Já vimos o mundo temer uma epidemia de peste negra no século 14. Já vimos os homens temerem uma crise nuclear, quando a extinta União Soviética colocou mísseis em Cuba. Já testemunhamos o medo de voltarmos ao século 17, por causa de uma imensa tempestade solar em 2012. Em 2019, o grande medo da última semana estava relacionado com o lançamento de um filme sobre um vilão excessivamente humanizado!
Foi lançado em 03 de outubro de 2019 “Coringa”, um dos filmes mais aguardados daquele ano, a obra conta a história do já conhecido arqui-inimigo do Batman. O Coringa é um personagem quase tão antigo quanto o Homem Morcego, teve sua primeira aparição nas revistas em quadrinho em 1940, ou seja, há quase 80 anos. Porém, uma das grandes incógnitas, que nunca foi bem esclarecida nem mesmo nos quadrinhos, é justamente a sua origem.
O Palhaço do Crime já foi retratado de diferentes formas no cinema, desde 1966, quando as obras do Batman eram direcionadas para um público mais infantil, até a mais chocante de todas, até o momento, que foi a interpretação de Heath Ledger, no filme de 2008, Batman – O Cavaleiro das Trevas. Mesmo com tantas variações, existe um elemento que sempre é a alma de todos os Coringas: O Caos.
Esse personagem é a representação do oposto do Batman: Sério, metódico, corajoso e com a mentalidade de lutar para manter a Justiça no mundo, ainda que isso coloque a sua vida em risco. Já o Joker sempre é extravagante, improvisador, inconsequente e luta para quebrar toda a ordem no mundo, ainda que isso coloque a sua vida em risco.
Este é um personagem tão caótico que, certa vez nos quadrinhos, Batman teve acesso a uma fonte onisciente de conhecimento, e quando perguntou a ela sobre quem era o Coringa, ele recebeu três respostas diferentes. Já no filme de 2008, a atuação de Ledger no filme entregou um personagem terrivelmente insano, e cada vez que lhe perguntavam sobre sua origem, ele contava uma história diferente. É como se nem mesmo ele soubesse quem ele é, ou como se não fosse exatamente um ser humano, mas a própria loucura que nasce dos traumas humanos.
O grande diferencial deste longa é que pela primeira vez ele foi focado neste personagem. Mesmo antes de ser lançado, a crítica já o apontava como um grande filme que não poderia ser ignorado. Um dos grandes medos da opinião pública era que a qualidade técnica do roteiro e a grande atuação de Joaquim Phoenix e dos demais atores envolvidos, colocando um psicopata como protagonista, inspirassem crimes reais do lado de cá da grande tela.
Vários são os casos de filmes que, por conterem cenas de violência, aportaram na mente de seres humanos reais ideias doentes de mesma intensidade e direção. Peguem a grande maioria desses casos reais de agressões e violências e veremos como nossa sociedade os trata. São chamados de monstros, demônios, animais. É como se eles não pudessem ser da mesma espécie da dona de casa que passa margarina no pão, na hora em que assiste a notícia no jornal noturno. Os desumanizamos, talvez porque seja mais fácil separá-los de nós mesmos, do que admitir que podemos, de alguma forma, estar ligados à barbárie que eles representam.
Percebamos o paradoxo: estamos amedrontados pela humanização de um assassino, produto da ficção humana, ao mesmo tempo em que desumanizamos os criminosos da vida real, talvez pelo medo de assumir a nossa parcela de responsabilidade. Sim! Somos no mínimo responsáveis pela sua reabilitação. Mas, não só por isso. Ousamos dizer que estamos todos no mesmo barco. Que não há separatividade nesta vida! E que aquele que não rema na direção da foz da fraternidade, permite que a nau da humanidade seja conduzida para a riacho do egoísmo. Em claras palavras, quem não age para fazer do mundo um lugar menos egoísta, mais egoísta o deixa. E de egoísmo em egoísmo, vamos reproduzindo uma sociedade cheia de vícios e ideias doentias.
O filme nos apresenta Arthur Fleck, uma pessoa com distúrbios mentais, sem vida social e com um passado de muitos abusos e sofrimento. Fleck passa a vida procurando uma maneira de se encaixar em um modelo padrão de normalidade. Uma experiência após a outra, o mundo o lembra que nesta selva é cada um por si, e após uma sequência de azares, injustiças, humilhações e violências, vamos descobrindo como é que nasce um vilão como o Coringa.
Quantos jovens também não passam por isso todo dia? Quantos de nós teríamos forças para não soltar a fera enjaulada e faminta, buscando vingança contra qualquer coisa que nos lembrasse dessas experiências? E, para lembrar o grande pensador chinês Confúcio, entre a força e a injustiça, há só um passo, em pouco tempo nossa fúria se viraria para qualquer um que obstruísse nossos desejos.
“O egoísmo pessoal é que excita e estimula o homem a
abusar de seus conhecimentos e poderes.
O egoísmo é um edifício humano, cujas janelas e portas
estão sempre escancaradas para que toda
espécie de iniquidades entrem na alma humana.“
Helena Blavastsky (A Doutrina Secreta)
Não é possível justificar atitudes não-humanas de violência desnecessária, como esses casos de atiradores em massa. A cada um seja dado o que lhe corresponde conforme sua natureza e seus atos. Mas, a punição de um crime, apesar de ser necessária, é um simples paliativo, pois não atua nas causas, somente nas consequências. Deveríamos trabalhar para que, a cada ato de violência, uma alma realmente comprometida com um mundo melhor, reafirmesse o seu compromisso.
