Qual o maior mal do homem? Esquecer. Uma obra de arte, para muitas das civilizações antigas, tinha uma função sagrada: nos conectar com elementos mais profundos de nossa própria consciência. Assim, todos os componentes de uma canção, poesia, ou encenação eram pensados de forma que exerciam sobre o homem não apenas um fascínio estético, mas um tão importante quanto, fascínio simbólico.
Por isso, forma e conteúdo não podiam andar separados, não poderiam ser divergentes. E isso é o que faz a grandiosidade de uma obra até os dias de hoje. Ao entrar em contato com uma produção assim, nossa psique voa alto, nosso corpo estremece, nossos olhos marejam. Isso acontece com o vislumbre de um Davi de Michelangelo, com o olhar penetrante e perseguidor da Monalisa de Da Vinci, com a suave melodia de Serenade de Schubert e com as quase duas horas e meia do filme de Joel Schumacher, O Fantasma da Ópera.
Em todas essas ocasiões, um sentimento nos invade. Nossas emoções se equilibram, mesmo que o peito esteja cheio de uma vibração intensa de quem viu o sublime. Mas, no fim experimentamos a calmaria de quem está no centro de um navio em plena tempestade. As margens até balançam, mas por estarmos no centro, o empuxo, essa força que empurra o barco de um lado para outro e costuma marear marinheiros menos experientes, é menor. É como se voltássemos para casa, depois de uma longa e penosa viagem. Cansados, mas felizes. Melancólicos, mas em paz. É quase uma dor, mas não sofremos. Talvez, estejamos de fato de volta ao lar.
Platão (parece que não há limites para aprendermos com esse grande mestre grego) defende que as almas já sabem tudo o que precisam e que apenas esquecem disso na hora da encarnação. Assim, nosso processo de educação seria o de eduzir, trazer para fora aquilo que já temos. Era nisso que os gregos acreditavam. Por isso, eles usavam a palavra Lete para esquecimento e Aleteia para verdade. Antes de encarnar, nossas almas beberiam no rio do esquecimento e passariam a vida na busca de lembrar-se.
Esta cena é descrita no Livro X do diálogo platônico “A República”. E deve ser por isso que quando contatamos um desses exemplares de verdadeira cultura humana, nos sentimos tão à vontade e somos arrebatados inteiramente, naquilo que Platão chamou de reminiscência, ou seja, uma lembrança da nossa alma. Dessa forma, nossa vida seria um exercício metafísico de memória: aprender seria lembrar quem somos. E a arte tinha e tem o papel de cultivar isso. Cultivar sim, e por isso chamamos de cultura humana. Se ela planta em nós emoções instintivas, ideias vulgares, imagens grotescas, de violência gratuita, sensualismo vil e entretenimento vazio, nos iguala aos cachorros que salivam na frente da máquina de assar frangos.
Entretanto, se consegue fazer brotar em nós, nem que seja o simples sentimento de que há algo para além das aparências da vida cotidiana, se germina em nossa mente a vontade de saber mais da vida, de ser mais generoso, ou se simplesmente nos banha com o captar de uma beleza genuína, que embora não alimente o corpo nutre a alma, aí ela é ponte que nos liga a nossa memória original.
O problema é que há hoje em dia quem dê prevalência à forma. Quem prefira um fast food cultural, que entregue tudo já mastigado. Que forneça um produto pop, simplório, de aparência siliconada, mas de um conteúdo animalizante. E, de fato, nos afiamos na produção em massa de uma estética tecnicamente apurada, mas vazia de conteúdo.
Temos quadros pintados com todas as técnicas conhecidas e que não dizem coisa alguma. Poemas metricamente bem executados, mas sem uma mensagem verdadeira. Filmes inteiros com atuações espetaculares, que nos oferecem motivos para odiar a sociedade, mas não nos ensinam o que a grande alma de Gandhi nos disse em uma frase: Se um único homem chega à plenitude do amor, neutraliza o ódio de milhares.
