Vivemos em uma era que despreza o ócio criativo, a arte de parar e permitir que a alma respire. A pausa, que antes era parte essencial do ritmo da vida, hoje é vista com desconfiança, quase como um defeito de caráter. Quem busca momentos para desacelerar corre o risco de ser rotulado como improdutivo, preguiçoso ou mesmo chamado de “vagabundo”. Infelizmente, a cultura atual vê valor apenas naqueles que estão constantemente produzindo, ou seja, que mantêm-se ocupados, com uma agenda cheia, e que usam a exaustão quase como uma medalha. Quanto mais cansado alguém se mostra, mais “importante” ou responsável parece ser.
Nesse cenário acelerado, o descanso deixou de ser uma necessidade humana para se tornar um prêmio condicionado ao desempenho. Descansa-se apenas depois de cumprir metas, bater recordes, ultrapassar limites que, muitas vezes, nunca deveriam ter sido ultrapassados. O ócio, quando existe, é invadido por culpa e por pensamentos como “eu deveria estar produzindo”. Mesmo nos momentos de pausa, a mente continua em estado de alerta, revisando tarefas, antecipando problemas e planejando o próximo passo.
O fato é que desaprendemos a descansar. A arte de parar, portanto, não é apenas um gesto físico, mas um exercício necessário para retornarmos a cultivar não somente o trabalho e a obtenção de recursos, mas também prazeres que são mais sutis, que fogem da expectativa atual. É nesse contexto que afirmarmos que parar exige coragem, pois nos faz ir contra a corrente de um mundo que glorifica a pressa e despreza a contemplação; exige suportar o silêncio, enfrentar o vazio momentâneo que surge quando cessam as distrações e, sobretudo, permitir-se existir sem uma obrigação imediata a ser cumprida. É nesse espaço aparentemente improdutivo que algo essencial acontece: o ser humano se reencontra consigo mesmo.
Os divinos ócios
Para compreender o valor do ócio, é preciso voltar no tempo, a uma civilização que enxergava a vida sob um prisma radicalmente diferente do nosso: a Grécia Antiga. Os gregos não apenas toleravam o ócio, eles o celebravam por compreender sua necessidade para a vida humana. Entretanto, devemos entender o que de fato essa palavra significa, afinal, nos tempos atuais, distorcemos a sua ideia original e associamos o ócio apenas ao “não fazer nada”. Para os gregos, porém, o ócio não era sinônimo de inatividade, mas o espaço privilegiado onde a alma podia se dedicar às questões mais elevadas da existência.
É importante destacar que a palavra “escola” deriva justamente de scholé, que significa “ócio” em grego. Logo, o lugar do aprendizado, da formação intelectual e moral, nasceu da ideia de ócio. Isso, por si só, revela uma inversão completa em relação ao nosso tempo, pois o ócio é, na verdade, o momento de cultivarmos novos saberes, de aprendermos novas ideias, não pensando na produção ou em como ganhar mais dinheiro, e sim aprendendo aquilo que nossa alma tanto necessita.
Desse modo, o que os gregos, como Platão e Sócrates, chamavam de “divinos ócios” eram momentos dedicados à contemplação, à filosofia, à arte e à observação da natureza em busca de uma percepção mais profunda da vida, algo que seria mais difícil nos momentos de trabalho e lazer. Não se tratava de fugir das responsabilidades, mas de compreender que o trabalho não poderia ocupar toda a existência humana sem empobrecê-la.
Diante disso, é importante atentarmos que, para os gregos, um dia ideal deveria ser dividido em quatro momentos, cada um ocupando seis horas do nosso dia: deveríamos dedicar 6 horas ao trabalho, 6 horas ao sono, 6 horas ao lazer e 6 horas aos divinos ócios. Portanto, jamais podemos confundir a ideia de lazer, ou seja, algo que fazemos para nos divertir e entreter, com o ócio, que é o momento de busca interior e reflexão.
O ócio, portanto, era visto como condição necessária para o florescimento da sabedoria. Aristóteles afirmava que a felicidade humana estava ligada à contemplação, e esta só era possível quando o indivíduo se libertava da urgência constante de produzir. Nesse sentido, o trabalho era um meio, não um fim. Trabalhava-se para garantir a sobrevivência e a ordem da pólis, mas era no ócio que o homem se realizava plenamente. O cidadão livre era aquele que tinha tempo para pensar, dialogar, criar e refletir sobre o sentido da vida, e, naturalmente, aquele que conseguia cultivar esses momentos com profundidade. O ócio era, portanto, um treino da alma, um exercício de atenção em busca da sabedoria.
