Vivemos em uma época dominada pelas deepfakes, em que a fronteira entre o real e o artificial se tornou tão sutil que, muitas vezes, é difícil perceber onde começa e termina a verdade. A tecnologia, que durante décadas caminhou como uma aliada da evolução humana, abre agora uma porta para um universo repleto de possibilidades, mas também permeado por riscos, uma vez que, como toda ferramenta, podemos usá-la de modo benéfico ou não.

Diante disso, precisamos aprender a lidar com tudo que nos é pernicioso no mundo virtual e, dentre os diversos problemas que geramos nesse campo, estão as “deepfakes”. Elas se destacam como protagonistas de um fenômeno antigo na humanidade, porém, com um potencial nunca antes visto. Elas são mais do que simples manipulações digitais, como costumamos pensar, pois avançam para realidades fabricadas com precisão milimétrica, capazes de confundir até os olhares mais atentos.
Nesse sentido, falar sobre deepfakes é também apontar para uma das principais virtudes do ser humano: a prudência. Essa habilidade de discernir e escolher o correto, próprio da inteligência humana, se faz fundamental em um mundo cada vez mais permeado por imagens falsas, vídeos que simulam o real com precisão e um conjunto de materiais que podem mudar a opinião pública rapidamente.
Assim, precisamos urgentemente refletir sobre a maneira como consumimos e transmitimos conteúdo no cotidiano. Nos últimos anos, a circulação de vídeos e áudios manipulados ampliou consideravelmente a necessidade de desenvolver um senso crítico mais apurado e de tomarmos a suspeita e a dúvida como aliadas ao nos depararmos com notícias e imagens chocantes. Se o antigo ditado de “uma imagem vale mais do que mil palavras”, outrora, foi uma verdade, hoje devemos repensar várias vezes ao nos depararmos com qualquer fotografia ou imagem na internet, usando inclusive novas ferramentas para detectar a manipulação destas e nos fazer cair em uma falsificação.
É nesse cenário que surge uma reflexão importante: como treinar nosso olhar para discernir o verdadeiro do falso? Como distinguir aquilo que é genuíno do que foi cuidadosamente produzido para parecer verdadeiro? Para responder essas questões, devemos não somente refletir profundamente sobre o que são as deepfakes, mas principalmente em que aspecto nós também desejamos acreditar em versões que não condizem com a verdade.
O que são deepfakes?
Primeiramente, é fundamental entendermos com o que estamos lidando. As “deepfakes”, termo usado para classificar produções de notícias, imagens, vídeos e áudios falsos, são frutos diretos da inteligência artificial e, mais especificamente, de algoritmos avançados, capazes de aprender padrões faciais, entonações e movimentos corporais a partir de grandes conjuntos de dados. O nome vem da combinação de “deep”, que remete ao deep learning, e “fake”, que significa falso. Trata-se, portanto, de falsificações complexas e extremamente elaboradas, produzidas por sistemas computacionais que imitam o real com impressionante fidelidade.

Você provavelmente já entrou em contato com as deepfakes. Desde um vídeo engraçado com animais até notícias-denúncia que soam como uma grande bomba na mídia, essa forma de divulgar desinformação acaba alimentando mais confusão nas redes sociais do que ajudando a elucidar fatos. O mais intrigante é que essa tecnologia, assim como toda e qualquer ferramenta humana, não nasceu com intenções maliciosas.
Inicialmente, estudos acadêmicos buscavam aprimorar técnicas de síntese de imagens para fins científicos, cinematográficos e educacionais, otimizando o processo de dados e criação de conteúdos. A ideia de recriar rostos com perfeição tinha a princípio um propósito nobre: facilitar produções audiovisuais, restaurar filmes clássicos, simular cenários para pesquisa ou até auxiliar processos terapêuticos. No entanto, como tantas outras invenções ao longo da história, seu uso extrapolou os limites planejados pelos criadores.
O impacto cultural desse tipo de conteúdo já é perceptível. Como mencionamos, vídeos falsos circulam com rapidez surpreendente e, muitas vezes, geram confusão antes mesmo que alguém possa questionar sua veracidade. Celebridades, influenciadores e até indivíduos comuns já foram alvos dessas manipulações, afetando desde suas reputações até seu bem-estar emocional. Assim, alguém que compreenda o mecanismo da inteligência artificial pode criar deepfakes para aplicar golpes, manchar reputações e até mesmo intensificar o cyberbullying com uma pessoa. Tais usos, como podemos perceber, são criminosos e muitas vezes causam grande dano até serem desmentidos.
