Série “Gêneros Musicais”: Jazz

Bem-vindos a mais um texto da série “Gêneros Musicais”. Hoje falaremos sobre o jazz, um dos gêneros musicais mais influentes da história, que não apenas marcou gerações, mas também transformou a forma como entendemos a liberdade artística. Como sabemos, a música está presente em praticamente todos os momentos de nossa vida: desde a trilha sonora de um filme que assistimos até as canções que embalam momentos importantes de nossa trajetória. Logo, não seria importante pensar em como essas músicas nos afetam?

Foi partindo dessa premissa que lançamos esta série. No texto de hoje, falaremos de um gênero musical que é muito pouco explorado em nossa cultura brasileira, mas que ganhou o mundo desde os anos 1920. Estamos falando do jazz, difundido profundamente na cultura americana e que hoje está entre os ritmos mais escutados do mundo. Porém, antes de adentrarmos nas raízes do Jazz, deixamos aqui nossa recomendação: se você ainda não leu o nosso texto de introdução, no qual falamos sobre os objetivos e as ideias gerais que permeiam a reflexão desta série de textos, recomendamos fortemente que o faça. Você pode acessá-lo clicando aqui.

Saxofonista tocando jazz em um palco iluminado
O jazz: um dos gêneros musicais mais influentes do mundo

Dito isto, agora comecemos com um pequeno exercício de imaginação: pare agora e apenas se concentre nos sons ao seu redor. Agora reflita: qual som vem a sua mente quando pensa no jazz? Talvez a sua resposta seja o saxofone e, neste instante, você possa ter imaginado um grupo de músicos tocando esse instrumento ou apenas escutado seu som agudo reverberando na sua mente. Essa percepção não é só música, mas também o que o jazz nos faz sentir quando pensamos nesse gênero musical.

Por que sentimos tais percepções? É possível imaginar o jazz em um salão antigo, com luz baixa e uma música que preenche o espaço. Essas são ideias que ficaram gravadas no senso comum ao pensarmos sobre esse gênero musical, assim como quando imaginamos alguém tocando samba, já pensamos em uma roda alegre ao redor da música, ou quando pensamos no rock, nos vem à mente o som de guitarras distorcidas e um som de extrema potência.

É por isso que, assim como o samba e o rock, o jazz é muito mais do que um gênero musical. Esse tipo de música, ao longo do tempo, cravou sua marca no imaginário coletivo do Ocidente e virou um verdadeiro estilo de vida, influenciando escritores, pintores, artistas e gerações de pessoas de diferentes carreiras e formas de vida. Entretanto, o que é, de fato, o jazz? Quais suas origens e como alcançou esse status? É disso que falaremos nos parágrafos abaixo.

A origem do jazz

Para entender de onde veio o jazz, é preciso mergulhar em águas profundas. Não basta olhar os nomes consagrados ou os palcos iluminados. É preciso caminhar até os campos de algodão do sul dos Estados Unidos, sentir a poeira das ruas de Nova Orleans, escutar os cânticos das igrejas negras, ouvir os lamentos sussurrados entre uma batida e outra. O jazz nasce ali, entre a dor e a resistência, como uma flor improvável crescendo no asfalto quente da opressão.

Campos de algodão no sul dos Estados Unidos no século XIX
As raízes do jazz nos campos de algodão do sul dos EUA

Ele não surgiu como um plano, um projeto artístico, mas nasceu da necessidade, do impulso de transformar sofrimento em som, saudade em melodia, silêncio em expressão. O jazz é filho da diáspora africana, da brutalidade da escravidão, da marginalização cultural. É, acima de tudo, uma resposta. 

Assim como o blues, o jazz nasce como uma forma de resistência da cultura africana diante não somente da escravidão, mas também da segregação racial ocorrida nos Estados Unidos do século XIX e XX. Após a Guerra de Secessão (1861-1865), milhões de escravizados ganharam sua liberdade, porém, esse fato não impediu que o racismo e a segregação entre brancos e negros chegassem ao fim. Em busca de melhores condições de vida, Nova Orleans foi uma cidade que atraiu muitos imigrantes e ex-escravizados, formando assim uma verdadeira bolha multiétnica nos Estados Unidos do final do século XIX.

Eram nas vielas de Nova Orleans que diferentes culturas se encontravam: africanos, caribenhos, franceses, espanhóis. Consequentemente, com uma pluralidade de etnias e culturas, acabou-se construindo naturalmente um cenário musical interessante. É dessa mistura que nasceu o Jazz. Se por um lado há uma clara influência do blues e da música gospel, presente profundamente na cultura americana, o jazz inova, por outro, ao introduzir o piano clássico em suas composições e o ritmo da música caribenha, dando mais fluidez e quebrando a rigidez da música clássica.

Como podemos perceber, o jazz é, antes de tudo, o resultado benéfico da diversidade quando esta é utilizada em prol de uma nova forma, que não discrimina suas partes, mas usa de suas melhores partes para formar o novo. Entretanto, como todo início, no começo não existia uma estrutura musical formal: os instrumentos eram precários, muitas vezes improvisados, as partituras inexistiam e, portanto, não havia regras do que podia ou não fazer dentro da música. Era, a bem da verdade, um caos criativo essa fase inicial, em que existia mais liberdade que regras a serem seguidas.

