Admiramos o Antigo Egito por diversos motivos. Sem dúvida suas construções gigantescas, as pirâmides e a Esfinge, nos impressionam pela precisão e resistência ao tempo. Entretanto, quando mergulhamos na cultura dessa civilização percebemos ainda mais elementos dignos de respeito e inspiração. Uma dessas características é o Amor e Respeito à Justiça, a Verdade e a Ordem.
Todos esses atributos se concentram em uma só figura, a da Deusa Maat. O Faraó, na posição de governante do Egito e pontífice entre os homens e os Deuses, tinha como obrigação garantir que esses três elementos reinassem por todo o Império Egípcio. Em seus momentos de auge, o Egito conseguiu construir uma sólida identidade com essas Virtudes, o que se comprova pelas suas construções e pela diversidade de Deuses que ajudam, em seus mitos, que as leis e a ordem continuem existindo.
Uma dessas Divindades é Sekhmet, a Deusa com cabeça de leoa, esposa do Deus Ptá. Ela também é conhecida como “o olho de Rá”, mas para entendermos seus nomes precisamos conhecer o mito que a envolve.
Segundo a mitologia, Sekhmet é filha de Rá, o Deus do Sol, sendo conhecida como a Deusa da guerra e da vingança para os egípcios. Conta o mito que nos primórdios o Egito era governado por Rá e graças ao seu bom governo o mundo era próspero e as pessoas eram justas e bondosas. Porém, com o passar do tempo, as pessoas foram deixando de obedecer ao Deus, que ficava cada vez mais velho. Com isso o Egito, lugar em que a Ordem e a Justiça eram respeitadas, passou a ser um campo de desobediência e injustiça. Os Seres Humanos, outrora bondosos, passaram a se corromper uns com os outros e logo o mundo caiu na obscuridade.
Rá não suportava ver seus súditos naquela condição e decidiu aplicar um castigo severo à Humanidade. A Divindade Solar pediu então que Sekhmet começasse a caçar às pessoas e devorá-las, como uma forma de lembrá-las das antigas Virtudes que cultivavam. A Deusa Leoa então começa sua jornada e caça suas presas sem piedade. Sekhmet come a carne e bebe o sangue dos impuros, os vis e injustos. De início Rá acredita que seu plano para restaurar a ordem está funcionando e pede para que Sekhmet pare com a carnificina, pois a Humanidade já voltava-se para às Virtudes. Para a surpresa do Deus do Sol, a Deusa-Leoa não para e continua sua caçada contra os Seres Humanos.
Sem conseguir pensar em um modo de parar a sanguinária Deusa, Rá pede ajuda dos outros Deuses para encontrarem um meio de frear a fúria de Sekhmet. Depois de certo tempo, decidiram por enganar a Leoa: derramaram em seu caminho uma grande quantidade de vinho, que por sua cor vermelha confundiu a Deusa. Sekhmet se aproximou da bebida e pensando que era sangue, tomou grande parte do líquido, caindo bêbada no chão. Após ficar inconsciente, o Deus Rá a transformou em Hathor, a Deusa da Beleza, Alegria e Amor, e assim parou a carnificina encabeçada por Sekhmet.
À primeira vista podemos achar que esse é um mito completamente sem sentido, porém, não podemos analisar qualquer história mitológica de maneira literal. Precisamos, antes de mais nada, compreender seus símbolos para enxergar as chaves escondidas por trás dos fatos narrados.
Primeiramente, devemos compreender que Sekhmet é a Deusa da Guerra, o que lhe atribui um caráter violento em sua conduta. Porém, a batalha que a Deusa-Leoa trava não é apenas em um aspecto físico, mas principalmente frente a conduta humana. A guerra, como bem sabemos, é marcada pelo embate de dois lados. No caso do mito, Sekhmet desce à Terra para combater a Humanidade que desviava-se do seu propósito, causando desordem e injustiça no mundo. Considerando tais pontos, Sekhmet não é a causa da guerra, mas a força necessária para restabelecer a Ordem. Logo, a Deusa simboliza a consequência de nossas ações quando desviamos do nosso destino.
Colocando essa ideia na prática, podemos fazer um paralelo com a Lei de Ação e Reação: Se lembrarmos das nossas aulas de física na escola, recordaremos que a Lei de Ação e Reação diz que toda ação produz uma reação, de mesma intensidade e sentido, porém na direção contrária. Portanto, se empurrarmos um carro com determinada força, este também exercerá uma força igual sobre nossos corpos.
Levando essa Lei para um plano mais sutil, podemos considerar que ao fazermos ações vis e injustas, é preciso existir uma força contrária às nossas ações para voltarmos ao nosso centro e mudarmos o nosso comportamento. Por isso o velho ditado diz “só colhemos o que plantamos”. Sekhmet, portanto, representa não apenas a guerra, mas essa força de levar a Humanidade de volta à Ordem e à Justiça. Poderíamos fazer um paralelo similar à ideia de Karma, advinda da tradição hindu, que nos fala sobre uma Lei que nos permite voltar ao nosso Dharma, que seria o nosso destino enquanto Seres Humanos. Porém, vamos nos ater ao mito e símbolos da Deusa Egípcia.
