Todos nós conhecemos a imagem de um homem de pernas e braços abertos, duplicada dentro de um círculo e um quadrado, numa folha amarelada e desgastada pelo tempo, de autoria de Leonardo Da Vinci: o Homem Vitruviano. Mas poucos de nós sabem a importância deste estudo do gênio renascentista para a Humanidade.
Da Vinci dedicou sua Vida à busca da proporção ideal. Aquela que, segundo a tradição grega, que foi inspiração para as obras de Da Vinci, seria capaz de fazer com que qualquer forma tivesse Beleza. É no Homem Vitruviano que o artista, cientista, filósofo, arquiteto e inventor consegue fazer a síntese das proporções encontradas na Natureza, que também estão presentes no corpo humano.
O Homem renascentista era aquele que percebendo a carência de Sabedoria, Virtudes e Valores Morais na sociedade medieval, se debruçava sobre a tradição da Humanidade. Inspirado na cultura greco-romana, esse Homem renascentista aspirava por respostas para a Vida. Por isso o nome Renascimento, que seria a renovação do Homem em busca de sua natureza e que se estenderia para além dos dogmas da Idade Média. Certamente podemos definir o Renascimento como um resgate das ideias dos filósofos e artistas de um período de ouro da Humanidade em um momento de quase esquecimento dessas ideias.
Partindo dessa ideia, o Homem Vitruviano é o resultado dos estudos que Leonardo Da Vinci fez a respeito da obra do arquiteto romano Marcos Vitrúvio Polião. Em seu tempo, vários contemporâneos de Da Vinci estavam tentando achar respostas para o desafio lançado por Vitrúvio no séc I a.C., no livro Da Arquitetura. O livro foi descoberto em 1414 e é um tratado muito rico das experiências de construção do autor e principalmente do pensamento vigente sobre arte, arquitetura, proporção e Leis da Vida.
Entretanto, para entendermos melhor o que significa buscar essas proporções e Leis da Vida é necessário recordarmos a filosofia grega. Segundo Platão, por exemplo, tudo que está no mundo sensível (ou seja, perceptível através dos sentidos) é somente a sombra de uma ideia perfeita. Assim como o arquiteto pensa uma casa ideal antes de construí-la, também existiria uma ideia de Ser Humano e de tudo que existe no Universo, ou seja, há um modelo perfeito de quem somos, e de todas as coisas da Vida, no mundo inteligível. Nosso objetivo seria, portanto, nos conectarmos com esta ideia de Ser Humano e executá-la da melhor forma possível. Dessa maneira, quanto mais o Homem buscar alcançar essa ideia que o compõe, tornando-se assim um reflexo material desse arquétipo, melhor será a sua capacidade de trazer essas ideias para a própria Vida.
Desta forma, os gregos nos ensinaram que tudo que conhecemos possui uma lei por trás, uma ideia perfeita. Logo, as flores, o mar, o sol, os animais, os Seres Humanos devem buscar exprimir, a partir de suas formas, a perfeição da Vida. Partindo desse ponto, por que seria diferente com a arquitetura? É isto, entre outras coisas, que os gregos e os romanos deixaram como legado. A possibilidade de, através dos feitos humanos, sermos capazes de imitar a Natureza na sua Beleza, Bondade e Justiça em tudo que construímos, sejam edifícios, templos, cidades ou até mesmo uma civilização inteira. Mas como isso ocorreria?
Pitágoras, um sábio grego, dizia que todas as Leis da Vida podem ser representadas em números. Peguemos como exemplo a lei da gravidade: ela foi representada por uma fórmula matemática. Quando tratamos da música, esta também é baseada em relações matemáticas que tem por objetivo exprimir a Harmonia entre os tons e notas. Do mesmo modo, a Beleza, que tem como atributo a Harmonia, também tem um número e uma proporção ideal. Chamamos esse número de proporção áurea, que é expressada pelo número 1,618. A tradição grega nos ensina que tudo que existe na Natureza possui esta proporção da Beleza, e, quando a contemplamos, conseguimos perceber a Harmonia das formas. Essa proporção está expressa nas folhas de uma árvore que crescem nesta proporção, na concha do nautilus, nas pétalas de uma flor, nas formas das ondas do mar e até mesmo na própria Via Láctea.