Cada um de nós deveria olhar esses desvios e repetir para si mesmo que, por todas as pessoas impactadas por aquela experiência, lutaremos por uma sociedade mais justa e humana. Ao ver um assassinato, nossa oração não deveria se limitar ao compartilhamento de hashtags nas redes sociais. Deveria ser uma oração ativa, um ato de arregaçar as mangas e construir um mundo mais fraterno e menos injusto. E para apoiar-se em Confúcio mais uma vez, não haverá harmonia entre os homens, se dentro de si o próprio homem não for harmônico. A ordem política é fruto da ordem ética.
Apenas homens justos e caridosos, farão uma sociedade justa e benevolente. Então, é necessário recorrer ao símbolo do machado de duplo fio que representa poder, mas também o trabalho, dentro e fora, ou seja, sobre si mesmo e sobre a sociedade ao mesmo tempo. Construir dentro de si aquilo que quer para os demais e construir para os demais aquilo que deseja para si.
“Quanto ao homem bom: o que deseja alcançar para si
ele ajuda os outros a alcançar; o que deseja obter
para si ele possibilita que os outros obtenham
– a habilidade de simplesmente tomar as próprias
aspirações como guia é a receita da bondade.”
Confúcio (Analetos; 6:21)
E sobre o medo de que o filme justifique a violência de uma subcultura nascida nos guetos virtuais, o que diremos? A violência sempre esteve presente nas expressões das artes cênicas, como o teatro e o cinema. Em Édipo Rei, de Sófocles, grande autor grego, um filho, sem conhecer a sua identidade, mata seu pai e casa com sua mãe, cumprindo com uma profecia! Essa tragédia já foi encenada milhares de vezes e em nenhuma delas nossa sociedade receou filhos matando os pais e desposando as mães.
Hamlet, grande obra de Shakespeare, ainda hoje é filmada, montada e desenhada, com sua cena final em que o protagonista vinga o pai, mata o tio, o primo e também cai morto por fim. Na versão original do conto de fadas “A Branca de Neve”, a rainha morre após pisar em sapatos incandescentes. Durante séculos, foi assim que ela foi contada às crianças. Por que agora redobramos o cuidado com o que a arte pode inspirar?
Talvez, porque essas grandes obras tinham uma mensagem moral intencionalmente oculta em sua superficial pretensão de entreter. Antes de chocar e emocionar, queriam educar as pessoas. Traziam elementos que representavam os grandes dramas humanos. Freud reconheceu isso quando nomeou o “Complexo de Édipo”, por exemplo. Mas, a catarse teatral das obras primas da humanidade sempre transportou a plateia para uma experiência em que ela mesma vivia um pouco do que cada personagem encenava. De tal forma que, após esse contato, ninguém fosse mais o mesmo e pudesse colher um referencial para a vida.
Se o filme do vilão do cavaleiro das trevas também traz isso, só quem assistir poderá responder. Mas, talvez essa devesse ser a reflexão mais seriamente travada sobre este e qualquer outro filme. Deveríamos nos perguntar, se após essa experiência nos tornamos mais humanos. Pudemos a partir dessa vivência, aprender um pouco mais sobre como vencer o egoísmo que gera todo tipo de violência? Saímos das salas escuras iluminados, inspirados a construir um mundo melhor a partir de nós mesmos? Ou ao menos, saímos refletindo sobre todas as falhas que compartilhamos com os personagens e sobre como vencê-las?
O colunista de cinema Ticiano Osório, do site GauchaZH, em seu artigo “Coringa”, diz que “é o filme errado na hora errada”, e propõe um questionamento ao diretor Todd Phillps, mas que serve para todos nós.
“— O que você ganha quando cruza um doente mental com uma sociedade que o abandona e o trata como lixo? — pergunta Arthur Fleck, já transmutado em Coringa, em rede nacional de TV.
O questionamento poderia ser devolvido a Todd Phillips:
— O que você ganha quando cruza uma sociedade doente com um filme que ampara e trata como heróis personagens tipo o Coringa?”
Um filme, ou qualquer obra de arte será sempre tóxica! Ou será tóxica como as drogas entorpecentes que nos alimentam os sentidos e as emoções, nos impedindo de ver claramente a vida. Ou pode ser tóxica como os remédios, que mesmo que causem algum efeito colateral, nos recompõe a saúde mental e emocional nos permitindo ver claramente quem somos, qual o nosso papel neste momento histórico e para onde devemos nadar!
Mesmo antes de ser lançado, “Coringa” já nos entrega uma grande reflexão:
O que fazer com esses jovens anti-sociais, cheios de problemas psicológicos e prestes a explodir? Vamos esperar que eles explodam para depois puni-los como eles merecem? Ou vamos puni-los desde já com o isolamento, o ostracismo e a humilhação, mesmo que eles ainda não tenham cometido crime algum? Ou, talvez, algo que poucos praticam, ou mesmo cogitem como hipótese, podemos pensar em formas de reduzir a pressão sobre esses garotos, ajudá-los a lidar com seus demônios internos e fazer com que sintam que pertencem a algo maior, e assim descubram que a vida não precisa ser esse inferno de viver sendo atormentado por si mesmo? Acontece que, para isso, precisaríamos de pessoas voluntárias, generosas e dispostas a abrir mão de si mesmas para ajudar a quem precisa.
Hoje em dia, já está óbvio que vilões de quadrinhos existem, e estão dispostos a fazer o mal a qualquer um de nós. Talvez, o que falta em nossa sociedade sejam heróis de verdade, pessoas capazes de fazer o bem, sem olhar a quem.