O mito da caverna no mundo moderno
Esse assunto naturalmente nos leva a refletir sobre o que é a Verdade e o que é Ilusão. Ressaltamos que esse é um tópico atemporal dentro da filosofia e não queremos encerrar o assunto, portanto, vamos refletir um pouco sobre o que é, de fato, o Real. Há mais de dois mil anos, Platão, filósofo que viveu na Atenas Clássica, apresentou o mito da caverna, uma das alegorias mais famosas do mundo.

Nele, um grupo de pessoas vive acorrentado dentro de uma caverna escura, de costas para a entrada. Diante delas existem apenas sombras projetadas na parede por objetos carregados atrás delas. Como nunca conheceram outra coisa, tomam essas sombras como a própria realidade. Para elas, o que veem é a verdade absoluta, pois não sabem que existe algo para além do que podem enxergar.
As sombras da caverna são, em essência, representações distorcidas da realidade, ou seja, ilusões que parecem verdadeiras para aqueles que não têm acesso ao mundo exterior. As deepfakes funcionam da mesma maneira, pois projetam versões falsas de pessoas, discursos e situações, criando uma realidade artificial que pode aprisionar quem não se questiona. Assim como os prisioneiros na caverna, nós também podemos nos tornar reféns das imagens digitais caso não desenvolvamos a capacidade de olhar além do óbvio.
Essa comparação não deve ser encarada como uma visão filosófica vazia, que não merece ser colocada em prática. Em um mundo onde a tecnologia é capaz de criar ilusões extremamente convincentes, cultivar um olhar prudente e desperto é uma forma de superar as ilusões. Reconhecer que nem tudo o que se apresenta como real merece nossa confiança é o primeiro passo para sair da “caverna digital” em que todos nós nos encontramos.
Entretanto, devemos compreender que esse não é um caminho simples de ser trilhado. Durante séculos, acostumamo-nos a considerar a visão como o mais confiável de todos os sentidos, não por acaso, associamos o enxergar com acreditar. A famosa frase atribuída a São Tomé, “só acredito vendo”, é um bom exemplo de como os sentidos nos dão uma noção do que chamamos realidade. Assim, até pouco tempo atrás, uma imagem capturada por uma câmera carregava automaticamente o peso da verdade.
Hoje, entretanto, essa premissa se desfaz rapidamente. A era digital trouxe consigo um novo tipo de ilusão, uma que não depende apenas de truques visuais ou cortes de edição, mas também de inteligência artificial sofisticada, capaz de criar mundos inteiros que jamais existiram. O cérebro humano, embora fascinante, é extremamente vulnerável a ilusões, pois basta uma confusão de informações para enxergamos aquilo que, objetivamente, não existe.
Com deepfakes, essa predisposição natural torna-se um ponto fraco para todo ser humano, pois o cérebro assume que está vendo algo coerente e familiar, principalmente se o que está enxergando está alinhado com sua visão de mundo, cultura e crenças. Assim, mesmo que pequenos sinais de falsificação estejam presentes, não enxergamos de maneira consciente e acabamos nos deixando levar pelas falsificações. É justamente a compreensão dessa limitação perceptiva que torna urgente a necessidade de desenvolver um olhar mais crítico e mais atento frente ao mundo virtual, pois podemos estar imersos em uma série de deepfakes e ainda não termos percebido esse fato.
Como treinar o olhar para reconhecer deepfakes
Visto isso, é fundamental desenvolver um olhar cuidadoso diante das imagens digitais com que nos deparamos cotidianamente. Ressaltamos, entretanto, que não se trata de desconfiar de tudo de maneira paranoica, mas de aprender a observar com mais atenção, como alguém que se acostuma a identificar a diferença entre uma joia verdadeira e uma imitação. Quanto mais familiarizado estiver com certos sinais, maior será a capacidade de perceber quando algo não está em harmonia.
