A mitologia é um campo fértil para compreendermos as ideias que constroem uma civilização. Toda cultura humana tem uma base mitológica, ou seja, narrativas que apresentam divindades e explicam como surgiu não apenas o universo, o ser humano, mas principalmente as ideias que, de tão importantes para a vida daqueles homens e mulheres, se tornaram símbolos.
Hoje vamos conhecer um dos principais mitos da mitologia japonesa, o mito de Amaterasu. Entretanto, antes de refletirmos sobre essa narrativa, é pertinente que entendamos um pouco sobre o Japão e como esse mito não somente está enraizado na cultura deste povo, mas também faz parte da própria sociedade japonesa.

O nascimento do Cosmos e do Japão na mitologia
Sendo assim, comecemos conhecendo um pouco sobre como surgiu essa fascinante cultura. Devemos entender que a história do Japão é uma narrativa fascinante de tradição e reinvenção, com bases mitológicas. Entretanto, antes de adentrarmos ao campo simbólico, vamos conhecer sua história e geografia. Localizado nas margens orientais da Ásia, o arquipélago japonês desenvolveu uma civilização única, moldada tanto pela natureza quanto pela engenhosidade humana.
Desde os primeiros assentamentos da era Jōmon (por volta de 10.000 a.C.), marcados por uma profunda relação espiritual com a terra, até o florescimento da cultura Yayoi, com o domínio da agricultura e do bronze, o Japão foi tecendo lentamente sua identidade. Nessa base antiga, o xintoísmo – uma forma de religião com base no culto aos espíritos da natureza – surgiu como a alma do povo japonês, unindo mitologia, cotidiano e governança. Assim, essa primeira forma religiosa de entender o mundo moldou grande parte da cultura japonesa, trazendo divindades para a construção do universo.
O próprio nascimento do Japão estaria atrelado aos deuses. Segundo as tradições xintoístas, os deuses Izanagi e Izanami deram origem às ilhas que hoje constituem o território japonês. Porém, para entendermos essa história, é preciso recuar ainda mais no tempo e irmos até a criação do próprio universo para conhecer os mistérios por trás de tais divindades. Assim, mergulhemos ainda em um aspecto mais profundo dos mitos japoneses.
De acordo com a mitologia japonesa, no início do universo, havia apenas o caos e nada mais. Não havia tempo ou espaço, luz ou sombra, apenas as leis regidas pelos deuses superiores, inomináveis. E por intermédio desses deuses, nasceram Izanagi e Izanami, o casal divino que recebeu dos céus a missão de dar forma ao mundo, até então caótico e vazio. Com uma lança sagrada chamada Ame-no-Nuboko, eles agitaram o mar primordial, e das gotas que caíram formou-se a primeira ilha, Onogoro. Lá, Izanagi e Izanami uniram-se e geraram as demais ilhas do Japão, além de inúmeras divindades da natureza.

A Terra nasce a partir dessa primeira dualidade, que simboliza o equilíbrio e harmonia na construção do Cosmos. Entretanto, essa harmonia não permanece. Izanami acaba morrendo ao dar à luz ao deus do fogo, Kagutsuchi, e sua perda mergulha Izanagi em dor. Em meio a fúria de perder sua esposa, Izanagi mata Kagutsuchi, e do sangue do deus do fogo surgem os vulcões em todo o planeta. Ainda aplacado pela sua perda, Izanagi decide ir até o submundo para resgatar sua amada.
Entretanto, ao tentar resgatá-la do mundo dos mortos, ele testemunhou sua forma corrompida e fugiu, selando a entrada do submundo. O medo de encarar a face sombria dela causa em Izanagi um medo que precisa ser purificado, e com isso o deus resolveu se banhar no rio Ahakihara. No seu processo de purificação, Izanagi limpa seus olhos, enxugando suas lágrimas. Ao lavar seu olho direito, nasce uma deusa tão Luminosa e Bela que Izanagi decidiu colocá-la acima de toda a criação. Amaterasu, a deusa augusta que ilumina o céu, a deusa do sol.