Como podemos notar, os gregos compreendiam algo que hoje parece ter sido esquecido: sem pausas, a vida se torna mecânica e sem Vida. É curioso perceber que estamos vivendo, de fato, mas não no sentido profundo dessa palavra. Muitas vezes, levamos uma existência programada, com pouca liberdade, e caímos na ilusão de que devemos comprar e produzir sempre mais. Porém, como um deserto, esse estilo de vida é árido e com poucos oásis para descansarmos. Uma vida verdadeiramente humana não deve ser assim, afinal, sem contemplação, o ser humano se reduz a uma função. Logo, o ócio não era fuga da realidade, mas um mergulho mais profundo nela.
Dos divinos ócios para um mundo que odeia parar
Se para os gregos o ócio era divino, para a sociedade contemporânea ele se tornou quase um pecado. Vivemos sob a lógica da produtividade incessante, na qual o valor de uma pessoa está diretamente ligado à sua capacidade de produzir resultados mensuráveis. O tempo passou a ser visto como recurso escasso que não pode ser “desperdiçado”, por isso devemos aproveitar cada hora do dia, cada minuto é valioso. Consequentemente, vivemos obcecados e com medo de “perdermos tempo”.
Essa mentalidade transformou o ócio em algo suspeito. Quem não está extremamente se importando com ela parece estar errado, e quem não estava atrelado a ela era visto em alguns momentos da nossa história recente como alguém fora da lei.
Não por acaso, no início do século XX o Brasil criou a famosa “lei da vadiagem”, na qual um indivíduo que fosse pego jogando na rua, praticando capoeira ou apenas, em alguns casos, batendo papo pelas calçadas era visto como um criminoso, um vadio, e chegava a ser preso por isso. Essa figura, que mais tarde também começou a ser visto como o “malandro” no Rio de Janeiro, era o oposto do “cidadão de bem”, ocupado e sempre produzindo para a sociedade.
Esse juízo de valor, com base em nossas ocupações, como muitas vezes é chamado os nossos ofícios, criou raízes profundas. A pergunta “o que você faz?” tornou-se uma forma de definir quem alguém é, colocando um valor exacerbado pelas nossas profissões. E, quando a resposta não envolve uma ocupação clara, instala-se um certo constrangimento, como se existir, por si só, não fosse suficiente.
Além disso, a tecnologia intensificou esse ritmo. Estamos permanentemente conectados, acessíveis e disponíveis. Mesmo fora do horário de trabalho, somos bombardeados por notificações, mensagens e estímulos, algo que há décadas era impensável. Com essa mudança de estarmos conectados 24 horas, mesmo sem querer, levamos o nosso trabalho e suas preocupações e demandas para todo local que vamos. Se antigamente o horário de trabalho era bem definido e preenchido em nosso dia a dia, hoje isso se diluiu e parece que, de certo modo, é preciso estar sempre disponível para atender as demandas.
Com isso, o descanso deixou de ser um estado natural e passou a ser uma atividade que precisa ser planejada e que, muitas vezes, é pouco respeitada. Entretanto, é preciso sermos justos: o problema não é apenas o excesso de trabalho, mas a incapacidade de se desconectar. Isso não é um problema do mundo do trabalho, mas cultivado por todos nós. Mesmo quando queremos descansar, quando estamos tirando férias, por exemplo, a mente continua acelerada, seja por demandas reais ou pela culpa de estar “descansando”. O resultado é o mesmo: continuamos exaustos.
O ócio, nesse contexto, torna-se uma necessidade urgente, pois pode nos ensinar que não devemos produzir a todo momento e que existe na vida momentos tão fundamentais quanto o trabalho. Cultivar o ócio, portanto, pode ser um ato revolucionário diante de um mundo que se recusa parar.
O ócio pode ser útil?