Como uma música quase “informal” e puramente popular, o jazz cresceu nas sombras, longe dos salões aristocráticos, mas não por falta de valor: o mundo ainda não estava pronto para escutar o que ele tinha a dizer. Mesmo sendo marginalizado em grande parte do tempo, o jazz seguiu com gerações de músicos que desenvolveram seu estilo. Pouco a pouco, o mundo que era restrito aos pequenos salões e festas informais foi encontrando seus espaços nas rádios, nos clubes, nas universidades. 

Nessas primeiras décadas do jazz, não podemos deixar de destacar a figura de Buddy Bolden, conhecido como “O pai do jazz”. Infelizmente, não há registros de suas canções sendo executadas por King Bolden, como era conhecido. Apesar de ser um dos músicos mais influentes do início do jazz, principalmente entre 1900 e 1907, a marginalização do estilo e o alto custo para gravações não permitiram que esse gênero musical chegasse até os dias de hoje na forma que Buddy tocava. Entretanto, anos depois, gravações feitas por outros músicos das músicas de Buddy chegaram até nós como a que deixamos abaixo:

Apesar da curta carreira (Buddy sofria de esquizofrenia e alcoolismo), ele foi responsável por fomentar essa nova forma de fazer música e inspirar toda uma geração que, ao reconhecê-lo como “rei”, seguiu seus passos e consolidou o jazz como um estilo musical potente e reconhecido.

Entre os grandes nomes do jazz é impossível não citar Eleanora Fagan, mais conhecida como Billie Holiday. Até hoje reconhecida como a maior cantora de jazz que já existiu, Billie Holiday é a alma desse estilo musical. Com uma vida marcada por polêmicas e muita dor, essa grande cantora mostrou o jazz com uma face profundamente enraizada nas questões sociais, na dor da segregação e na dificuldade de viver em uma sociedade injusta. Nesse aspecto, Billie Holiday foi uma cantora de jazz que não somente projetou esse estilo musical a um nível global, mas que também ajudou a construir uma visão de futuro para uma sociedade mais igualitária do ponto de vista racial.

Se Billie Holiday foi a alma do jazz, Fletcher Henderson foi quem estruturou esse gênero musical como o conhecemos hoje. Pianista e grande músico, Fletcher colocou um pouco de ordem no caos que o Jazz até então era, construindo a base e toda a estrutura musical para tocar e construir uma música com tais características. Em suas mãos, o jazz deixou de ser uma execução “simples”, de apenas um ou dois artistas, e passou a ser executado por orquestras.

Ao mesmo tempo que colocava ordem e fazia a estrutura de banda, Fletcher não deixou o estilo engessado, dando liberdade para solos e improvisos, fatores que são a marca registrada do jazz. Assim, o jazz deixava de ser um estilo solto e caótico e passava a ter uma estrutura dentro da teoria musical, sem perder sua identidade.

O jazz como uma expressão da liberdade

Não é coincidência que o jazz tenha surgido num contexto de opressão. É preciso pensar que, dentro de uma sociedade extremamente desigual, em que grande parte da população é marginalizada e vive sob uma dura limitação cultural, econômica e de direitos, os que são oprimidos busquem por liberdade. A busca pela liberdade, ao seu modo, está na possibilidade de expressar suas dores e anseios, e assim nasce um estilo de música que reflete essa realidade. 

Músico solitário tocando saxofone em palco iluminado por luz quente
O jazz como reflexão e intimismo

Nesse sentido, o jazz é, em essência, um grito por liberdade. Uma liberdade real, vivida, sentida no cotidiano, de modo que fosse possível ser escutado e vista por todos. Por isso, o improviso é, em última instância, a alma desse gênero musical. Ao improvisar e demonstrar o que se quer fazer, o músico revela a liberdade de criar do seu jeito, sem estar restrito às regras e aos moldes. Dessa forma, cada nota improvisada no jazz é um ato de resistência. É o músico dizendo: “eu não seguirei o caminho esperado”. Agindo dessa maneira, ele desperta em nós uma forma de buscar essa mesma liberdade. 

Basta perceber como esse tipo de música reflete em nossas emoções e nosso corpo. Surge, quase sem querer, uma vontade de dançar, de movimentar, de fazer algo que nem mesmo nós sabíamos que desejávamos, como se nossa própria mente reagisse ao improviso do músico e desejasse também improvisar, deixando-se levar pelo movimento que nasce desse som. E nesse momento não há certo ou errado, movimento bem executado ou mal executado, há apenas o improviso e aquilo que é. A esse estado, chama-se, nos dias atuais, de liberdade.

Essa liberdade não é só estética, visto que nas raízes do jazz há um forte senso político. Assim, esse gênero musical, tal como a MPB em certo momento da história do Brasil, se converte em uma forma de fazer política. Em um país marcado por profundas desigualdades raciais, o jazz foi uma forma de afirmação cultural. 

O que sentimos ao escutar jazz?

