Sempre que se pretende pensar sobre o Egito, vale antes se perguntar: que Egito? Porque tem dois, um Egito dos livros de História Geral, oficialmente aceito, e outro mítico, oculto. As duas visões são perigosas.
A primeira abordagem é perigosa, pois pode nos prender aos limites do pequeno Egito, sistematicamente aceito pelo método histórico-materialista, deixando de fora a verdadeira e profunda essência daquela cultura. E a segunda pode nos lançar a um oceano de fantasiosas viagens imaginativas, distantes dos limites do que de fato foi o Egito.
A verdade é que, não obstante, sobram especulações. Não sabemos com exatidão quase nada sobre o Egito. O que podemos dizer é que todas as culturas subsequentes, olharam para lá e disseram: “Olha! Há algo de misterioso ali”. Inclusive, até o nome que usamos para designar aquela civilização não é egípcio, é grego: Aigyptos, que quer dizer “o oculto”, “o escondido”.
Temos que puxar o véu com cautela para poder ver o que está oculto, e como se faz isso?
Acho que o melhor método é observar como as grandes mentes da humanidade, na matemática, na filosofia, na religião, bem como personalidades políticas impactantes, como Napoleão Bonaparte, se conectaram àquele lugar.
Aristóteles dizia que: “No Egito tiveram início as ciências matemáticas, pois lá a nação dos sacerdotes gozava de tempo livre”. Há papiros que revelam um conhecimento avançado da matemática, por exemplo, um dos achados demonstra que os egípcios sabiam que 2/29 podem ser expressos assim: 1/24 + 1/58 + 1/174 + 1/232, sabiam ainda que a mesma soma pode também ser expressa assim 1/15 + 1/435 ou 1/16 + 1/232 + 1/464.
Essa nação misteriosa foi a escola que formou o matemático, filósofo, músico e místico Pitágoras, da ilha grega de Samos. Depois de viajar pelo Egito, ele fundou uma escola de buscas profundas sobre a natureza matematicamente pensada de todo o Universo. Na verdade, a escola pitagórica foi mais que uma escola, foi um movimento filosófico profundo com uma proposta de vida moral, de investigação da natureza e conexão consciente com o aspecto transcendente da realidade.
Dizem que a palavra “filosofia”, como amor à sabedoria, foi cunhada por Pitágoras. As investigações desse matemático, para além dos números, alcança com muita coerência e verdade aspectos relativos à vida após a morte, à imortalidade da alma e a influências sutis da natureza na psique humana, como acontece com as proporções aritméticas dos intervalos das notas musicais.
Depois de Pitágoras, vê-se na história da filosofia uma verdadeira cadeia de grandes mestres e discípulos que vai retransmitindo muitos conceitos, símbolos e perspectivas egípcias da realidade. Um dos filósofos mais expressivos e impactantes de todos os tempos, Platão, inexoravelmente, bebeu naquela fonte. Quando muito jovem, decepcionado com a democracia ateniense, viajou por aquelas terras como um exilado e se iniciou em escolas de mistérios. Depois dessas iniciações, começou a falar de dois mundos, o mundo das coisas palpáveis e o mundo das ideias. E quanto mais avançam as descobertas arqueológicas sobre a História daquela cultura mais se descobrem elos seguros entre o monumentalismo egípcio e o pensamento platônico.
Para Platão, o mundo ao alcance dos nossos sentidos é frágil, pueril, transitório e está longe de encerrar a realidade última. “O Mito da Caverna”, presente em sua famosa obra, “A República”, nada mais é que a expressão grega para a Lei Mental de Hermes Trismegisto, o que os nossos olhos vêem, nossos ouvidos escutam e nossas mãos tocam não passam de sombras refletidas de uma realidade muito maior, perfeita, transcendente e intransitória. Isso se harmoniza com nossas intuições mais profundas.
Todos os nossos inconformismos diante da morte, a nossa sede de querer sempre mais, nossa busca pela perfeição e pelo maior, nossas impressões culturais e históricas sobre o Divino e sobre o Sagrado, encontram nessas leis a coerência que precisamos para viver, encontram o sentido que buscamos na existência.
É de se surpreender de igual modo a semelhança indiscutível entre a mensagem de Jesus e a mensagem sutilmente reverberante da cultura egípcia para o mundo. Muitos aspectos da narrativa de Jesus nos evangelhos coincidem com aspectos da narrativa do mito de Hórus. Ambas narrativas enfocam a questão da ressurreição e do juízo pós-morte. É certo que há muita polêmica em torno dos detalhes da comparação, mas o que é indiscutível é que uma narrativa não está deslocada da outra.
Veja bem, essa semelhança não deprecia nenhuma das duas formas religiosas, muito pelo contrário, o que fica evidente é que a linguagem do sagrado é a mesma, são diferentes símbolos que apontam para o mesmo conteúdo. Jesus e Hórus são apenas vestimentas culturais diferentes para o mesmo conteúdo oculto. Ambos mostram ao mundo a necessidade de amar uns aos outros, o desapego da materialidade e a intuição profunda de eternidade.
Com a queda do mundo clássico no século V, a mensagem simbólica do Egito vai se tornando cada vez mais distante, como um sussurro silencioso abafado por uma multidão de vozes grosseiras, ignorantes e fantasiosas. Durante a Idade Média, já não se sabia mais nada sobre o Egito, a biblioteca de Alexandria foi incendiada três vezes, muitos monumentos foram estupidamente destruídos e muitos símbolos se perderam para sempre.
Séculos depois, com as Cruzadas, a mentalidade ocidental começou lentamente a redescobrir a força da simbologia egípcia, em uma espécie de “correr atrás do prejuízo”. Desde então, há uma busca latente na humanidade pela ressonância simbólica daquela civilização.
O General Napoleão Bonaparte foi fortemente impactado pelas imagens do Egito que lhes foram mostradas através de esboços em papiros, pelo artista francês Dominique Vivant Denon. Não temos dúvidas de que a única explicação para a conquista do Egito por Napoleão em 1798 foi a sua ambição por conhecer, dominar e trazer para si o poder expresso nas artes e no monumentalismo egípcio. Isso se torna mais claro pelo fato de ter enviado Denon, com uma equipe de 167 cientistas e artistas, para pesquisar a cultura e a história do lugar, enquanto liderava um exército de 35 mil soldados na conquista do Egito.
A ordem de Napoleão a Denon era medir, desenhar com riqueza de detalhes cada obra de arte, cada monumento arquitetônico que não pudesse ser transportado, a fim de ser reproduzido posteriormente. Por consequência dessa ação, condenadas por uns e aplaudidas por outros, o fato é que hoje existe uma enciclopédia chamada Description de l’Égypte, contendo uma descrição detalhada do antigo e moderno Egito, que nos aproximam, pelo menos, em uma curta medida, do que foi aquele momento áureo da História. Napoleão via no Egito a impressão física de um impulso da História direcionado para os céus, é daí que vem sua célebre colocação diante das pirâmides: “Do alto dessas pirâmides, quarenta séculos nos contemplam”.
Sobre o Egito, não sabemos quase nada, resta-nos o humilde gesto de calar e sentir o aroma e o fluxo que os poucos e imprecisos dados históricos nos sopram daquela civilização. Que esse sentir nos inspire a buscar uma proximidade das ideias elevadas, a partir da linguagem simbólica do sagrado, tentando integrar arte, ciência, política e religião numa experiência verdadeiramente humana… Assim como fez aquela cultura.