Ao purificar seu olho esquerdo, surge Tsukuyomi, o deus da lua, belo, porém menos brilhante que sua irmã, e seu pai também o coloca no céu. E por fim, do nariz de Izanagi, nasce Susanoo. Ele não era belo, nem luminoso, era selvagem e incontrolável, capaz de causar tormenta e caos pelo mundo. Por isso, Izanagi manda-o ficar distante e governar os oceanos, e o faz deus da tempestade. Assim, formou-se a tríade de deuses que governam o mundo, responsáveis pelo equilíbrio e sustentação da vida dos seres na Terra.
O mito de Amaterasu
Uma vez dividida as atribuições de cada divindade, Amaterasu, como deusa do sol, se tornou a Rainha dos Céus, e apenas à noite Tsukuyomi assumia o controle. Ela era a mais bela e a mais amada entre todos os deuses. Todos os dias de manhã, saía para iluminar a Terra, trazendo a Luz, a Beleza e a Vida para todos os seres.
Um detalhe importante que vale a pena ressaltar é o fato de que há poucas culturas humanas em que o sol é representado por uma deusa e não um deus. Se considerarmos a cultura greco-romana, por exemplo, encontraremos o deus Hélios ou Apolo; no Egito teremos Amon-Rá, ou simplesmente Rá. Os mitólogos, em suas análises, entendem que a associação do sol com divindades masculinas é referente a um aspecto social, visto que grande parte das sociedades humanas se construíram com o homem se colocando no papel de provedor, aquele que atua na sociedade, enquanto a mulher era a dona dos pequenos espaços, responsáveis pela gestão da família.

Entretanto, devemos pensar que o fato de o sol, nosso grande astro, está relacionado com o aspecto feminino também é extremamente lógico e, até certo ponto, natural. Afinal, sem o calor e energia do sol, não haveria vida no sistema solar e, obviamente, nem em nosso planeta. Tal como as mulheres que, caso desapareçam do mundo, a vida humana será destruída, uma vez que não seríamos capazes de nos reproduzir. Logo, o fato de Amaterasu ser uma divindade feminina e está ligada ao sol é o grande símbolo da vida e energia, capaz não apenas de aquecer, mas também de dar condições para que novas formas surjam.
Agora voltemos ao mito desta deusa. Uma vez que ambos estavam governando o céu, Susanoo, ao ver que para si restou apenas a Terra, fica descontente com o destino ditado pelo pai. Nesse momento, ele é tomado por uma grande inveja e ciúme, pois achava injusta a divisão. Assim, articulou um plano contra a sua irmã. Enquanto a criada tecelã de Amaterasu tecia o manto celestial da deusa, Susanoo cobriu com um cavalo morto seus teares; e tal cena fez o terror se espalhar, pois Susanoo havia sujado o aposento divino com o sangue da Terra e deixado sua marca no céu.

Amaterasu já havia aceitado muitas afrontas de seu irmão, mas dessa vez percebeu que a maldade havia chegado aos céus, e, inconformada com o cenário que percebia ao seu redor, fugiu para dentro de uma caverna celestial onde ali permaneceu, fazendo sumir para todo o sempre a Luz Divina que iluminava o mundo. Sem a força do sol, não passou muito tempo para que a Terra e os céus começassem a sentir falta da mais bela e amada deusa.
O mundo começou a ficar frio, escuro e sem vida. Não havia Luz ou Beleza. Toda a natureza começou a definhar, a escuridão reinava em todos os mundos. O medo dominava os seres vivos. O terror se espalhou por todo o Cosmos, e tudo caminhava para a destruição, pois, sem Amaterasu, nada poderia se sustentar por muito tempo.
Os deuses, temendo a escuridão eterna, perceberam que precisavam de uma estratégia para resgatar Amaterasu de dentro de sua caverna. Então, o deus da inteligência, Omoikane, elabora um plano. Pede para que todos os seres fiquem ao redor da caverna e coloquem um espelho apontando para a entrada. Eles fariam uma grande festa e diriam que o mundo estava salvo, pois haviam encontrado uma deusa tão Bela e Iluminada quanto Amaterasu, e que iria ajudá-los a superar a escuridão. Assim o fazem, posicionam o espelho e preparam-se para que a curiosidade da deusa do sol a faça abandonar seu exílio.

