes e, ao mesmo tempo, marcantes em nossa experiência. Assim, quem sabe, não consigamos chegar até a outra margem do caminho, como disse Santo Agostinho, de maneira mais plena e viva.