Um outro aspecto interessante do mito de Sekhmet está no fato dela não parar quando Rá a ordena, o que faz com que ele monte então uma nova estratégia para frear a matança da Leoa. Para entendermos essa ideia precisamos diferenciar os dois tipos de guerra na qual geralmente travamos: a que advém da Sabedoria e da Justiça, e a que vem da ira e da violência.
Em muitas tradições há dois Deuses da Guerra. Na Grécia, por exemplo, temos Atena e Ares, que apresentam esses dois aspectos do combate. Enquanto uma é ao mesmo tempo a Deusa da Sabedoria e da Guerra, o outro tem um aspecto voltado para a fúria e o desejo de combater. Quando falamos do Egito, porém, Sekhmet aparece sozinha como Deusa da Guerra e por isso, em seu mito, ela apresenta os dois comportamentos, representando as duas facetas desse aspecto Humano.
Se no início do mito Sekhmet busca o combate necessário para restaurar a ordem, no fim, sua fúria só consegue ser acalmada após uma intervenção Divina. Se refletirmos sobre isso, compreendemos que ao buscarmos travar combates sem uma causa nobre, ou seja, sem um motivo real e justo, podemos ser guiados por um desejo de violência. Visto isso, Sekhmet com sede de sangue humano representa a má canalização da guerra, traduzida pelos egípcios como a vingança, aquela que busca apenas externalizar uma violência, seja ela justa ou não.
Em nosso cotidiano é possível que tenhamos momentos de ira e raiva. Talvez não fisicamente, mas ao apreciar uma luta ou consumir entretenimento que apresente a violência de maneira direta estamos, inconscientemente, alimentando um desejo nosso ligado a esse aspecto. É comum, por exemplo, observar em atos de violência que o agressor afirma estar “fazendo justiça”, quando, na verdade, ele apenas encontrou um meio de externalizar um desejo reprimido.
Logo, é preciso estarmos atentos e vigilantes, tal qual o olho de Rá, para sabermos até que ponto nossas batalhas estão sendo travadas de maneira justa. Porém, é importante perguntarmos como podemos, na prática, saber disso? Como saber se minhas batalhas cotidianas são nobres? É possível nos inspirarmos no mito para encontrarmos essa resposta.
Antes de mais nada, devemos nos perguntar a razão pela qual desejamos começar um confronto. Não estamos falando, necessariamente, de um confronto físico, mas nos mais diversos aspectos da Vida Humana. Seja físico, energético, emocional ou mental, estamos sempre travando uma guerra conosco ou com outra pessoa. Às vezes podemos estar combatendo uma emoção ruim, um pensamento negativo ou mesmo um vício que rouba-nos tempo e energia, e essas são batalhas que são justas de serem travadas, uma vez que, na maioria das vezes, nos separam de nós mesmos e dos demais, e nos causam sofrimento.
Entretanto, na maioria das vezes, gastamos nosso tempo criticando as outras pessoas e entrando em confronto por situações que não mudarão em nada nossa experiência. Gastamos energia em um combate infrutífero, tendo como motivação nosso orgulho, nossa raiva ou nossa vaidade. Essa é, em última análise, a guerra mal canalizada que Sekhmet trava no mito, na qual deixa-se de buscar a Justiça e começa a predominar o desejo e a vingança.
Portanto, esse é um primeiro passo para identificarmos o que é válido do que não é. Uma segunda dica que o mito de Sekhmet nos aponta é sabermos discernir se estamos caminhando para a Ordem e a Justiça ou se estamos nos afastando dessas Virtudes. Observemos a vida que nos cerca e pensemos no nosso cotidiano: que aspecto precisamos melhorar para trazer mais Ordem e Justiça ao nosso redor? Desde algo simples, como arrumar a cama ou o local de trabalho, até a coisas mais sutis como desfazer-se de uma mágoa causada por outra pessoa, são exemplos de batalhas justas a serem travadas. A essas, devemos ser tal qual a Deusa-Leoa: implacáveis e incansáveis, até que a Ordem possa reinar em nossas vidas.
Esse é, por fim, o objetivo de Sekhmet: restabelecer a Ordem e a Justiça no mundo. Podemos carregar essas ideias conosco diariamente e nos lembrar, a todo momento, qual a verdadeira guerra que devemos travar. Sabemos que a principal delas, e provavelmente a mais nobre, seja lutar contra si mesmo: os defeitos e debilidades que carregamos ao longo da vida e evitamos confrontar. Que possamos nos lembrar de Sekhmet e entender que o limite da guerra justa e da vingança está no sentido e no propósito pelo qual batalhamos. Sem perder isso de vista podemos, conscientemente, caminhar de volta ao nosso destino e restabelecer a Ordem e a Justiça no nosso mundo, tal qual o desejo de Rá.