Ouvindo aquela música alegre e aqueles rumores de que existe uma outra deusa que salvará a Terra, Amaterasu, abre suavemente uma fresta de sua caverna, para ver exatamente o que está acontecendo. Percebe que existe uma Luz Brilhante e Bela, mas não sabe de onde vem, o que a deixa mais curiosa. A deusa é preenchida por um sentimento de esperança e aproxima-se cada vez mais, até sair completamente da caverna. Os deuses rapidamente a puxam e selam a caverna para sempre, para que a deusa não volte a se esconder.
Garantida de novo a Luz, Susanoo se redime e, a título de reconciliação, presenteia sua irmã com uma esplêndida espada Kusanagi, símbolo de sua vitória ao matar a terrível serpente de oito cabeças, Yamata no Orochi. Assim, após um longo período de escuridão, Amaterasu retoma seu local de origem e volta a iluminar tudo e todos.

A relação do Japão com o mito de Amaterasu
O Japão possui uma forte relação com o sol, basta que o observemos na bandeira japonesa. Oficialmente denominada Nisshōki (“Bandeira do Sol”), ou mais comumente conhecida como Hinomaru (“disco solar”), as tradições afirmam que a bandeira em si é uma homenagem à Amaterasu, retângulo branco com o círculo vermelho – este último simbolizando o sol. Além disso, essa narrativa sagrada também fundamenta a origem dos famosos Tesouros Sagrados do Japão: o espelho (Yata no Kagami), a espada (Kusanagi no Tsurugi) e o colar de joias (Yasakani no Magatama). Cada um desses objetos possui um profundo significado simbólico e tem relação direta com o Japão e o mito de Amaterasu.

O espelho, que serviu para atrair Amaterasu de volta à luz, representa a sabedoria e a verdade, sendo o reflexo da própria alma. A espada, associada ao deus Susanoo, simboliza a coragem e a força do guerreiro, sendo esse um vínculo fundamental para a formação japonesa, não apenas no aspecto militar, mas em sua própria postura de vida. Já o colar de magatamas, ligado à pureza e à benevolência, representa o vínculo espiritual entre os deuses e os homens, um acordo selado em tempos imemoriais, mas que continua a vigorar dentro da cultura japonesa. Esses tesouros tornaram-se os emblemas da autoridade imperial, um elo visível entre o céu e a Terra.
Desde os tempos antigos, os imperadores japoneses são vistos como herdeiros diretos desses símbolos divinos, guardando-os como prova de sua legitimidade e conexão com Amaterasu. O Espelho Sagrado é mantido no Santuário de Ise, dedicado à deusa; a Espada Kusanagi é preservada no Santuário de Atsuta; e o Colar de Magatamas permanece com o Imperador em cerimônias imperiais, incluindo a entronização. Esses objetos não são apenas relíquias religiosas, mas também pilares espirituais da identidade japonesa, pois representam o equilíbrio entre sabedoria, valor e virtude.

Esses símbolos são tão importantes que ajudaram o Japão em diversas ocasiões para se restabelecer. O mais simbólico destes ocorreu após a derrota do Japão na Segunda Guerra Mundial. Após o trauma das bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaki, o imperador japonês assinou a rendição do país e, consequentemente, o peso da derrota e da catástrofe humana que tais eventos causaram abalou toda sociedade japonesa. Em meio a esse sentimento de fracasso, o imperador reuniu os tesouros sagrados do Japão, apresentou-os para o povo japonês e falou que o Japão iria reerguer-se, pois estava ao lado dos deuses.

Acaso ou não, dentre todos os derrotados da Segunda Guerra Mundial, o Japão foi o país que se reergueu mais rápido e em 4 décadas se tornou, mais uma vez, uma das potências mundiais. Isso se dá, evidentemente, pelas políticas públicas, pela cultura japonesa, pela maneira como esse povo trabalha e encara a vida. Porém, nada disso seria possível se não houvesse uma ideia que os conduzisse, uma forma de enxergar a existência e dedicar-se a ela. Esse é o poder de um mito: nos fazer renascer em meio aos escombros de nossa própria vida.
O mito de Amaterasu e a cultura pop
Para além do aspecto simbólico, o mito de Amaterasu também aparece na cultura pop japonesa, especialmente em obras que exploram temas de poder, luz e herança divina. Um dos exemplos mais evidentes está no anime Naruto. A série, criada por Masashi Kishimoto, incorpora uma vasta gama de referências à mitologia japonesa, e o nome “Amaterasu” é dado a uma das técnicas mais poderosas do universo ninja.
No enredo, esse jutsu (técnica, em japonês) é uma chama negra inextinguível que consome tudo o que toca, sendo essa uma reinterpretação moderna da luz solar divina, agora transformada em um símbolo de destruição absoluta. Assim como a deusa, que é simultaneamente fonte de vida e portadora de uma luz insuportável, a técnica Amaterasu no anime carrega a dualidade entre criação e destruição.