Há músicas que nos fazem dançar; outras, que nos fazem chorar. Algumas servem como trilha sonora para momentos felizes; outras, para dias nublados. O jazz, entretanto, não se encaixa em nenhuma dessas categorias, porque ele não busca provocar uma emoção específica, mas sim fazer com que busquemos dentro de nós aquilo que nos faz vibrar. Dito isso, ao escutar um jazz, nos sentimos em uma uma conversa em que o sentido se constrói no meio do caminho, pois a cada nota abre-se um novo mundo de possibilidades

Mulher escutando jazz com fones de ouvido, cercada por notas musicais
As sensações despertadas pelo jazz

E, nesse percurso, somos levados a lugares que não sabíamos que existiam dentro da gente. Lugares de calma, de tensão, de saudade, de alegria. Tudo misturado, como são os sentimentos reais — nunca puros, sempre em transição.

O jazz tem esse poder de despertar o que está adormecido. Não de forma agressiva, mas como quem chama pelo nome, com gentileza. Às vezes, a primeira reação ao escutá-lo é estranheza, porque estamos tão acostumados com o ritmo marcado, com a fórmula repetida, que nos sentimos perdidos diante de uma música que não se apressa, que dobra esquinas harmônicas inesperadas, que pausa sem avisar. Mas, se resistirmos à tentação de desistir, algo mágico acontece: deixamos de esperar e passamos a escutar.

E é aí que o jazz revela sua grandeza. Ele não nos conduz, mas nos acompanha como um velho amigo. Por isso, alguns, ao escutar esse tipo de música, podem sentir uma forte melancolia, por lembrar dos tempos idos, ou mesmo por transportar o pensamento para um local que nunca visitaram, mas que existe no imaginário deles. Já outros, sentem-se alegres e animados para dançar e sorrir. Essa ambiguidade, própria do ser humano, reflete o quanto a música pode tocar diferentes emoções.

Logo, ao ouvir jazz, muitas vezes não sentimos uma emoção nítida, mas uma vibração, uma ressonância. E essa sensação de se conectar com uma música é rara, mas se torna possível quando deixamos que ela adentre em nosso ser. Por isso, o jazz não se explica, sente-se. E cada escuta é uma nova vida, porque ele está vivo. Ele muda conforme o dia, o humor, o silêncio que o antecede. Ele se adapta ao que somos — e, ao mesmo tempo, nos modifica.

O legado do jazz para o mundo da música

Se hoje falamos em liberdade artística, em improviso, em experimentação sonora, é porque um dia o jazz ousou romper com as amarras. Ele abriu portas, janelas e até telhados para que a música pudesse respirar. O que antes era encaixotado em padrões rígidos, foi libertado. E, ao fazer isso, influenciou tudo o que veio depois.

Não há gênero musical relevante no último século que não tenha sido tocado direta ou indiretamente pelo jazz. Do rock ao hip-hop, da música erudita contemporânea à eletrônica experimental, do samba à bossa nova, do soul ao pop mais sofisticado, poderemos encontrar a marca do jazz em cada um destes estilos, pois ele permitiu a criatividade de ser expresso à sua maneira. O famoso “faça você mesmo, mesmo que você não saiba fazer”, quase um mantra do movimento Punk dos anos 1980, só existiu devido ao jazz, que, quase um século antes, passou a desafiar as normas e a construir um estilo completamente novo, sem mesmo saber o que, naquele momento, viria a ser.

Pintura de músicos de jazz tocando trompete, piano, contrabaixo e saxofone
O legado do jazz na música mundial

Entretanto, o legado do jazz vai além das notas. O jazz influenciou também a forma de criar, de pensar, de estar no mundo como artista. Ele nos ensinou que não é preciso dominar tudo para começar, que é possível aprender fazendo, que o erro pode ser um ponto de partida, que, na arte  e na vida, improvisar não é um plano B, mas muitas vezes o único plano possível.

Foi isso que nomes como Charlie Parker, Miles Davis, Ella Fitzgerald, John Coltrane e tantos outros nos deixaram como herança: não apenas músicas inesquecíveis, mas um jeito de fazer música. E, talvez por isso, o jazz tenha sido tão amado pelos poetas, pelos pintores, pelos revolucionários, pois ele fala da vida como ela é: improvisada. 

Em um tempo como o nosso, tão marcado pela pressa, pela padronização, pela busca por uma fórmula pronta para o sucesso, o jazz nos mostra que isso é uma utopia. A bem da verdade, as respostas só poderão ser encontradas no meio do caminho, não antes de ser trilhado, e para isso vamos precisar nos aventurar, descobrir, reinventar-se e, no fim, caminhar e criar algo diferente do que imaginamos no começo.

Por fim, se você ainda não ouviu jazz, permita-se ter essa experiência. Devemos perceber como a música, essa nobre arte, atua em nossa psique, mas que, às vezes, de tão viciados em nossos gostos pessoais, já não nos permitimos experimentar uma nova forma. São nesses momentos de degustação do novo que nasce a possibilidade de mudança, de criar novos cenários. E, quem sabe, ao final da escuta, você se encontre diferente. Mais aberto. Mais inteiro. Mais vivo.

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