O primeiro passo para treinar o olhar é aceitar que as deepfakes são construídas com base em detalhes que, muitas vezes, não são óbvios. Num mundo em que cada vez mais as inteligências artificiais se aperfeiçoam, não será um erro grotesco que mostrará a ilusão que está sendo tramada. Assim, teremos que aprender a perceber detalhes nos olhos, nas expressões faciais e em movimentos que não acompanham a fluidez natural do corpo.
Além disso, a textura da pele pode parecer lisa demais ou uniforme em excesso, como se tivesse sido suavizada digitalmente. Pequenas sombras ao redor do nariz, da boca ou dos olhos podem estar ausentes ou desalinhadas, configurando assim um ajuste fino feito com ferramentas de IA. O mesmo vale para a iluminação: quando o rosto está iluminado de maneira diferente do restante do ambiente, algo provavelmente foi manipulado.
Essas são pequenas dicas, mas que ao serem usadas ao observarmos algo, poderemos notar rapidamente que há algo de estranho em vídeos ou imagens. Além disso, há ações comuns para evitar divulgar informações falsas, como fazer pesquisas adicionais, pensar se realmente é útil o que será compartilhado e exercitar a prudência. Em um ambiente digital, no qual imagens e vídeos viajam com velocidade impressionante, desenvolver hábitos responsáveis é uma forma de proteção coletiva. Devemos sempre nos perguntar: “Isso é real?” ou “De onde veio este vídeo?” Essa reflexão simples contribui para frear a propagação de informações falsas, porque desloca o foco da sensação para a verificação.
Outro aspecto fundamental é o de verificar a fonte que está propagando aquela informação. Muitas vezes, compartilhamos notícias que foram geradas por um jornal desconhecido e que só saiu naquele canal de notícias, carecendo assim de uma investigação apurada. Essa é uma etapa fundamental e que, muitas vezes, acabamos deixando de lado, pois o impacto da notícia nos leva a querer difundi-la o mais rápido possível.
Devemos assumir que a credibilidade deixou de ser um atributo automático nos dias atuais. Hoje, ela precisa ser conquistada, pois a todo momento podemos estar sendo vítimas de golpes dessa natureza. Isso significa verificar quem publicou o vídeo inicialmente, se o conteúdo está presente em outros canais confiáveis e se existe alguma explicação complementar para o contexto mostrado. Muitas vezes, o conteúdo manipulado carece de referência, data, autoria ou continuidade narrativa, sinais claros de que algo pode estar fora do lugar.
Também é importante desenvolver o hábito de contextualizar. Perguntar-se em que circunstância o vídeo teria sido gravado, quem se beneficiaria com sua divulgação. Esse exercício de imaginação é essencial para entender não apenas as informações apresentadas, mas também o real sentido de estarem sendo divulgadas.
Se compreendermos isso, poderemos perceber que não é necessário compartilhar grande parte das informações que chegam até nós, pois, em sua maioria, estão permeadas de diferentes interesses que não são os nossos. Desse modo, fica claro que devemos, acima de tudo, não somente aprender a filtrar informações, mas também assumir, como uma prática para a vida, o hábito de compartilhar menos, refletir mais e observar com atenção tudo que nos chega pela tela do celular ou pelo computador.
Frente a essa perspectiva, podemos afirmar que se existe algo que as deepfakes nos ensinam é que a responsabilidade diante dessas situações vai muito além do domínio tecnológico. Ela é, antes de tudo, uma questão ética. Cada vez que compartilhamos um conteúdo sem verificar sua veracidade, contribuímos, mesmo sem intenção, para a construção de um cenário de desinformação que afeta todas as pessoas ao nosso redor, criando mais confusão, separatividade e, para a grande maioria das pessoas, posturas que vão de encontro com nosso sistema de valores.
A ética, nesse aspecto, começa com o reconhecimento de que a verdade se tornou um bem precioso e, por isso mesmo, deve ser tratada com cuidado. Ao desenvolver a postura consciente diante desse cenário, passamos a compreender que a divulgação de conteúdos falsos não prejudica apenas quem aparece na tela, mas também quem acredita, quem compartilha e quem convive com o impacto dessa mentira. A confiança entre as pessoas, já tão frágil devido ao contexto em que vivemos, depende de pequenas atitudes que reforcem a honestidade no ambiente digital.