Além disso, o clã Uchiha, ao qual pertencem personagens como Itachi e Sasuke, representa uma linhagem de poder herdado e quase sagrado. Não por acaso, o Sharingan, o olho que desperta o Amaterasu, é ativado através da dor, do sacrifício e do autoconhecimento, lembrando o momento em que a deusa se reconhece no espelho antes de retornar à luz. O próprio fato de ser uma técnica usada a partir do olhar traz como referência a criação da divindade, que veio da purificação do olho esquerdo de Izanagi. Ainda sobre isso, o espelho no mito simboliza a sabedoria e a introspecção; da mesma forma, o Sharingan é o “espelho do coração”, refletindo a verdade interna do portador.

Mais amplamente, a presença do mito de Amaterasu em Naruto revela como a cultura pop japonesa mantém viva sua mitologia, reinterpretando-a em novos contextos e linguagens. A Luz de Amaterasu, que outrora iluminava o mundo mítico, renasce em chamas negras, refletindo o conflito interno dos personagens e o eterno dilema entre poder e redenção. Dessa forma, Naruto não apenas homenageia o passado espiritual do Japão, mas também o reinventa para as novas gerações, mostrando como os mitos antigos continuam a moldar a imaginação moderna e conectam o sagrado e o popular.
O simbolismo de Amaterasu para o ser humano
Apesar de ser a “Terra do Sol Nascente” e portador deste mito sobre o ressurgimento do sol, o Japão revela uma necessidade do ser humano de ver a Luz. Há momentos em nossa existência que, assim como Amaterasu, escondemos nossa própria essência dentro das cavernas da personalidade. Deixamos de ser quem verdadeiramente somos e passamos a viver uma sombra, algo projetado e que não condiz com a realidade. Isso tira a vida de nossa existência, assim como um mundo não pode viver sem o calor do sol.

A imprudência de Susanoo afugenta Amaterasu, o que representa a ignorância do ser humano, que movido pela inveja é capaz de tornar tudo à sua volta sombrio e sem iluminação. O cavalo morto no céu é o símbolo da personalidade imperfeita e mortal, alcançando um patamar que não deveria, ou seja, quando os impulsos instintivos e os desejos egoístas se tornam fatores muito importantes em nossas vidas. É nesse momento que Amaterasu, a Luz, que também pode representar a nossa alma, se esconde pois se torna minoria ao perceber que a ignorância e a escuridão tingiram todas as coisas, assim como o sangue do cavalo.
Obviamente, tudo começa a definhar e perder a vida sem a presença da Luz, da Energia e da Beleza. A Terra estava dominada pelo medo e pela ignorância, pois este é o ambiente criado pelo ser humano que não possui princípios e ideais conduzindo sua vida. Homens e deuses, então, reconhecem a importância do sol no equilíbrio da Natureza, e também que sem ela não há Sabedoria ou Vida na Terra, apenas caos e escuridão. Amaterasu, ao sair da caverna, volta a iluminar tudo à sua volta, fazendo renascer a esperança em um mundo Belo, Novo e Virtuoso, livre de males e ignorância.

Outro ponto interessante que devemos observar é que, quando Amaterasu se esconde, ou seja, quando a nossa vida entra num período de escuridão, não adianta simplesmente lamentar. Nós precisamos usar da nossa engenhosidade, assim como fizeram os outros deuses, para fazer com que o nosso “sol” volte a brilhar.
É importante sempre pensar em estratégias para suportar o momento sombrio, como por exemplo: escolher bem que conteúdo vai assistir, quais músicas irá escutar, com quais pessoas vai conviver e, principalmente, o que irá fazer, todos os dias, para se tornar uma pessoa melhor. Dessa forma, não há dúvidas que, cedo ou tarde, veremos os raios de sol de Amaterasu surgirem por detrás de alguma rocha, e então, nossa vida encontrará a Luz mais uma vez.
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