O número de ouro origina uma proporção áurea que pode ser representada por esta espiral que vemos na imagem e que podemos também encontrar em tudo na natureza, inclusive na proporção do corpo humano.
Do mesmo modo, Vitrúvio, o arquiteto romano que já citamos nesse texto, nos mostra em seu livro que um edifício para ser perfeito, por exemplo, deveria estar na mesma proporção divina que também se encontra no Ser Humano. E este é o grande desafio que os contemporâneos de Da Vinci tentaram responder, mas que somente o grande mestre renascentista conseguiu ter êxito.
As diretivas de Vitrúvio foram estas:
“Para que qualquer edifício seja belo deve ter simetria e proporções perfeitas, como as encontradas na natureza. E como o objeto mais perfeito da natureza é o homem, um edifício perfeito deve ter as proporções do corpo humano.”
Era necessário então que estas proporções do corpo humano perfeito coubessem em um círculo e um quadrado ao mesmo tempo, com braços e pernas estendidas e cujo centro do círculo fosse o umbigo. O círculo para a tradição grega é símbolo das ideias perfeitas, do elemento mais espiritual que existe em tudo. Já o quadrado traz a simbologia deste mundo sensível, que é um reflexo do mundo das ideias e se manifesta através das formas que encontramos na Natureza. O Homem estaria então entre esses dois mundos, o seu lado mais mundano e material e o seu lado mais espiritual, ligado a sua essência.
Esse símbolo tão profundo e belo da condição humana está presente em diversas tradições da Humanidade, como a cruz latina cujo segmento horizontal significa a matéria e o vertical, o espírito; ou mesmo quando Shakespeare diz, através de Hamlet, a sua famosa frase “Ser ou não ser, eis a questão”.
Da Vinci resolveu o enigma desenhando primeiramente as proporções do corpo humano dentro do círculo perfeito e tendo como centro o umbigo – nosso centro espiritual. E depois percebeu que o quadrado precisaria se deslocar um pouco para baixo, com um outro centro – o centro do nosso lado mais mundano, mais animal, que é o órgão sexual humano. Desta forma, Da Vinci conseguiu resolver aquilo que seus contemporâneos não conseguiram, percebeu que havia dois centros humanos, aquele guiado pelos instintos e outro, o mais espiritual, guiado pelo umbigo.
Assim, tudo se encaixou perfeitamente: as mãos tocaram o círculo e também o quadrado, os pés descansaram sobre as duas formas e as proporções continuaram a ser as mesmas de um Ser Humano Ideal. Além do desenho, Da Vinci colocou nas laterais as anotações das proporções, resultado do enigma de Vitrúvio:
“Se abres as pernas o suficiente para diminuir a altura em 1/14 e se estendes e levantas os braços até que teus dedos médios alcancem o nível da parte superior de tua cabeça, deves saber que o centro das extremidades estendidas estará no umbigo e o espaço entre as pernas será um triângulo equilátero. O comprimento dos braços estendidos de um homem é igual à sua altura.”
Vitrúvio, como arquiteto, fez grandes contribuições para as proporções ideais de um edifício perfeito, de uma casa, de templos. Sem dúvida, o Homem Vitruviano de Da Vinci também foi uma imensa contribuição para a Arte de projetar edifícios, influenciando grandes nomes do seu tempo, como o arquiteto Andrea Palladio, responsável por várias construções na Itália, inclusive para o Vaticano. Para além disso, a proporção humana ideal proposta por Vitrúvio e colocada em prática por Da Vinci tornou-se um legado para a Humanidade, muito além da arquitetura e das razões matemáticas. O Homem Vitruviano mostra aquilo que sábios, filósofos e poetas nos contam desde tempos imemoriais: nós, Seres Humanos, através do nosso livre arbítrio e diante das situações da Vida, podemos escolher entre o nosso lado mais animal e instintivo e o nosso lado mais humano e virtuoso. Esta é nossa condição humana. Que saibamos escolher cada vez mais pelo nosso melhor lado, pelo espiritual em nós, pois claramente é o que a Humanidade precisa e é o que todo o Cosmos espera de nós. Que cheguemos ao nosso Ideal!