Frente a esses argumentos, nos parece sensato mostrar que o ócio é extremamente útil para a nossa vida. Mas não pensemos de maneira utilitarista, não achemos que o fato de apenas cultivar o ócio por si só nos trará benefícios. Na verdade, o que ocorre é que o ócio nos dá espaço para respirar, para caminharmos por uma direção própria, sem ser a das obrigações cotidianas e com isso, consequentemente, ganhamos um novo mundo para explorar. Por isso podemos dizer que o ócio é fundamental para o desenvolvimento pessoal, pois ao parar, entramos em contato conosco e somos convidados a olhar para dentro, a reconhecer sentimentos, desejos e conflitos.
Esse encontro consigo mesmo é, ao mesmo tempo, desafiador e libertador. Desafiador porque revela fragilidades, inseguranças e perguntas até então sem respostas. Entretanto, passa a cultivar em nós o sentimento de liberdade porque nos permite reconstruir nossa relação com o mundo a partir de escolhas mais autênticas. Ao mesmo tempo, ao falarmos de desenvolvimento pessoal devemos entender que não se trata de programar um tempo para esse tipo de vida interior.
O desenvolvimento pessoal não acontece em ritmo industrial, portanto, não é medido rapidamente, muito menos com metas a serem batidas a qualquer preço. Assim como a terra precisa descansar para voltar a ser fértil, a mente humana também necessita de pausas para não se esgotar. Um solo explorado sem descanso torna-se árido; uma vida explorada sem ócio torna-se igualmente improdutiva.
Outro ponto em que o ócio nos ajuda a desenvolver é a criatividade, algo tão valorizado nos discursos corporativos, mas que sua prática precisa de tempo para se manifestar. Não é possível ser criativo de modo extremamente produtivo, por isso que profissões que lidam diretamente com essa ferramenta única da humanidade precisam de momentos de pausa, de contrarritmos para poder deixar a mente receptiva a novas ideias. Não é coincidência que ideias brilhantes surjam durante um banho, uma caminhada despretensiosa ou um momento de tédio. O ócio cria o espaço onde a imaginação pode vagar sem rumo e é justamente nesse vagar que algo novo emerge.
Além disso, o ócio nos reconecta com o prazer simples de existir, o que por si só nos traz um grande benefício: caminhar sem destino, observar o céu, ouvir uma música sem fazer mais nada, sentar-se em silêncio. Esses momentos, aparentemente banais e aos quais cada vez mais damos menos importância, alimentam algo profundo em nós, uma vez que nos lembram que a vida não é apenas um projeto a ser gerenciado, mas uma experiência a ser vivida. Essa percepção sobre a vida, ao nascer, nos faz aprender a caminhar com mais leveza pelos dias.
O verdadeiro ócio desenvolve em nós uma percepção mais amigável de nós mesmos. Ele pode nos ensinar a respeitar limites e a valorizar o próprio ritmo, sem comparações desnecessárias com os demais. Essa escuta interna fortalece a autonomia e reduz a dependência de validações externas. Não é exagero dizer que o ócio contribui para uma vida mais íntegra. Entretanto, isso não irá ocorrer rapidamente. A arte de parar não se aprende de uma vez, pois é um exercício contínuo, um treino diário da alma. Começa com pequenos gestos, desde desligar notificações, reservar momentos sem agenda, permitir-se não responder imediatamente uma mensagem.
O perigo dos excessos
O ser humano tem uma tendência aos extremos. Assim, se por um lado hoje vivemos em uma busca exacerbada pela produção e por se sentir cada vez mais ocupado, por outro podemos começar a pender a outro extremo e ficar ociosos demasiadamente, caindo na indolência. Há quem confunda ócio com escapismo, ou seja, de achar que é preciso “fugir” da vida, da rotina, para poder descansar. Não se trata disso, definitivamente.
Enquanto o escapismo busca fugir da realidade, o ócio é uma forma de se aprofundar na vida interna, e isso pode ser feito dentro de nossas casas, escritórios, carros e qualquer ambiente do mundo social. Não precisamos de um retiro sabático para nos encontrar, mas sim de olharmos para dentro de nós e reconhecer o que nos é válido.
Visto isso, é preciso observar se não começamos a cultivar o ócio como uma forma de fugir da realidade ou se nunca encontrarmos um momento para descansar por não conseguirmos “fugir” do nosso cotidiano. É por isso que não devemos recorrer aos excessos e devemos aprender a criar pequenos momentos de pausas e contrarritmos em nosso dia a dia. Saber, por exemplo, cultivar um hobby todos os dias, mesmo que por alguns minutos, encontrar espaço na agenda para atividade física, encontros com amigos e conversas que não envolvam trabalho ou preocupações, apenas momentos de pura convivência.