Coisas assim, não nos servem como farol para uma vida mais harmônica conosco mesmo e com os demais. É fácil perceber isso, basta comparar duas fotos com um sorriso. Uma retirada espontaneamente durante um momento puro de alegria e outra produzida em estúdio, com maquiagem e iluminação artificial, porém, sem o conteúdo da primeira. Fica claro a artificialidade da segunda.
A boa notícia é que sempre há esperança. Mesmo numa caverna vazia, basta a luz de uma vela e toda escuridão estará vencida.
“Até que o sol brilhe, acendamos uma vela na escuridão.”
Confúcio
Em todas as expressões artísticas há oportunidades incríveis de lembrar quem somos e de onde viemos. Não esqueçamos que isso exige algum esforço de nossa parte. Que temos que desenvolver o olhar, assim como um enólogo desenvolve o paladar para apreciar um bom vinho. Um olhar que procure ver além das aparências, que goste do desafio de encontrar significados, que aprecie a metáfora e o simbolismo. Uma dessas obras maravilhosas foca exatamente no desenvolvimento de um olhar humano para a vida.
Estamos falando de “Kubo e as cordas mágicas”, um filme que se passa em um Japão medieval mítico. Fique tranquilo, vamos nos esforçar ao máximo para não dar spoilers. A leveza das cenas, a respeitosa trilha sonora e o roteiro certeiro vão sequestrar sua imaginação do começo ao fim. Tudo no filme ocorre quando tem que acontecer e ainda assim, há gratos momentos de surpresa. O humor pueril contrasta belamente com cenas doloridas e temas delicados. A cena do Kubo correndo no campo de trigo, ou dos protagonistas navegando no mar estão entre as mais belas e singelas do filme.
A história está centrada em Kubo, um garotinho que ganha a vida contando histórias com seus origamis fantásticos. Ele mora com a mãe, que deu tudo o que tinha para salvar e proteger o garoto. Seu avô, o rei Lua, é o senhor da noite e enviou suas três filhas para assassinar o grande guerreiro Hanso. Mas, uma delas apaixona-se pelo alvo e desse amor proibido nasce Kubo, de quem o rei Lua rouba um olho. Ele quer cegar seu neto e levá-lo para viver com ele no céu. Mas, quem poderia desejar um céu de escuridão, quando viu o sol do amor brilhar?
Sua mãe e seu pai então fazem um grande sacrifício para protegê-lo, e o nosso herói precisa encarar sua jornada, compreender o que aconteceu com seus pais e conhecer melhor a si mesmo. Essa saga o leva para uma aventura fabulosa acompanhada de uma macaca superprotetora e de um soldado desmemoriado com forma de besouro. Com a ajuda de seu Shamisen mágico (um instrumento de cordas) esses três enfrentam as tias de Kubo, procurando encontrar a mítica armadura dourada que permitirá ao garoto derrotar seu avô. É uma bela animação sobre o quanto é importante sermos fiéis a humanidade em nós.
Com um final surpreendente e inspirador, “Kubo e as cordas mágicas” nos relembra que são nas horas tenebrosas que mais precisamos nos lembrar de quem somos, aprender que a coragem é irmã da generosidade e esta é mãe do discernimento, além de nos fazer entender que, para preservar a memória de quem somos, precisamos nos esquecer quem não somos. E que isso fica muito mais fácil na nossa vida, desde que vivamos entre pessoas generosas.
Todos somos Kubo, ou podemos ser, se mantivermos um olho aberto, mirando a pureza, o amor, o compromisso, a generosidade, buscando conhecer nossas origens. Ou podemos ser a sua mãe, Sariatu, que por amor vence sua própria escuridão e desafia todos os problemas do mar da vida. Ou ainda seu pai, o grande Hanso, orgulhoso, altivo e leal, que reconhece sua jornada interior e sabe que ela nascerá da luta contra a escuridão. Mas, façamos o máximo para não nos tornarmos o rei Lua. Que, cego, termina por acreditar que a vida se resume em simplesmente fugir da morte, e que a escuridão é o destino da humanidade.
Esperamos que, assim como neste filme, Kubo toque suas cordas e lhe faça lembrar quem você realmente é, por que o pior mal do homem é o esquecimento.