Assumir esse papel ético significa, também, compreender que a prudência é uma atitude madura. De fato, geralmente pensamos em alguém prudente como uma pessoa experiente, que já sintetizou grande parte de suas vivências e por isso sabe o melhor caminho. Agir com cautela ou medo não é prudência em si, mas é uma virtude que funciona como um boa conselheira para nos fazer pensar algumas vezes antes de difundir informações que não tenhamos checado a sua veracidade. Essa virtude, porém, não nascerá sozinha, pois é preciso exercê-la diariamente. Por isso, é fundamental aprender a criar hábitos responsáveis no mundo virtual em que estamos inseridos, pois não aprenderemos se não começarmos a tentar desenvolver esse aspecto.
Navegando no mar de desinformação
Vivemos em um tempo singular, no qual há poucas garantias de que a verdade prevalecerá. Há até quem chame o momento em que vivemos de “pós-verdade”, quando as desinformações geram um aspecto perigoso na mente de pessoas que decidem acreditar na verdade que mais lhe convém. Esse autoengano é o ápice da busca pela desinformação.

Nesse cenário, não se cai nas deepfakes, apenas se decide tomá-las como verdade. Esse é, em última instância, um atestado de como resolvemos viver na ignorância de nossas próprias ilusões, que, no fim, não são nossas, mas de quem nos manipula. As deepfakes, portanto, acabam por expor uma das piores fragilidades humanas: a de aceitar ser engano e viver dentro da caverna das nossas ilusões. A realidade, que poderia ser alcançada de forma sólida e confiável, agora exige de nós uma postura mais cuidadosa, mais questionadora e, acima de tudo, mais responsável; afinal, não deve ser do nosso desejo viver imerso na bolha das nossas convicções.
Para mantermos essa conferência, é necessário estar sempre exercitando nossa prudência e bom senso. É preciso ter disposição de duvidar e a maturidade de aceitar que, às vezes, também caímos em ilusões, mas jamais devemos nos contentar com essa situação. A prudência, nesse contexto, torna-se uma virtude cotidiana, uma forma de sabedoria indispensável em um mundo repleto de sombras que se apresentam como verdades incontestáveis.
Frente a isso, se faz fundamental lembrar que a analogia com o mito da caverna nos lembra que a ilusão sempre fez parte da experiência humana, mas também nos mostra que a libertação começa quando escolhemos vencer aparências. Assim como os prisioneiros de Platão precisavam aprender a ver a luz depois de toda uma vida contemplando sombras, nós também precisamos reaprender a ver com consciência.
Assim, mais do que identificar falsificações, precisamos recuperar o valor da verdade como um bem coletivo. Cada vez que compartilhamos algo sem verificar, contribuímos para um ambiente de desinformação que mina a confiança entre as pessoas e enfraquece a própria noção de realidade. Por outro lado, cada gesto de prudência, cada pausa para analisar, cada questionamento sincero sobre o que estamos prestes a transmitir se transforma em um ato silencioso de cuidado — com nós mesmos, com os outros e com o mundo que construímos juntos.
Por fim, devemos ter a noção de que as deepfakes continuarão evoluindo e se tornando cada vez mais similares à realidade. Tornar-se-ão mais realistas, mais rápidas de serem criadas e mais difíceis de serem detectadas. Mas isso não significa que estamos indefesos. O olhar crítico e a ética são nossas armas nesse combate incessante pela consciência humana. A verdade talvez nunca tenha sido tão delicada quanto agora, mas isso também faz dela um território que merece ser defendido. Se aprendermos a olhar com mais calma, pensar com mais cuidado e agir com mais consciência, não apenas reduziremos o poder das ilusões digitais, mas também nos aproximaremos de uma convivência mais íntegra, transparente e humana.
Para aprofundar a reflexão sobre o impacto da tecnologia nas nossas percepções e escolhas no mundo digital, vale a pena conferir o texto “Eduque o algoritmo das redes sociais: treine o seu feed e a sua mente”. Nele, você entenderá como os algoritmos moldam a forma como vemos o mundo e por que treinar o olhar crítico, assim como o feed, é essencial para navegar com mais consciência e responsabilidade na era da informação.




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