Talvez possamos pensar que já fazemos isso, e, de certo modo, a maioria das pessoas já possuem tais hábitos. Entretanto, muitas vezes estamos realizando tais ações e não percebemos que a fazemos no piloto automático, ou seja, que não estamos de fato concentrados nessa atividade. Nesses casos, devemos nos observar e perceber que criamos padrões. Ao praticar atividade física, por exemplo, pensamos que estamos descansando nossa mente, mas comumente estamos nos exercitando escutando música, ouvindo podcast ou outro tipo de estímulo mental. Assim, acabamos criando a falsa sensação de que estamos descansando, quando, na verdade, só estamos gerando mais estímulos.
Ao notarmos tais hábitos, perceberemos que o que achamos que é um descanso é, no fundo, apenas uma ilusão disfarçada de otimização do tempo. Nesse contexto, o ócio, quando bem entendido e cultivado, cria uma distância saudável entre nós e tais práticas cotidianas que mais nos desconectam do momento presente do que nos ajudam a concentrar. E isso, afinal, nos gera o excesso oposto: achamos que já estamos descansando, quando, ao invés disso, nunca paramos de estimular nossa mente.
O ócio é uma maneira de encontrar a si mesmo
Frente a isso, é curioso perceber que muitas tradições espirituais e filosóficas sempre valorizaram o recolhimento e a busca do verdadeiro ócio, que nada mais é do que essa tentativa de encontrar aquilo que nos realiza. Em diversas tradições, isso se manifesta com práticas de meditação e silêncio; porém, isso não necessariamente pode nos levar a reflexão. Podemos ficar em silêncio e mesmo assim manter nossa mente ocupada, algo que acontece com a maioria das pessoas. É por isso que o ócio não é simplesmente “não fazer nada”, mas ser capaz de se esvaziar por dentro para encontrar o que subjaz em nosso ser.
Ao tentarmos encontrar esse aspecto mais profundo, é possível nos depararmos com um medo muito antigo: o vazio interior. Passamos uma vida inteira cultivando uma autoimagem com base em nossas profissões, nossos valores, nossas percepções de mundo e dogmas, mas o que resiste ao tirarmos tudo isso? Quem somos quando realmente queremos nos descobrir por trás de todos esses véus? Em uma vida totalmente ocupada, não há espaço para o mistério que existe em cada um de nós. Como prática, o ócio pode nos levar ao autoconhecimento por nos colocar em condição de perceber quem realmente somos.
Reaprender a parar para reaprender a viver
É por isso que entendemos que aprender a cultivar o ócio, essas pausas para um momento de vida interior, é fundamental para nos encontrarmos ao longo da vida. Sem isso, não teremos absolutamente nada atemporal para nos manter, visto que uma hora todos os véus, seja o do emprego, o do conforto ou qualquer outro, se esvai nas areias do tempo. Se o mundo atual introduziu em nós que devemos correr em busca do sucesso a qualquer preço, produzindo sem pensar em descansar e preenchendo todos os espaços da nossa agenda, agora é importante reconhecer que caímos em uma grande armadilha.
O ócio, tão mal compreendido e tantas vezes condenado, revela-se não como inimigo da vida ativa, mas como uma expressão de uma lei da natureza; afinal, ao olharmos para o cosmos e o mundo natural, entendemos que há ciclos, momentos em que há aceleração e desaceleração, crescimento, estabilidade e novos crescimentos. Assim também deve ocorrer com o ser humano, e o ócio é o espaço onde podemos cultivar uma vida interna que, quando bem trabalhada, gera frutos externos ao longo do tempo.
Por fim, lembremos que a arte de parar não trata de abandonar responsabilidades, mas de ressignificá-las. Trata-se de compreender que uma vida plenamente vivida não se mede apenas pelo que foi feito, mas também pelo que foi sentido, pensado e assimilado. Em tempos acelerados, escolher parar é um ato de coragem. É nadar contra a corrente de uma cultura que confunde movimento com progresso e exaustão com virtude. Talvez não possamos desacelerar o mundo, mas podemos desacelerar a nós mesmos. E, ao fazer isso, transformamos nossa relação com o tempo, com o trabalho e com o sentido da existência. O ócio, longe de ser perda, é ganho. Ganho de clareza, de humanidade, de profundidade.
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